domingo, 2 de dezembro de 2001

Declarações

Há os que picham nos muros, e os que escrevem em bilhetes. Há os bilhetes escritos em folha de caderno, e os improvisados num guardanapo de papel. Há papéis que escondem pétalas secas, outros que guardam palavras. Há palavras imortalizadas em sublimes poesias, e poetas de ocasião que põem o sentimento incomum e novo, nos lugares-comuns das rimas desgastadas. Mas está sempre lá, em algum lugar: decorado na ponta-da-língua, tatuado na barriga-da-perna, esculpido no pé-de-abacate. Porque os humanos todos não escapamos àquela vontade, essa vontade, esta vontade, que faz alguns morrerem numa cruz, outros declamarem, outros sussurrarem, outros até, meu Deus, contratarem carros de som ou gritarem nos telhados (e o Quintana se revira: "deixe em paz os passarinhos!").

Tudo quer falar de amor, o modo é uma infinidade...

Por isso tem as declarações, os silêncios de saudade e os olhos cheios de lágrima. Tem as clássicas: as dos que ligam para a rádio à meia-noite e oferecem aquela música triste para alguém que, com certeza, também está acordado, pensando em voltar, ouvindo a dedicatória... e se não ligou, juro, é só porque não quis incomodar. Tem ainda, as daqueles que escrevem tudo em outra língua, sempre que querem dizer algo lá do fundo do peito, buscam palavras estrangeiras... para quê? Para não se verem confessando algo que ainda é inconfessável. Para que alguém traduza o que lhes parece estranho, e a tradução denuncie o que ainda não se conseguiu entender. Prove que eu disse isso em bom português. A tinta se acovarda, e lá vai "Je´taime", "Ich liebe dich", "amor, I love you".

Cada dia inventam uma opção: adesivos das gotas de pinho Alabastro, ursinhos da Maritel, flores virtuais, mensagem de texto para celular, ou telemensagem, para quem sempre quis ter voz de locutor. E cada um escolhe seu jeito: os paranóicos colocam o CD com a música preferida dos dois, porque têm certeza que ele vai entrar por esta porta agora; os detalhistas vestem uma roupa combinando com a do par; os práticos dão meias, amendoim, paçoquinha; os cúmplices dão barras de chocolate comidas pela metade Hehehhehe...

A verdade é que declaração de amor faz saltar nossa veia artística: uns viram desenhistas, e o desenho tem sempre um coração, uma flor, ou um avião indo para o Afeganistão se você não me abraçar. Outros preferem dançar na chuva. Impressiona o número de namorados que são amantes da sétima arte. Já viu cinema sem eles? E como representam bem, estes meninos e meninas quando declaram seu amor! Por fim, os músicos cantam, tocam, compõem, dublam. E todos, enternecidos, ouvem, pois ninguém resiste às declarações de amor.

Todo mundo quer ouví-las, mesmo sem correspondê-las, mesmo sem saber amar. É que elas saram umas feridas distantes, escondidas, que depois de curadas a gente não sabe como conseguiu viver tanto tempo ferido daquele jeito. E daí por diante, você quer ouvir todas as declarações de amor: as que declaram carinho, amizade, admiração, respeito, euforia, fidelidade. Mesmo as que apenas declaram uma sincera vontade de amar, são capazes de desentortar metade de uma existência frustrada. Não se encontrou melhor jeito de tirar cheiro de mofo da vida. Até mesmo aquela menininha triste, que não queria nunca mais namorar ninguém, e chorava, tadinha, sem vontade de casar, hoje sorri raiozinhos de lua, tão feliz está depois que a declaração de amor daquele menininho ali, devolveu para ela uma profunda estima por si mesma. E até hoje, eles viveram felizes para sempre.

Gosto do fim do ano porque é a época em que as pessoas ficam mais propensas a declararem seu amor umas para as outras. E intimamente o que a gente faz, é resgatar a memória de um menino que nasceu há tanto tempo atrás, mas que até hoje impressiona por ter se tornado a mais bela declaração de amor. A gente, às vezes sem saber, o imita só pela terna pretensão de estender aos outros, um pouqinho da paz que emana da simples lembrança de uma estrebaria em Belém. Mas veja bem, só valem as declarações sinceras, e estão de fora os covardes e os homens maus. Eu sei que tem também as filas quilométricas, os estacionamentos lotados, os shoppings entupidos, e o estresse para fazer tudo bem rápido, antes do feriado. Mas até as propagandas ficam mais positivas. Há mais tempo para os abraços, beijos, presentes, cartões, e todo um desfile de declarações de amor. Nesta época do ano, as pessoas pensam mais bonito. E intimamente a gente sempre espera um recomeço melhor.

Hoje eu escrevo para comemorar o Natal, e pedir a você que não esqueça de também fazer a sua declaração de amor. Para todos a quem você ama, tem carinho, admiração, respeito, ou a quem você desconhece completamente, mas que lhe está ligado pelo gênero biológico. Não espere os sinos tocarem (eles ainda tocam?), não deixe os presentes roubarem-lhe o prazer da entrega. Não pense muito nos motivos, você é humano, basta. E sei que você encontrará seu jeito, pois não acreditou quando eles disseram que existem mil maneiras de preparar Neston? Invente uma. Declare-se sinceramente a você e aos seus semelhantes. E por fim, no princípio de tudo, encontre uma maneira de declarar seu amor a Deus, você sabe, Ele nos amou primeiro (I Jo 4:19).

A minha eu já escolhi: é a coisa mais simples que Deus poderia escutar. E se você se achegar muito discretamente num cantinho do pinheiro, eu te deixo ouvir também: "Eu sei que existem dores, motivos para chorar, e coisas tristes acontecendo aqui e lá do outro lado do Brasil. Sei também que o meu amor ainda tem tanto para aprender, que Você vai ter que me ver aqui, pedindo perdão, mais algumas vezes. Nem sempre eu vou estar sorrindo, porque os planos falham, as pessoas nos machucam e as coisas têm essa mania chata de nunca serem exatamente como eu queria. Mas nem uma coisa bem grande, nem milhões de coisas pequenininhas mudarão minha vontade de ficar ao Seu lado. Aconteça o que acontecer, lembre-se que eu escolhi descansar em Seu abraço. E enquanto eu aprendo a lidar com minhas fraquezas, saiba sempre: eu vou ficar bem, por Sua causa, e para Você."

domingo, 25 de novembro de 2001

Vicissitudes de uma dona-de-casa

Um dos motivos pelos quais, vez ou outra, minha mãe se aborrece comigo, é a minha completa falta de vocação para o serviço doméstico. Ela é da opinião que uma mulher deve ser antes de tudo, uma dona-de-casa nata, sendo este um requisito imprescindível para que ela chegue a ser uma mulher em toda a extensão da palavra. Nossa convivência tem feito ela acreditar piamente que minhas chances de chegar a tal grau de magnitude são ínfimas, o que me condena de pronto a ser uma eterna adolescente, e não ter competência para ser aprovada como esposa. Precisei morar sozinha um tempo para desencanar dessas idéias, e embora não chegando a ser o modelo de dona-de-casa que minha mãe sempre sonhou, ó céus, eu tentei, eu bem que tentei remediar minha tragicômica atuação. Infelizmente, o que consegui foi colecionar uma porção de pequenos desastres, dentre os quais separei um para lhes falar hoje.

Aqui em casa faz tempo que não entra uma máquina de lavar roupas. Isto é conseqüência da maneira como a última, digamos assim, quebrou. Eu até que gostaria de entrever algum pequeno prazer em lavar roupas, mas o fato é que nunca tive paciência no domínio da água e sabão. Ansiosa por me livrar daqueles fardos (o de roupas e o de encarnar a Amélia em pleno domingo de manhã), eu acho que coloquei muito mais roupas que deveria na cuba da lavadora, e aquilo misturado com uma dose um tantinho assim exagerada de sabão, começou a fazer um barulho cada vez mais estranho. Enquanto eu não me definia quanto ao que fazer, a lavadora começou a pegar fogo.

Meu último teste de QI mostrou um resultado satisfatório, mas naquele momento de medo e confusão, minha atitude foi bem pouco inteligente. Vendo o fogo subir em labaredas cada vez maiores pelos fundos da máquina, eu enchi um balde de água e joguei nela. Uma, duas, várias vezes, e o fogo aumentando, e o plástico derretendo, e o barulho ficando monstruoso, até que eu consegui pensar e tirei o fio da tomada, ao que o fogo cedeu imediatamente. O estado em que a lavadora de roupas ficou lembrava bastante aqueles monstros de filme japonês, depois de atacados pelo robô do bem. Eu me sentia o próprio Jaspion. E minha mãe, mais uma bomba atômica anti-nipônica prestes a estourar.

Desde então, eu tenho me preocupado em combater o mal onde o mal realmente está. E esta é uma regra que se aplica também a nossa vida espiritual: "Pois não é contra carne e sangue que temos que lutar, mas sim contra os principados, contra as potestades, conta os príncipes do mundo destas trevas, contra as hostes espirituais da iniqüidade nas regiões celestes." Efésios 6:12. Aqui Paulo nos adverte que os perigos de verdade estão além daquilo que conseguimos ver, no mundo espiritual, cujos poderes do mal estão empenhando forças para nos derrotar. Eles se arremetem contra os santos, nós que fomos chamados, e que formamos aqui na Terra o que o apóstolo chama de regiões celestes. E aí que o Inimigo ataca com todo seu arsenal de maldades, mesmo que nem sempre estejamos atentos para identificar sua presença e atuação através dos mais diversos agentes, em especial os humanos.

Da próxima vez que você se deparar com um problema, pense na repercussão espiritual que sua decisão perante ele pode ter. Pense que na sua escolha estão envolvidas mais dos que conseqüências seculares, mas muito provavelmente uma eternidade inteira. Medite que seu ato, por menor que seja, pode influenciar direta ou indiretamente a salvação de sua alma e também a de outras almas ao redor. Não estamos isolados no grande conflito entre o bem o mal, somos peças fundamentais deste jogo, e Deus nos ama tanto que confiou ao nosso
arbítrio uma porção de poder sobre a vitória final. Por isso lute contra o problema encarando a sua verdadeira causa e conseqüência, não aja como se tivesse somente de satisfazer a sua carne, nem recue como se apenas ela tivesse de ser salvaguardada. Pense mais alto, e reconheça-se com a responsabilidade daqueles que receberam o
privilégio de se assentarem nas regiões celestes. Não escolha os momentos mais convenientes para ser cristão, porque não é possível fugir da face de Deus: "Se subo aos céus, lá estás; se faço minha cama no mais profundo abismo, lá estás também" (Salmo 139: 8). Antes de olhar novamente o seu problema, lembre-se que "Somos feitos espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens." I Cor. 4:9, e então decida a estratégia para um bom combate.

Percebe o recado divino? Concentremos as forças no lugar certo. Perdemos muito tempo tentando apagar o fogo, quando o problema está na eletricidade. Desgastamos nossa mente, espírito e coração lutando contra carne e sangue para conseguir alvos humanos. Como representantes das regiões celestes, somos muito mais que isso, e recebemos poder e armadura para lutar de modo a alcançarmos uma vitória muito mais completa e elevada.

quinta-feira, 15 de novembro de 2001

Os Rubens

Vinícius ainda não tinha pronunciado a sentença, mas Lia aprendeu rápido que "beleza é fundamental". Seu maior temor era não conseguir casar e perpetuar a descendência de seu pai Labão, mas como não bastasse ser rejeitadada pela falta de dotes físicos, sua irmã Raquel era muito bela e tinha de fato o amor de Jacó. A história está em Gênesis 29 e nos conta que, com uma ajudinha do pai, Lia conseguiu casar com Jacó, e por piedade divina, já que era desprezada do marido, teve a felicidade de ser fecunda e dar-lhe um filho, a quem chamou de Rúben, "pois disse: O Senhor atendeu à minha aflição".

Talvez por ter nascido como uma resposta à aflição, Rúben também era sensível à aflição alheia, e seu coração gostava de se ocupar do bem. No entanto era um ser humano falho, imperfeito, chegou a cometer tamanho erro que mesmo sendo o primogênito, não recebeu a bênção que lhe estava proposta em sua plenitude. Rúben não fez nenhum grande feito que o tenha colocado entre os heróis bíblicos, mas sua atitude em um dos episódios da sua vida, me convenceu de que ele era uma pessoa boa e que conhecia o amor.

Foi quando viu o seu irmão mais novo, José, em aflição, que Rúben revelou a bondade que havia em seu caráter. Os irmãos nutriam grande inveja de José, e estavam dispostos a matá-lo para não continuarem vendo aquele menino recebendo privilégios do pai, a que eles não tinham direito. E zombavam dizendo: "Vem lá o tal sonhador!" se referindo aos sonhos em que José profetizava sua futura superioridade sobre os irmãos. Ora, Rúbem sabia que não era profeta. Mas como todo homem, também era um sonhador, ao menos no sentido poético da palavra. Não era por causa disso que deixaria matarem seu irmão. Por isso convenceu a deixarem o pequeno José numa cisterna seca, esperando que, depois que os irmãos fossem embora, ele voltaria ali, tiraria José da cisterna e o devolveria a Jacó. Nesse ponto, eu quero me deter num comentário que a escritora Ellen White faz: "Teriam executado seu intento, se não fora Rúben. Ele se negou a participar do assassínio de seu irmão, e propôs que José fosse lançado vivo em uma cova, e ali deixado a perecer, sendo, entretanto, seu intuito secreto, livrá-lo, e devolvê-lo ao pai. Tendo persuadido todos a consentirem neste plano, Rúben deixou o grupo, receando que não pudesse dominar seus sentimentos, e fossem descobertas suas verdadeiras intenções." (Patriarcas e Profetas Pág 211). Quando Rúben voltou José tinha sido vendido pelo seus irmãos a comerciantes ismaelitas, o que o deixou desesperado. Não vendo o José sonhador no meio deles, rasgou as vestes e gritou: "e eu, para onde irei?"

Semana passada, eu o encontro. O Rubens. Tá no plural porque certamente tem o dobro de sensibilidade humana do Rúben. Nos conhecemos incidentalmente numa troca de e-mails e nos reconhecemos amigos de primeira, entendendo um ao outro e partilhando afinidades. 23 anos, gosta de Machado de Assis e Saramago, colabora numa ONG que cuida de aidéticos, e na primeira mensagem se definiu como "baixista de uma banda de rock e ex-adventista". Uma das poucas pessoas com quem já tive prazer de falar sobre teologia, e aprender muito de maneira fácil. A semelhança com o personagem bíblico não está somente no nome, nem no fato dele ser um ser humano imperfeito, mas dado a fazer o bem. O Rubens também "deixou o grupo" porque sentiu que seus sentimentos eram diferentes dos demais. Ele foi atraído por um Homem que falava de amor, bondade e misericórdia, mas cuja doutrina incomodava aqueles que tinham se acomodado em apenas viver suas vidinhas, sem grandes mudanças ou comprometimentos com o próximo, ocupados em satisfazer seus instintos e conquistarem seu quinhão de poder. O Rubens que se apaixonou por Aquele Homem, também se desiludiu ao ver que seus próprios irmãos, criados pelo mesmo Pai, estavam a ponto de eliminar Este Homem do seu meio. Os irmãos de José ao menos tinham uma aversão descarada, estes aqui diziam adorar o Irmão a quem traíam. Toda vez que negavam o amor, esqueciam a misericórdia e preferiam seus próprios interesses à bondade, esses irmãos de Jesus O feriam um pouco e um pouco mais. Este Rubens aqui não conseguiu dissuadí-los de matarem, por seus erros e hipocrisias, a um Ser cujo maior sonho era salvar a todos eles. Mas se afastou do grupo, por não conseguir dominar seus sentimentos de frustração com o cristianismo que um dia idealizou. E eu fiquei cá pensando comigo mesma: e se um dia o Rubens resolver voltar? Será que ele encontrará os irmãos de Jesus - nós, que também nos dizemos seguidores - praticando o amor? Ou não vendo o Cristo Sonhador em nosso meio simplesmente dirá "e eu, para onde irei?"

Essa dúvida me ocorreu enquanto eu lia o parágrafo abaixo, que eu transcrevo de um dos e-mails que trocamos, em que ele expõe com sinceridade sua visão sobre o cristianismo. Entrego-o para a meditação nu e cru, sem cortes, mas com alguns curativos.

"A maioria das pessoas que vão à Igreja não compreendem a essência da doutrina cristã. Em primeiro, acham que a palavra primordial é "não" . Não bebe, não fuma, não ouve música, não dança, não vai a determinados ambientes, não lê determinada literatura, não assiste determinados programas, não come determinadas comidas, não, não, não, não... E a essência do evangelho é a palavra amor. Percebe? Quando Jesus pregava, as pessoas se maravilhavam com a doutrina dele exatamente por isso. Ele pregava o amor, enquanto os religiosos da época pregavam a negação, o medo, o autoflagelo. E hoje ainda é igual. Sabe, existem dois instintos primitivos no homem, que existem em todos os outros animais : medo e ambição. Utilizando medo e ambição, você adestra um cachorro. Você ensina um exercício, se ele faz certo, ganha uma recompensa, se faz errado, ganha um castigo. E funciona! Com o homem é igual, e me cansa, e às vezes até me desilude ver tanta gente manipulada por esses dois instintos. Nunca acredite em alguém que apresenta a religião apenas como uma forma de ambição. "Aceite a Jesus e sua vida vai ser maravilhosa, próspera e cheia de felicidade e de quebra você vai pro céu" nem em quem diga "Se você não aceitar sua vida vai ser trágica, infeliz e de quebra você vai pro inferno." Ambição e medo, percebe? Instintos básicos. Mas a essência do evangelho é o amor, e isso não é nenhum instinto. É Divino. E é a única coisa capaz de nos tornar realmente livres, justos e felizes, porque somente amando é que imitamos Deus."

Só resta a mim olhar dentro dos seus olhos que nunca vi e pronunciar sobre a fé e a forma de amar dos que ele representa, a mesma bênção de Moisés: "Viva Rubens, e não morra; e não sejam poucos os seus homens". Deut. 33:6

Uma semana iluminada.
Luna

domingo, 11 de novembro de 2001

Composição para cordas

Uma das coisas que o interior dos banheiros femininos não permite aos homens perscrutar, é que toda mulher idealiza algo que não pode faltar em sua cerimônia de casamento. Um vestido com cauda de três metros, um bolo de dez andares, damas de honra vestidas de azul-turquesa, ou até (estas declarações são verídicas!), casais de padrinhos soltando pombinhas brancas na hora do beijo. Eu, que não perco um concerto nem pelo-amor-dos-seus-filhinhos, tenho apenas um desejo bizarro quanto ao meu himeneu: suportarei o cerimonial, transformando-o também num concerto. Dos males, o mais bonito! A única ostentação a que me dou direito é a de um belo quarteto de cordas tocando o melhor da música barroca e renascentista, naquela capelinha medieval que há tempos eu namoro.

Aceito críticas das mais românticas. Mas convenhamos, do jeito como a cerimônia religiosa vem se transformando em ostentação social, ninguém pode se espantar de ser recebido na porta da igreja por pajens distribuindo libretos de um concerto para casamento. Se meu íntimo amor pelo moço merece uma cerimônia pomposa, meu aberto amor pelas cordas, muito mais antigo, não merece menos que isso. O timbre dos instrumentos de corda sempre me fascinaram, e minha maior frustração é não tocar nenhum. Até tentei o piano por três meses, e agora, com a ajuda de um professor dedicado e paciente, me aventuro a aprender violão, visto que não se pode ter sido adolescente sem ter ao menos desejado tocar violão. Depois de dois meses de aulas, além de aprender a tocar com esmero o acorde de dó maior, observei algo com tamanha aplicação espiritual que desejo partilhar com vocês.

É difícil falar disso sabendo que este texto vai ser lido por alguns amigos físicos, mas eu quero me arriscar a falar sobre como se comportam as ondas sonoras quando as cordas vibram. Para não passar vergonha, me dei ao penoso trabalho de encarar meu "Os Fundamentos da Física, volume 2", de cujo capítulo sobre som, transcrevo esta pequena explicação: "Qualquer fonte sonora produz no ar vibrações que estimulam oscilação em corpos situados nas proximidades... pois a fonte progressivamente cede energia ao corpo". Significa na prática, que enquanto eu enrolava meu professor dedilhando seguidamente um grupo de cordas, observava que as outras também vibravam, devido ao deslocamento das ondas sonoras das primeiras, que propagando-se pelo ar, faziam oscilar todas as outras cordas, sem que meus incautos dedos as tivessem tocado. E aquela vibração se espalhava pelo violão e pelo meu corpo, transformando-me num grande acorde de dó. Amei mais o timbre daquelas cordas, quando percebi que não contentes em produzir seu belo som, me faziam sentí-lo e propagá-lo, como se alguém o tivesse tocado em mim.

Isso funciona mais ou menos assim: pôr-do-sol de uma bela sexta-feira, seu namorado enfadado de ouvir milhões de acordes de dó, toma o violão de suas mãos e começa a tocar o número 135 do hinário: "Guarda, vê se muito falta para o dia alvorecer...". Você ouve ele cantar com uma doçura tão reverente que não resiste e acompanha: "Alça a voz, alegremente, faz vibrar o próprio céu". Depois repara que um homem desconhecido parou em frente ao portão da sua casa, e da janela da sala você observa o semblante emocionado dele. Talvez ele não conheça a letra do hino, mas seu olhar se enche de um brilho terno: "Vê o Rei em glória infinda, vê o mar como um cristal!". Você sente uma atmosfera celeste ao redor, e sem fechar os olhos percebe que ao seu lado, anjos se juntam ao louvor: "Ouve as harpas, que harmonia! Ouve as hostes a cantar!". O violão dá o último acorde mas vocês dois e o homem, antes de ir embora, permanecem em silêncio por algum tempo, sentindo que o amor que foi cantado ali se propagou para além dos limites terrenos.

A primeira coisa a fazer é se colocar como instrumento nas mãos de Deus. Deixar que Ele transforme você em um cântico novo, tocando seu espírito bem e com júbilo (Salmo 33:3). Quando a sua vida começa a louvar a Deus em tudo o que você é e faz, o amor divino se propaga como onda sonora que faz oscilar e vibrar tudo ao seu redor. E o coração, esse músculo cordial, não pode passar imune ao estímulo.Pessoas que já haviam se habituado ao silêncio triste do desamor, sentirão umas velhas e empoeiradas cordas vibrarem no mesmo tom do amor que você propaga. Surpresas, elas verão acordes soando e sons acordando no sonido certo. Ainda inseguras, elas experimentarão assustadas a invasão das ondas transformadoras, tocando melodias talvez esquecidas. Mas o amor é uma composição para cordas de cuja influência não há quem fuja. Quando você se coloca como instrumento nas mãos de Deus, sua vida é tocada pelas mãos do Instrumentista e atrai muitas outras vidas para as mãos do Regente. E como espetáculo para o universo, Deus apresenta sua melhor performance : você in concert.

sábado, 27 de outubro de 2001

Sinfônica

Fazia sol, era domingo e estávamos juntos. Como há muito tempo a separação deles não permitia estarmos. Talvez fosse ajuda do cenário ao redor, que nem nos meus sonhos mais sublimes poderia ser tão perfeito: um parque cheio de verde puro e ar vivo, com os pássaros fazendo um delicioso fundo polifônico para o concerto da orquestra sinfônica.

Tudo bem que eu não poderia chamar o parque de "o mais belo", pelo simples fato dele ser o único parque daqui, mas isso não o faz menos belo. E enfim, era apenas um concerto popular, com forró tocado depois de uma valsa de Strauss, e um "New York, New York" evocando um terror impertinente a nossa atmosfera. Mas ainda assim era um concerto, em que eu e minha família - inteirinha, pai, mãe e filhas - estávamos unidos pela arte e por um nó na garganta, que a gente não desata, porque lá no fundo sabe que o amor às vezes é um choro que arde sem se ver, é nó que enforca e não se sente (perdão Camões!).

Eu tinha que estar entre os dois, para que a felicidade não parecesse tão completa. Ai de mim se ousasse sair do meio deles e fazê-los acabarem cedendo àquela evidentíssima vontade de abraçar dos seus braços. Olhei bem para meu pai, que perturbado, criticou o forró que a orquestra tocava "porque forró não fica bem tocado com instrumentos tão pesados". Eu sorri e continuei olhando. Ele olhou fixamente uma menina que corria, disse que estava lembrando de quando eu era do tamanho dela, e a danada da lágrima traiu seu olho fujão. Minha mãe estava mais linda aquela manhã. Exigiu apenas ir no banco de trás do carro, mas estava tão linda que o sorriso lhe saía fácil, fácil. Eu olhei bem para ela, e quando meu olhar já se distraía com um velhinho da platéia (aquela multidão lá na grama) que regia empolgadíssimo "O lago dos cisnes", ela me saiu com uma tirada que desafinou minha poesia e me pôs a rir:

- Parece o Titanic...

- O que mãe?? - eu disse depois de um minuto.

- Eles tocando... tão unidos... poderiam morrer tocando de tão unidos... como no Titanic.


Aí tudo se fez poesia novamente, porque eu sabia que lá dentro ela pensava em outro barco que afundara oito anos atrás. Mas sua família ali, unida por aquela música mágica que nos fazia despertar lembranças e sentimentos belos e esquecidos, resistia ao naufrágio do casamento, e estava, ao menos naquele momento, junta e unida como só a música poderia fazer, pelo poder de tocar nossas emoções.

Os textos bíblicos que se referem aos ministério dos músicos no Antigo Israel, sempre me causam arrepios "Spilberguianos"; aquela grandiosidade cênica retumbando em minha imaginação. Os livros das crônicas descrevem detalhes deste serviço, o qual era considerado de suma importância. Quando Davi dividiu os sacerdotes, e fez a separação entre os levitas que exerceriam este ministério, buscou ajuda dos capitães do exército israelita, pois sabia que a música, usada com estratégia e organização, tem um poder que sobrepuja a força militar, transcende o humano. Uma das ocasiões em que isso se demonstra está em II Crônicas 5: 13 e 14: "[os músicos] tocavam uniformemente as trombetas, e cantavam para fazerem ouvir uma só voz, louvando ao Senhor e dando-lhe graças. E quando levantavam a voz com trombetas, e címbalos, e outros instrumentos, e louvavam ao Senhor, dizendo: Porque ele é bom, porque a sua benignidade dura para sempre; então se encheu duma nuvem a casa, a saber, a casa do Senhor, se encheu de uma nuvem... porque a glória do Senhor encheu a casa de Deus". Tremendo, não?

Naquela época os playbacks, MIDIs e a cultura americana ainda não haviam dominado o mundo, portanto entendia-se que para ministrar na casa do Senhor fossem escolhidos apenas mestres em canto sacro e músicos tão comprometidos espiritualmente a ponto de profetizarem com seus instrumentos ( I Cron. 25: 1 e 7). Eles cantavam para invocar a glória de Deus, e a força que isso gerava era capaz de unir todo o povo de Israel na mais perfeita paz e harmonia.

Dá gosto ver o quanto Deus investia na música. Um exemplo, sem dúvida, a ser seguido por sua Igreja hoje. Mas uma pergunta perturbadora nos faz ir mais além: por que Deus se importava tanto com o serviço música em Israel, se Ele possuía junto de si coros de anjos que o louvam com perfeição? A resposta que mais me convence, transcende a música e o deleite que ela poderia causar no Todo-Poderoso. Deus investia e se preocupava tanto que o povo de Israel desenvolvesse a habilidade musical, porque Ele sabe do poder que a música tem para unir. Então o objetivo primeiro de Deus para seu povo era: unam-se. Era? Ainda é hoje. A mensagem é a mesma. Se infelizmente já não a encontramos jorrando da fonte da música, busquemo-la também em outras fontes, mas não deixemos de nos unir. A vitória será dada a um povo que esteja tão ocupado em unir-se para glorificar o nome de Deus, que o Senhor descerá sobre eles como nuvem de refrigério, proteção e paz.

Uma semana iluminada!


Luna

domingo, 21 de outubro de 2001

Pequenininha

Esta meditação vai ser pequenininha!

Nela só tem que caber um grão de mostarda.

Não importa que lá fora os supermercados tenham trocado o ringue dos preços pelo da megalomania arquitetônica, imitando os Shoppings, edifícios comerciais e Parques de Diversões. Hoje eu vou escrever pouco, mas arranjar um lugar para dizer que prefiro o Parque Dois Irmãos, que todo ano acampa ao lado da Igreja de São Sebastião, com o paradoxo de sua roda gigante pequenininha.

Estranho esse ser humano, que só reverencia o que é maior que ele (ou o que lhe parece ser), dado a aclamar a grandeza (para esquecer sua pequenez?). Talvez por ter de conviver tanto tempo com as desvantagens de ser alta demais, eu aprendi a valorizar - com uma ponta e inveja - as coisas menores . Hoje já fiz as pazes com o salto alto, mas ainda tenho ganas de Pequeno Polegar: quero ver o que me dizem os detalhes de uma sementinha.

"...O Reino dos Céus é semelhante a um grão de mostarda..." (Mateus
13:31)

Como pode Jesus comparar algo tão grandioso como o Reino dos Céus com a menor partícula com potencial de vida que os judeus conheciam? Vocês já devem conhecer uma porção de aplicações, eu vou expor a que mais me fascina.

Não é só por ser mulher, mas acho que há uma importância fundamental nos detalhes, nas coisas que passam despercebidas. Isso também vale para nossa vida cristã. Faça uma análise franca, e você perceberá que é muito mais fácil dar a vida como um mártir, que fazer aquela abnegaçãozinha que insiste em nos separar do ideal cristão, "mas que afinal de contas ninguém faz mesmo"... é fácil vestir uma camiseta com nome de Jesus estampado em letras garrafais, mas o que dizer do que se estampa em nossas palavras, "ops, escapuliu, mas afinal de contas todo mundo fala"... Paulo já sabia (tá lá no velho e bom I Cor. 13), é fácil, no calor do heroísmo, gritar a própria fé e entregar o corpo para ser queimado (ou numa versão moderna, carbonizado num avião), mas e na hora de deixar vencer o silêncio absconso do amor? "Mas afinal, eu sou humano"...

Aí está o segredo do grão de mostarda: é nas coisas menores, nos pequenos detalhes, que se prova que não se é apenas humano, mas cidadão daquele Reino dos Céus, para onde cada ato, palavra e pensamento meu deve apontar.

Uma semana iluminada!

Luna

sexta-feira, 12 de outubro de 2001

Igreja do diabo x igreja do pobre-diabo

A melhor parte do domingo para mim, é quando minha mãe chega com o "jornalzinho" da missa. Sou leitora assídua dos textos que encerram esse periódico, tanto que suas reflexões inteligentes sempre me roubavam um terço da missa quando eu era católica.

O desta semana teve o título curioso de "A igreja do pobre diabo", e embora eu não tenha apreciado algumas colocações "quevedianas" do autor, ele me deixou refletindo numa perspectiva mais ampla de Romanos 7:9, onde o apóstolo Paulo expõe o velho dilema, que está para nós cristãos, como o ser-ou-não-ser para Hamlet: "Não faço o bem que quero, e sim o mal que não quero", eis a questão.

O texto começa falando de uma igreja que talvez meu amiguinho Paterson, lá de Manaus, deva conhecer. Trata-se da Capela do Pobre Diabo, construída em 1897, pela esposa de um comerciante, após a morte dele. Esse comerciante possuía um pequeno estabelecimento comercial com artigos a preços populares, onde chamava atenção uma tabuleta, escrita à mão, que dizia: "Ao Pobre Diabo" (modo comum de chamar os mendigos e pobres necessitados, antigamente). A expressão foi uma propaganda tão eficaz, que acabou por batizar o local sagrado, e hoje o governo do Amazonas declarou-o patrimônio histórico, aberto uma vez por ano à visitação, no dia de Santo Antônio (que originalmente era o homenageado, mas terminou à sombra do pobre diabo).

Antes que eu prosseguisse a leitura, me veio à mente a mesmíssima associação que o autor (Aldo Colombo) fez mais à frente: um conto de Machado de Assis chamado "A Igreja do Diabo", onde o mestre do Realismo disseca uma vez mais o ser humano e suas contradições. Neste conto, ele fala de uma suposta tentativa do Diabo de abrir sua própria Igreja, cansado de ser apenas oposição, figurinha de esquerda, eterno presidente de partido. Então o Tinhoso organizou culto e normas de comportamento, mandamentos exatamente opostos ao Decálogo, e inverteu todos os valores dos seus adeptos. Mas o que aconteceu? O Diabo acabou fechando o templo, porque descobriu que alguns dos seus mais fiéis seguidores, sorrateiramente, à noite, praticavam o bem. Uma virtudezinha acariciada, uma caridade por debaixo do pano...o Diabo acaba por desistir de lidar com a incoerência humana.

E aí está a verdade sobre o que queremos fazer: o bem. O apóstolo Paulo, que gasta vinte versículos do capítulo sete no livro de Romanos expondo o dilema entre o querer e o realizar, esparge luz nos trinta e nove versículos do capítulo oito, no mesmo livro, para nos dar a certeza de que nenhuma condenação há para aqueles que estão em Cristo Jesus. Ele enfatiza ainda, que somos filhos e herdeiros de Deus, feitos para a vida, redimidos por Seu amor. Quando falhamos Ele não nos castiga, mas concede Seu Espírito, pois fomos chamados para a glorificação (verso 30). Em seguida, Paulo, meu personagem bíblico favorito, conclui com um texto que também faz o livro de Romanos ser o meu favorito. Leia uma vez mais os versos 31 a 39 do capítulo oito. A mais bela afirmação bíblica da certeza do amor de Deus. Parafraseando-o: Que diremos, depois destas coisas? Somos bons. Nascemos com a semente da bondade em nosso coração, temos a vocação do bem, a predestinação da vitória, a nacionalidade celeste.

Mas e aquele detalhe do "fazer o mal que não quero", onde fica? Afinal, não é ilusório e até mesmo pretensioso achar-se bom, e no momento seguinte trair-se com um pensamento mau ou um gesto profano? De fato! Sem que queiramos, às vezes somos capazes de atos tão repugnantes, pecados repetidamente malignos, o que nos resta? Ah, amigo meu, tome esta verdade como quem recebe um beijo a testa: nos resta a Igreja do pobre diabo!

O pobre diabo é aquele que se reconhece assim, um coitado, miserável dentro da sua humanidade, mas um filho de Deus elevado à glória magnífica quando em Jesus Cristo. Há quem viva procurando a Igreja de Deus aqui na Terra, e entra nos maiores templos, nas choupanas úmidas, nas igrejas de bancos macios e corações ásperos, nos recintos onde mãos ásperas se estendem oferecendo calor suave... mas não encontram a tal Igreja. Há quem passe a vida inteira procurando em muitas igrejas, há quem busque por anos em uma só, uns morrem perscrutando doutrinas, uns até se cansam pelo caminho, mas há quem, por fim, reconheça que a Igreja de Deus é a Igreja de pobres diabos, que entre o querer e o realizar plantaram a Videira Verdadeira, de cujos frutos se alimentam, em cuja sombra descansam tranquilos, aguardando o Agricultor que os levará a conhecer uma certa árvore da vida. (João 15:1-8; Apocalipse 22:2)

Embora o pecado ainda nos atormente, nós somos do Bem. A luta é dura, como duro é carregar o fardo da imperfeição. Por vezes isso pode fazer com que a Igreja de Deus pareça quase uma utopia. Mas basta olharmos para nós mesmos, e para tantos outros que como nós estão buscando chegar lá, para reconhecermos um povo sendo conduzido na direção certa, e cujo olhar se distingue por ter paz.

Ainda não é aqui que a Igreja de Deus reunirá o que há de melhor. A começar por mim, ela é formada de pobres diabos necessitados da graça de Deus. Mas a cruz de Cristo não foi deixada para fulgurar no templo dos que julgam ter alcançado glória e justiça aqui: para mim a cruz é como aquela tabuleta do comerciante, infundindo nos que se reconhecem necessitados, a esperança de conseguir um pouco mais. E quer saber? Me anima saber que esta Igreja do pobre diabo, unida, tem poder para vencer o Diabo, e tudo que dele vier – as portas do inferno não prevalecerão contra ela! (Mateus 16:18)

domingo, 7 de outubro de 2001

Só um cheirinho

Bleka chegou aqui toda orelhas e barriga. Eu não resisti aquela bolinha disforme miando desesperadamente atrás de mim, a pata manca, súplices olhos azuis. Como eu nunca fui chegada a gatos, tratei de avisar – para alívio de minha mãe – que ela ficaria em nossa casa só enquanto suas feridas saravam. Fizemos uma tala na pata, demos remédio para livrar aquela barriga enorme dos vermes, cuidamos das feridas que sobressaiam entre o pêlo ralo. Ela foi ficando saudável, foi ficando forte, foi ficando... ficando... e está conosco até hoje. Como é pretinha (aportuguesamos e afeminamos o Black) e sua feiúra não inspirou nenhum nome mais mimoso, ela ficou sendo Bleka, quase uma interjeição de horror, heheheheh

Minha irmã mais velha é quem cuida dela, pois eu ainda não consegui gostar de gatos. A nobre amiga Viviam há de discordar veementemente, mas eu acho esses bichos esnobes, interesseiros, frios, e a minha em particular é muito arredia. Minha irmã a defende como se isso fosse mera cisma minha. Mas a gata é feia e esquisita sim. Acredite, eu até gosto dela. Mas não dá para achar normal uma gata que gosta de comer mamão, fica admirando quase hipnotizada minhas árias de ópera (prefere as sopranos), tem fascinação por sacos plásticos, dentro dos quais é capaz de ficar horas, e sente um prazer mórbido em cravar as unhas nas minhas meias-calças novinhas. Como se não bastasse, Bleka tem uma curiosa mania, de ficar roçando em nossas pernas, miando e olhando esfomeada para nossa comida, mas quando nos rendemos e entregamos um pedacinho da comida, ela simplesmente cheira, cheira, cheira... e vai embora! Não dá uma mordidinha sequer. Pode ser um bife ou um peixe suculento, ela cheira e sai satisfeita. Lembrei disso agora, que ela me fez dar um precioso pedaço do meu chocolate, e ele jaz no chão, intacto, após algumas cheiradas esnobes.

Eu não consigo compreender como Bleka é capaz de se satisfazer apenas cheirando os alimentos. Mas isso me fez pensar em como nós a imitamos, quando o assunto é alimentar-se do Pão da Vida.

É comum ouvirmos orações pedindo "mais fé", como a de Eliseu: "Peço-te que haja sobre mim porção dobrada de teu Espírito" (II Reis 2:9), e nós mesmos as fazemos, pois não há nada mais precioso para um cristão hodierno, que fé para enfrentar este mundo louco. Jesus sabe tanto da fome espiritual do homem, que fez a si mesmo alimento, perpetuando sua entrega sacrificial no pão e no vinho, a fim de que nosso ser O celebre como o Pão que desceu dos céus para saciar-nos. E diariamente, Deus se faz alimento através de pessoas, situações, oportunidades, que nos são dadas como meio de nutrir nosso espírito e aumentar nossa fé. Mas será que sabemos discerní-lO?

Muitas vezes, este alimento passa ignorado: não estamos sensíveis para reconhecê-lo nas pessoas, paisagens e acontecimentos ao nosso redor. Outras vezes, simplesmente o recusamos porque seu aroma nos parece acre, e não nos agrada alimentar nosso espírito fazendo-o passar por provações e algum sofrimento; preferimos ver amargura onde Deus colocou alimento. Mas o mais triste é quando Deus prepara-nos um banquete e nós nos abstemos dele porque já nos satisfizemos com outros "lanchinhos" no caminho. Os cultos, os louvores, a própria
Bíblia já não são degustados com prazer. Mas o laodiceano segue, ostentando o ventre proeminente, o qual por não se alimentar da Vida, se torna morada de vermes.

Pior que a fome descrita pelo profeta Oséias (4:6), de quem "perece por falta de conhecimento", é a sensação enganosa de saciedade que nos impede de provarmos o verdadeiro sabor da nossa religião. É sobreviver sentido um cheirinho de Deus, que com o tempo vai deixando de excitar nossas papilas gustativas, ou seja, já não sentimos "água na boca" pelas coisas espirituais. E quando se troca uma experiência profunda com Deus, para resumí-lo a uma sensação olfativa, o cristianismo não sobrevive e o espírito adoece – isso diante de uma mesa farta.

Espero que nesta semana estejamos dispostos a reconhecer em cada detalhe de nossas vidas, a presença do nosso Deus pronto a alimentar nossa fé. E ao nos aproximarmos do alimento que Ele nos prepara, não nos acheguemos com cheirinhos descomprometidos, mas com apetite prazeroso. Honremos o Deus "que dá alimento a toda a carne, porque a sua benignidade dura para sempre" (Salmo 136: 25). Alimentados pelas coisas celestes, nenhum mal nos tentará o paladar.

sábado, 29 de setembro de 2001

Muda!

"E a ira muda? E o asco mudo? E o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?"
(Inania verba - Olavo Bilac)


Há os que conseguem ser sempre impessoais, domar forma e dobrar o sentimento, escrever como quem faz origami. Mas se até o ícone do Parnasianismo, escola literária que reverenciava a forma em detrimento do conteúdo, se o grande Olavo Bilac deixou vazar o poema do qual extraí o trecho acima - Palavra morta, em latim - onde descreve a agonia do sentimento querendo se materializar na palavra "impotente e escrava", então amigos, eu peço licença para escrever uma vez mais com o coração.

Quem me acompanha semanalmente sabe que prefiro a idéia leve, com perfume, graça e luz, que eu associo ao onipresente amor de Deus a toda vida ao meu redor. Mas às vezes, e isso se torna cada vez mais constante, tenho a impressão que escrever assim está difícil. Eu até poderia falar "origamicamente" de crenças e convenções, sobre o que devemos ou não fazer. Mas não estaria sendo eu mesma se aqui não coubesse, com urgência e sinceridade, o bom e velho ser humano.

Esse intróito atípico, é a tentativa de justificar o que se segue neste texto, que hoje vai como história, torcendo para não deixar de ser meditação. O motivo pelo qual o receio já adentra o terceiro parágrafo, é que não é uma história minha, nem tem um final feliz, este último uma teimosa exigência romântica para eu gostar de um filme ou de um e-mail. Esta história, eu lamento, é triste, e ainda assim sobreviveu a todas as minhas tentativas de não contá-la. Por isso deixo de lado todos os vinte e cinco inícios de meditação que tentavam mudar de assunto, e me rendo ao quarto parágrafo, onde eu tento amenizar a tristeza da história fazendo-a breve. Deixo a vocês a conclusão e peço apenas que avaliem, uma vez mais, o que realmente vale a pena na vida e na religião.

Quando a vi saindo pela última vez da igreja, ela chorava, muda. Outros saíram antes dela, nenhum escondendo um sorriso tão poderoso quanto o dela, mas todos pelo mesmo motivo. A igreja era pequena, e não demorou a sentirmos falta da presença deles. Até este momento, meu mal estar era só um presságio: certifiquei-me que a porta da frente estava aberta e a de trás bem fechada, não encontrei nenhuma mancha sobre a cortina azul atrás do púlpito e reparei que até as lâmpadas foram trocadas, tornando o ambiente amplamente iluminado. Mas ainda havia frio, a sensação estranha de algo sujo sob os pés ou diante dos olhos, mas escondido em alguma sombra não visível. Eles continuavam saindo, e quando eu percebi eu também estava lá fora, perguntando em voz audível o que estava acontecendo ali ("E a ira muda? E o asco mudo? E o desespero mudo?").

A igreja morrendo e bastou que ela me contasse o seu motivo para todos os outros virem a tona. Me chamou atenção isso ser sussurrado, como a confissão de um pecado, como se fosse extremamente perigoso querer ser amado, supinamente equivocado ser humano, a ponto de ser filho de Deus, e desejar o calor de um Espírito lá distante, em Atos 2. O choro mudo. Mas Senhor, tu sabes (eu muitas vezes não), ela fala! Ela sente... e costumava sorrir.

Ela sugeriu que as cadeiras fossem postas em círculo no sábado de manhã, para que todos pudessem conversar olhando no rosto um do outro, enquanto debatiam acerca de cristianismo. Antes sua idéia tivesse sido rechaçada, rechaçaram a ela, que ousou ter idéias assim tão... . Idéias, pessoas, gente que não sabe amar o amor da Bíblia devia ao menos se ocupar de ler Platão, para saber a diferença na hora de rechaçar. Vamos brincar de fazer o que o Mestre mandou, enquanto eles não entendem seu Manual nem lêem Platão.

As cadeiras ficaram geometricamente enfileiradas, umas atrás das outras, no sábado de manhã, para que não se vissem os rostos tristes (que falta, o sorriso poderoso dela), enquanto debatiam acerca de cristianismo. As cadeiras milimetricamente enfileiradas. E vazias.

Luna.

segunda-feira, 24 de setembro de 2001

Sentimentalidades

Quando ele chegou de verdade, eu estava abrindo as janelas do meu quarto, tomada de uma estranha necessidade que há tempos não sentia. Só então reparei que aquela manhã, como todas as outras, tinha uma luz alegre e ventilada, que agora eu queria muito em minha epiderme meio azul, de se esforçar para reter um frio incerto, e nunca meu.

Diante do encontro com o verdadeiro, foi fácil reparar na beleza aguda das tardes. O sol das dezesseis horas, cujos raios tornam todas as pessoas muito belas, encobrindo termos biológicos que ele deixa escapar soltos, sem saber da minha desnecessidade de argumentos para tomar suco de beterraba no café-da-manhã, se isso prolongar a sensação de beleza súbita e indizível que os termos biológicos não conseguem conceituar.

Gosto especialmente das noites, quando me misturo às rosas dele, e ouço comovida seus sonhos e crenças, expostos tão firmemente como e fazia há exatos dois anos atrás, aquele olhar sentimental sobre um mundo ainda desconhecido, que faz a gente se assustar tão sinceramente com o que não seja estritamente bom e justo. É quando eu
vejo exatamente o que fui, e o abraço mais forte, desejando que nadadisso se perca com muita dor. Mais ou menos como os pais abraçam os filhos adolescentes.

Aí ele viu uma luz no céu, que parecia uma estrela cadente "vou fazer um pedido" (sem pensar na verdade amorfa e vazia dos meteoros), quando percebeu que a estrela tinha uma trajetória invertida, e subia rapidamente, ele com o pedido penso diante do que não poderia ser uma estrela ascendente.

– Uma nave espacial? Eu sorri.

– Um anjo. Que estrela iria tão rápido da Terra ao Céu? Ele, convicto.

E um riso objetivo calou-se, apaixonado, para preferir a verdade mais bonita, posto que a vida aqui já é suficientemente curta e triste (meu riso aprendeu a ser objetivo, mas ainda não deixou de ser poeta).

E o que tem você com estas sentimentalidades?

Espero que ao menos o olhar mais acertado. E não discuto cientificismos: você sempre pode escolher ver o melhor nas pessoas e nas coisas ao seu redor. Depois de vasta observação, concluí que a verdade sempre está a 5 [8.55π + (0.67)²] graus além do óbvio. E não existe nada tão certo que não possa escapar de ser absolutamente triste, sem graça ou indiferente. Balões meteorológicos, pessoas que lhe causam mágoa e dor, situações frustrantes ou ansiedades insolúveis podem mostrar a sua face surpreendente, se você decidir acreditar que isso pode ser visto de outra maneira – apesar das suas evidências – como algo bom. Não se trata de fugir pelo atalho da fantasia, mas conter seu passo apressado e seguir pelo caminho mais bonito, que é sempre o melhor jeito de chegar lá. E você vai chegar; como vai estar no fim do caminho é que vai fazer toda a diferença.

Há quem sem ache muito superior e inteligente por ser capaz de ver as desgraças da humanidade. E afia a criticidade na lâmina do pessimismo, para cortar as orelhas da sua realidade¹. Ora, isso é fácil e eu também o fazia aos treze anos. Permitindo-se crescer, chega-se a conclusão que não basta conhecer, mas "conhecer como também sou conhecido" (I Cor 13: 12). E se Deus escolheu ver em mim algo que valesse a vida do Seu Filho, eu, que sei da minha precariedade, decido ver Seu Filho em tudo e todos ao meu redor. Isso é mais que bom, é preciso. Num mundo com tantos mísseis anti-aéreos, ter paz é escolher ver hostes de anjos velando por nossas cabeças, quando eles começarem a disparar...

Uma semana iluminada.
Luna

¹ A expressão "cortar as orelhas" tem o sentido de "tornar feio". A História nos mostra algumas civilizações afeitas a "enfeiar" pessoas, decepando suas cartilagens.

segunda-feira, 17 de setembro de 2001

Embalos da terça de manhã

Enquanto eu via o World Trade Center desabando diante de um mundo de olhos incrédulos, pensamentos confusos se apresentavam no trapézio da minha mente. Nomes, pessoas, lugares, objetos, passando fugidios e indefinidos. Estranho, mas as grandes comoções nos fazem checar a nossa própria existência com ânsia neurótica, certificar-se de que tudo ainda está onde deveria estar: o teto sobre a cabeça, a cabeça, os membros, a família e os amigos. Então salve a televisão, o telefone e o modem, que me dão a certeza de que eu e os que amo estão longe o bastante – embora ao vivo, bem vivos, viva a via satélite.

Não sei quanto tempo fiquei estarrecida diante da TV comendo meus biscoitos de aveia e mel, mas só depois de algumas horas percebi que aquela sensação estranha de quem não estava entendendo nada se devia em grande parte à minha irmã, que falava compulsivamente, competindo com os comentaristas e repórteres. Foi quando ofereci gentilmente que ela comesse o restante dos biscoitos, que pude ouvir certo repórter da CNN dizendo uma frase comovente: "os americanos estão sendo aconselhados pelos policiais a voltarem para suas casas e dizerem a família que está tudo bem". Era a mesma sensação que me afigurava: abraçar tudo que amo e confiar que está tudo bem.

Tudo bem? É. Mesmo que aviões estejam caindo sobre nossas cabeças, milhares de crianças inocentes estejam sendo mutiladas por bombas no oriente, e ainda me digam que uma onda gigante vai destruir meu amado litoral brasileiro ("e quem sabe então, o Rio será alguma cidade submersa...", profetizaria o Chico Buarque)? Bem, se você me ama e me disser que está tudo bem, eu vou confiar em você, vou ficar tranquila, segurarei calmamente sua mão rumo a uma loja de pranchas de surf.

O ser humano gosta de ser embalado, e se acostuma a isso desde o útero materno. Aqueles sons assustadores de coração batendo, pulmão inflando, ruídos digestivos e ainda aqueles indefinidos que vêm lá de fora, sem que saiba absolutamente o que está acontecendo. Talvez seja como descobrir-se preso, de olhos vendados, numa cabine telefônica no meio da avenida Paulista. É justamente aí que aprendemos que "o perfeito amor lança fora o medo" (I João 4:18), e nos sentimos seguros no calor do embalo materno, que nos garante: está tudo bem.

Quem nasceu para viver na loucura do presente século, ainda vai se deparar com muitas situações assustadoras. As profecias bíblicas não são muito animadoras nesse sentido, já que nos alertam para uma série de acontecimentos catastróficos, como não poderia deixar de ser num mundo que sofre as conseqüências do pecado. Mas a Bíblia também nos aponta um Pai que nos ama infinitamente, e que em momento algum deixará de expressar isso. Aqui na minha versão, contei trezentas e sessenta e cinco versículos onde aparece expressões com o sentido: "Não temais" (uma para cada dia do ano), e os que mais gosto é quando o próprio Jesus diz: "Não temais, sou Eu..."; você consegue ouvir nos últimos acontecimentos, Ele dizendo isso como alguém que está chegando? Deus embala o Seu povo ao longo da História. Quer nos abraçar e dizer: "tudo bem, ainda que as águas rujam e os montes se abalem" (Salmo 46). Nos mostra que estará conosco até o fim, e as presentes dores são apenas parte de um plano perfeito para extirpar o sofrimento da Terra.

Neste momento as pessoas estão procurando explicações e especulando profecias de toda natureza, para compreenderem o que se passa. Sugiro que estudemos mais as profecias, à luz da Bíblia e do Espírito de Profecia, como fonte de tranquilidade e paz, já que é para isso que Deus as proveu. Mas acima de tudo, reconheçamos que agora é tempo de desenvolvermos o perfeito amor. Aprendamos a lançar fora o nosso medo e o temor dos nossos semelhantes também. Não é preciso muito para isso... é só aprender a ser tão explícito como Deus. A maioria das pessoas é capaz de ler a Bíblia por si mesmas, mas nem sempre se consegue fazer isso quando se está com medo e confuso, portanto não espere que elas o façam. Abra as Escrituras diante das pessoas como quem embala. Fale as verdades dela como quem abraça. Leia-as como quem ama, e não se exime de dizer: está tudo bem. E creia nisso, porque assim disse o Senhor (Isaías 41:10).

sábado, 8 de setembro de 2001

Estado de Espírito

Tarde chuvosa, daquelas de cor cinza-tédio, um pilha imensa de papéis ao lado e eu repetindo o refrão de um musiquinha "praise" que saía do rádio, quebrando o silêncio gelado daquela sala, onde só os ácaros me faziam companhia. Quando reparei na letra da música, eu já a havia decorado e batucava alegremente no teclado. Era a coisa mais simplória que um ser humano semi-alfabetizado poderia compor. A tradução da letra dá mais ou menos: "Que alegria, que alegria inexprimível! Que paz, que paz interminável! Que amor, um amor puro e santo! Que alegria, que paz, que amor!", tudo isso numa repetição com ares de mantra, em três acordes tão pobrezinhos, coitados. Mas vou te contar, esta musiquinha diagnosticou com precisão o meu estado de Espírito naquele momento.

Pois é, Espírito com "E" maiúsculo, como deve ser quando falamos do Santo Espírito de Deus. Eu bem que gostaria de fazer uma meditação falando sobre isso, mas acabaria correndo o risco de parecer tão simplória quanto aquela musiquinha, sem que você soubesse nem de longe o que se passa no coração de alguém em perfeita sintonia com o Espírito Santo.

Penso em Davi compondo o salmo cento e cinqüenta, elevado ao mais sublime estado de Espírito. Os eruditos poetas do rei se entreolhando: "Tá, a gente já entendeu o recado, que coisa redundante!"; mas Davi naquele momento era todo alegria. Deus tem hostes de anjos celestiais com habilidade para louvá-lO na mais perfeita harmonia, Ele não precisa de nossa música, mas de corações transformados em hinos de louvor. Ele já conhece todos os mistérios do Universo, não precisa de nossa eloquência, mas recebe nossa mais singela expressão de gratidão e amor.

Não é minha intenção aqui falar sobre teologia da música: há gente muito mais gabaritada que eu para abordar o assunto. Nem quero levar a crer que aquela musiquinha teve o poder de elevar meu coração: meu coração naquele momento estava tão elevado, tão perto de Deus, que qualquer coisa que eu proferisse iria inevitavelmente na mesma direção. Assim, uma saudação àquela secretária que vive de mal humor, o atendimento àquele contribuinte que buscava uma informação, o semblante e a conversa dirigidos aos colegas de trabalho e estudo, e até uma musiquinha cantada no fim de uma tarde tediosa, tinham um só sentido: o Alto.

São sintomas de uma paixão celestial. Para mim, isto é estar em estado de Espírito. Ser grata, reconhecer a presença e atuação de Deus, espargir o amor que Ele emana sobre minha vida. Não é nenhum sentimento grandiloquente - embora grandioso - , e se perfaz justamente numa paz contínua e alegre, tão simples e serena quanto a fé pregada por um galileu chamado Cristo.

Desejo sinceramente que você comece esta semana desfrutando deste estado de sintonia inquebrantável. Estar com o pensamento e a emoção dirigidos ao que há de mais puro e santo: o amor de Deus. Isso faz bem para pele, para o cabelo, para a digestão, é o melhor cosmético (repare como as pessoas vão te achar bonito (a)), é ótimo para toda espécie de estresse, ansiedade ou preocupação, elimina qualquer pretexto para mal humor.

Seja você agora mesmo o mais agradável hino de adoração aos ouvidos de Deus. Nem que nos seus lábios só caiba um repertório sem pudor de chavões que diga: "Aleluia! Que alegria! Que paz! Que amor!"

Uma semana iluminada!

Luna

segunda-feira, 3 de setembro de 2001

Para gostar de graviola

Quanto a gente gosta de uma pessoa, assimila muito dela por "osmose de convivência". Acaba aprendendo a gostar de coisas que antes eram completamente estranhas ao nosso mundinho. Gostar de alguém nos faz reformular conceitos e sentir prazer em permitir-se exceções, até nos darmos conta que não éramos assim tão completos. Faz gostar também do que antes era sem graça, mas só porque não havíamos reparado muito bem, e confesse-se afinal, o sorriso desse alguém nos impede qualquer refutação. "Começamos a ver muito mais no mesmo que sempre vimos e jamais reparamos", diz Artur da Távola. Certa vez, um amigo me falou que foi assim que aprendeu a gostar de cachorros. Semana passada foi minha vez de aprender a gostar de graviola.

Nunca simpatizei com essa fruta. Morei por quinze anos numa casa em cujo quintal habitava um enorme pé de graviola, e hoje sei que veio dele a minha antipatia. Não sei exatamente quando, essa árvore foi atacada por uma praga de besouros que chamávamos "soldadinhos", os quais espalhavam suas larvas brancas e gosmentas por todo o caule e galhos do pé de graviola. E sempre que eu via uma graviola aberta em
minha frente, seu cheiro forte não me apetecia frente a imagem da polpa branca e gosmenta, tão semelhante às larvas dos "soldadinhos". Eu achava aquilo a coisa mais nojenta do mundo.

Mas uns olhos, um sorriso, um copo de suco de graviola, dois canudinhos e afagos estratégicos fazem a gente rever até traumas infantis. Enquanto eu redescobria o sabor da graviola, pensava no velho pé de graviola, que ao final de minhas divagações, se mostrou um motivo nobre – embora não tão doce quanto os argumentos do meu persuasor – para eu aprender a gostar da tal fruta gosmenta.

Lembrei que por causa daquela praga de "soldadinhos", minha mãe resolveu fazer uma poda drástica, e o pé de graviola perdeu folhas e galhos. Porém, pouco tempo depois, novas folhas cobriram-no. Nova poda foi feita, e seguida de muitas outras, cada vez mais violentas, até resumir a árvore a um tronco liso. Da última vez demorou mas...
ele renasceu de novo! E agora totalmente livre das larvas, exibindo graviolas graúdas, como se nada tivesse sofrido.

Pensando sobre esse potencial de regeneração, eu cheguei até o próprio homem, e conclui que fomos criados com uma porção generosa dele. Perdemos a vida eterna em Adão, ganhamos o dom da regeneração em Jesus Cristo. Sua ressurreição é a prova de que a humanidade tem em si a vocação para ser transformada, refeita em cada perda que o pecado reclama no espírito e coração de cada filho de Deus.

Vida, amor, justiça, paz, felicidade: não se pode falar em perda com relação a essas coisas, Deus as fez com a renovação latente. Mesmo que a dor pareça exigir a sensação de amputação, um olhar de fé vê o que foi arrancado ressurgir, em maior glória, como é a vitória de tudo aquilo que se pensava acabado, cuja força se subjuga. Quem pode mensurar a força e beleza da vida, do amor, da justiça e da
felicidade recriadas pelas mãos de Deus?

Me vi diante de uma linda verdade: não há nada nesta vida que possa nos ser tomado, sem que Deus nos devolva em completa renovação e superioridade. Uma crença, um sentimento ou um relacionamento são também obras da criação e recriação de Deus. Por isso não importa o tamanho do vazio ou a ilusão da ausência: entregue a Ele o que você julga perdido. Deus restaura tudo que reconhece como de Sua posse exclusiva. E não apenas concede a renovação, mas com ela, veios de sua Majestade, Exaltação e Eternidade.

Uma semana iluminada!

Luna

domingo, 26 de agosto de 2001

Uma página

"Então, Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E dizendo isto, expirou". As palavras de Lucas 23:46 foram as últimas que ele leu em voz alta antes de deixar a Bíblia sobre a pilha de processos judiciais, e curvar o rosto para esconder uma lágrima tímida.

Eu fiquei alguns segundos sem reação. Estava acostumada a vê-lo sempre sorrindo, com um comentário bem-humorado pronto a ser disparado. De vez em quando cantava o trecho de alguma música que ouvira na festa da noite passada, e brincava com todas as situações, de modo que era impossível para qualquer pessoa ficar melancólica em sua presença. No entanto, naquela tarde, ele havia parado bem na minha frente e perguntado com uma seriedade atípica em seu olhar:

- Me fale de seu Deus. Meus pais já me falaram algo há muito tempo, mas eu nunca de fato O conheci. Não entendo o que você conhece sobre Ele, que te faz recusar ir a todas as festas, ou ir ao bar na sexta-feira. O que você sabe sobre ele que faz você parecer tão decidida em fazer coisas que não parecem inteligentes, como achar divertido passar o sábado na sua igreja?

Esse é um daqueles momentos em que você sente que precisa pensar rápido, mas não tanto que não caiba uma oração nesse pensamento. Eu propus que ele lesse algo comigo, para que descobrisse por si mesmo o porquê desse meu amor que ele considerava tão louco, tão intocável acima de todos os outros amores. Naquele dia a Bíblia estava ali, providencialmente colocada na minha bolsa, e falaria por si própria. Abri-a em Lucas, e pedi que ele lesse apenas uma página, o relato de Lucas 23, que considero o que melhor descreve o sacrifício de Jesus. Enquanto ele lia, eu fazia pequenas intervenções, explicando parte das passagens para que ele entendesse exatamente o quê ali lhe dizia respeito.

Agora ele olhava para mim cheio de perguntas sobre o julgamento, o motivo, com a lágrima na ponta do nariz. "Então é por isso? Você está dizendo que ele fez isso por mim e por você?" Respondi que sim, mas ao contrário do que eu esperava, ele pareceu mais desesperado, triste. Me encarou e disse: "E como você tem coragem de permanecer assim, alegre, depois de saber que matou Jesus Cristo? Pois se ele morreu por nossa causa, todas essas coisas horríveis são culpa nossa, não é? E ele era inocente, você mesma disse! Como pode ficar assim, com esse rosto calmo sabendo que outra pessoa morreu pelas coisas erradas que você fez?" Essas foram palavras de alguém que conhece o peso da injustiça, por enfrentá-la diariamente em seu ofício.

Eu sorri para ele com uma ternura imensa, e imaginei Jesus sorrindo ao nosso lado também. É maravilhoso ver alguém crescendo na Verdade. Peguei a Bíblia e coloquei-a novamente na frente dele. Disse: "Você leu apenas uma página, mas precisa conhecer a história. Há muitas coisas que você ainda precisa saber, então... vire a página!...veja: ´Mas, no primeiro dia da semana, alta madrugada, foram elas ao túmulo, levando os aromas que haviam preparado e encontraram a pedra removida do sepulcro; mas ao entrarem, não acharam o corpo do Senhor Jesus´ (Lucas 24:1-3) Elas encontraram anjos que lhes disseram, veja o verso 5 e 6: " Por que buscais entre os mortos ao que vive? Ele não está aqui, mas ressuscitou..."

Nova tempestade de perguntas, dúvidas, e por fim nenhum sinal de lágrima na ponta do seu nariz feliz. Agora ele havia entendido a minha alegria, e partilhava dela, me falando de uma paz que há muito tempo não sentia. O Espírito Santo fez com que ele conhecesse a lógica do amor divino, se apaixonasse pelo Cristo Vivo, dividisse comigo essa loucura celestial. O melhor de sua conversão, foi ele perceber desde o princípio, que nosso olhar é limitado: alcança apenas uma página de cada vez. Ele renasceu entendendo que na outra página há esperança de que "O salário do pecado é a morte, mas (bendita conjunção) o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor." Romanos 6:23

Muitas pessoas não se permitem ir além nem mesmo de uma conjunção. E por vezes choram achando que é o fim da história, quando um mundo inteiro de amor está logo ali, no simples virar da página. Deus, que conhece a nossa história desde o princípio até o fim, sabe que precisamos crescer, e as lágrimas, por vezes, fazem parte desse processo de aprendizado que nos preparará para o que de fato fomos chamados a ser, presenteados a ter. Enquanto você se detém em avaliar suas dores, Ele já está vendo a glória para a qual você foi feito. No virar de uma simples página, sonhos ficam para trás, mas nascem esperanças luminosas. Ficam para trás também, as falhas e perdas que já não podemos remediar, mas que vão sendo docemente encobertas por novas páginas cheias de bênçãos que não esperávamos vir com tamanha perfeição.

No início desta semana, ouça a voz do Espírito Santo uma vez mais. E se você não está contente com a história que tem lido no livro de sua vida, não permaneça chorando, debruçado sobre ela. Já passou o tempo de aprender com sua dor. Vire a página. Você encontrará um amor vivificante. Você merece ser muito feliz.

Uma semana iluminada!

Luna

"Os sonhos que Eu sonho para você
São mais profundos que aqueles em que você está firmemente abraçado.
Mais preciosos que as melhores coisas que você conhece,
E mais verdadeiros que os tesouros que você possui.
Deixe os velhos sonhos morrerem,
Como estrelas que se vão se apagando diante dos olhos.
Então tome o cálice que eu ofereço,
E beba profundamente dos sonhos que Eu sonho para você."

(The dreams I dream for you - Avalon)

domingo, 19 de agosto de 2001

Para salvar

Outro dia li em alguma crônica por aí, uma pergunta perturbadora: Você já presenciou um inseto morrendo de morte natural? Já viu uma mosca, barata ou pernilongo morrendo solenemente de velhice? E as borboletas, passarinhos e joaninhas? Sabemos que eles morrem, e até contribuímos deveras veementemente para o extermínio do primeiro grupo, mas não costumamos cruzar com um desses bichinhos morrendo sem nenhum motivo aparente, simplesmente pousando e expirando poeticamente, do mais profundo de suas entranhas intactas.

Pois esta semana tive o privilégio de presenciar – pela segunda vez! –a morte natural de um desses misteriosos animaizinhos. Eu esperava o leite ferver quando vi a pequena abelha pousar sobre a pia e, cambaleante, cair de lado mexendo sofregamente as patinhas. Me aproximei com uma cara que deve ter tirado a paz do seu derradeiro momento, e investiguei se ela estava machucada. Mas a abelha estava intacta, toda a sua anatomia no mais perfeito estado. No entanto, ela morria a olhos vistos. Então lembrei que não era a primeira vez que isso acontecia...

Há vários anos atrás, eu e minha irmã presenciamos a mesma cena, onde uma outra abelha moribunda protagonizava uma morte agonizante. Nós assistíamos desesperadas o modo como se contorcia, caía, tornava a equilibra-se, para voltar a cair. As patas, inquietas, mexiam como que pedindo ajuda, mas nós não conseguíamos ver nada que pudesse ser remediado. Nenhuma asa faltando, os meigos olhos sãos, o corpo peludo incólume. Foi quando nos demos conta que a abelha poderia estar morrendo de... fome!! Como não nos demos conta antes!! Corremos até o jardim que minha mãe regava carinhosamente todas as manhãs, e arrancamos meia dúzia de suas margaridas preferidas. Colocamos as flores em volta da abelhinha, e empurramos as corolas em sua direção.

Ora, qualquer abelha do Walt Disney acharia aquele pólen suculento, e se fartaria, sorrindo logo em seguida em nossa direção. Mas a abelha se esquivava, arrastava-se com dificuldade contra as flores, recusava o bálsamo que lhe dávamos, o que nos levou a concluir que aquela abelha sofrera uma desilusão amorosa e queria mesmo morrer! Jamais aceitaríamos que ela poderia morrer de morte natural. As flores, com efeito, serviram de coroa ao seu breve e estranho óbito.

Depois de algum tempo, eu entendi que o ser humano não aceita a morte. Há teorias e correntes filosóficas contrárias a esta idéia, mas o fato é que instintivamente buscamos a vida. Nosso corpo e mente estão condicionados para isto. Por isso sempre reagimos em presença da possibilidade de um óbito, não importa o quanto o noticiário das seis a banalize. Quando conhecemos a Cristo, a Fonte de toda a Vida Verdadeira, é instintivo querermos levar todos os seres a viverem também. Nós, que um dia padecemos sob o jugo do pecado e da morte, sabemos e desejamos que outros saibam como é maravilhoso viver em função de uma Eternidade onde haja vida em abundância.

Mas tenho reparado que por vezes agimos como crianças que, sem reconhecer a real necessidade do ser humano, buscam oferecer-lhe aquilo que, acham em si mesmas, dará salvação a quem beira a morte. Podemos até achar que um corpo de doutrinas perfeito, argumentos racionalmente sólidos, e provas de que pertencemos a religião que prega a Verdade, sejam o que haja de melhor para oferecermos aos nossos semelhantes que morrem por falta de cuidados espirituais. Mas embora todas essas coisas sejam importantes, não são a prioridade em nossos dias, onde tantas pessoas perecem por falta de uma única certeza que lhes dê Esperança. Todas essas coisas serão procuradas espontânea e pessoalmente por aquela pessoa que já teve sua vida salva num Nome Renovador: Jesus Cristo.

Não quero contestar a beleza e perfume das flores que temos oferecido como testemunho da nossa fé. Apenas espero que meditemos se elas têm servido às necessidades mais profundas do ser humano, ou apenas enfeitado sepulturas. Vale a pena pensar que, enquanto dois terços da humanidade tenta disputar com quem está a verdade, e se divide, e dissente, e reclama para si a razão de sua crença, um terço inteiro desta mesma humanidade nunca ouviu o nome de Jesus Cristo.

Neste momentos há pessoas morrendo sem que nós digamos a elas Quem é a Vida. Quando elas descobrirem onde está a Vida – pode ficar tranqüilo – elas também descobrirão o Caminho e a Verdade (João 14:6). E plantarão flores sobre a Rocha.

domingo, 12 de agosto de 2001

Na casa do feirante Josimar

Moro numa cidade linda, cuja beleza morena não ouso descrever, já que outros poetas e cantores o fizeram bem melhor antes de mim. E qualquer descrição não vale uma visita a carinhosa Cidade do Sol.

No entanto, apesar de ser filha desta linda cidade – o que justifica qualquer postura esnobe – eu não fui agraciada com a oportunidade de ter por vizinho qualquer um de seus pontos turísticos mais famosos, como praias de beleza estonteante, dunas de encantadora grandeza ou magníficos coqueirais paradisíacos. Na urbanidade provinciana de Natal, restou-me por atração turística, a ver da minha janela, a antiquíssima e tradicional "Feira do Carrasco", do bairro do Alecrim.

Certamente não é a atração mais elegante, tampouco a mais interessante ao contigente de turistas consumidoidos. Mas eu mesma não me animo a promover nenhum "tour" que lhe diga respeito, visto que não me agrada nem um pouco a idéia de visitar-lhe as bancas históricas.

A "Feira do Carrasco" (até pesquisei, mas ninguém parece fazer idéia de onde tenha vindo esse nome), é apenas uma enorme feira, que nos remete fielmente às origens desse costume arraigado na cultura dos povos, retratando com originalidade histórica, os burgos que brotavam marginais aos grandes feudos, inclusive com a sordidez de detalhes medievais. Mas se você dispensa apresentações turísticas, basta saber que tudo isso significa uma balbúrdia incompreensível de gritos, tomates, galinhas, "trombadinhas" e toda sorte de artigos comerciáveis, desde fechaduras até móveis para cozinha. Dizem que você encontra de tudo. Eu nunca consegui andar um terço dela para conferir a validade da afirmação...

Mas todo esse intróito é para tentar justificar um fato que me ocorreu por esses dias. O que mais faria uma mulher de salto alto (!)* e taileur estar andando na "Feira do Carrasco", desesperada, às dezessete horas de uma quarta-feira, e entrar ofegante na casa do feirante Josimar? Bem, eu tentei fazer crer que poderia ser o amor ao turismo histórico da minha cidade, mas desconfio que você já imagine um motivo mais feminino típico, como, uma meia-calça desfiada, por exemplo. Mas eu tinha um compromisso urgente, e... bem, deixemos para lá: isto há de ser uma meditação.

A casa do feirante Josimar é um dos lugares mais requisitados da Feira do Carrasco. Como o próprio nome do estabelecimento sugere, não é apenas uma banca na feira, mas um pequeno comércio em sua própria casa. Toda a família trabalha junta, e o motivo de honra é vender tudo com o preço da Feira de Caruaru.

Me chamou atenção em especial, o filho do senhor Josimar. Enquanto eu procurava uma meia-calça, ouvi um som sofrível de teclado acompanhando uma voz fina e, diga-se tudo, desafinada. Como não gosto de perder uma oportunidade de observar o ser humano, fingi-me compenetrada olhando umas blusas vermelhas, enquanto ouvia atentamente a conversa de duas mulheres ao meu lado, uma das quais dizia:

- E ele agora gravou um CD, o filho do feirante Josimar, tá sabendo?

Pois é! Ele vai se apresentar na igreja amanhã, é lindo ele tocando, todo mundo vai lá.

Foi a vez do pai ouvir e acrescentar seus adendos. Falou com um orgulho tão grande do filho, que faria o Luciano Pavarotti se morder de inveja. Desfilou todos os adjetivos bonitos que conhecia, ao ponto de dar gosto a gente ouvir mais o pai que o filho. O menino tem uns doze anos, e tecnicamente ainda tem que melhorar um bocado. Mas quem se importa? É o filho do feirante Josimar! Ele canta na igreja, todo mundo vai lá ver ele tocando e até cantando. Não precisa nem ouvir. O feirante Josimar tem sorte de ter um filho tão espetacular assim, e não há quem não se convença disso quando sente o amor que aquele pai –e empresário para contatos – transpira por todos os poros.

Neste dia dos pais, eu achei que o feirante Josimar seria a figura perfeita para apontar um Pai que também sente grande orgulho de o ser. "Vede que grande amor nos tem concedido o Pai: que fôssemos chamados filhos de Deus; e nós o somos" I Jo 3:1.

Não importa se você não é tão talentoso assim. Se não tem tantos atributos como gostaria de ter. Não há nenhum problema em você não ter dado muitos motivos para esse Pai se orgulhar de você, se tem andado distante dEle. Não importa nem mesmo se você não acredita nEle: Deus te ama e acredita em você! Ele tem grandes planos a dois, e quer sonhar junto com você, participar da sua vida. Não é porque você ou eu mereçamos, não tem a ver com qualquer coisa que tenhamos feito. Ele simplesmente nos ama porque é nosso Pai. Tem orgulho de nós e fica feliz de estar por perto.

Acredite, quando Deus olha para você, sente amor. E é o amor dEle quem nos faz santos, justos e dignos perante todo o Universo. Não deixe de estar com Ele em cada momento desta semana: "Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes com temor, mas recebestes o espírito de adoção, pelo qual clamamos:
Paizinho!" (Romanos 8:15)

*Meus amigos entenderão a exclamação...

domingo, 5 de agosto de 2001

Teopoesia - Como águias

"...Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
(...) Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada."

Reinvenção - Cecília Meireles

Nada mais espantava seus olhos. Eles já haviam visto muito, conhecido além da sua vontade, e agora lhe pesava sobre as pálpebras a sabedoria do bem e do mal. Até achava que não lhe caía bem a postura de "ancião de dias", mas não podia deixar de se sentir assim. Muitos lhe tinham respeito, alguns, estima. Para todos os efeitos ele era apenas uma águia velha.

Leonardo sacudiu as penas com alguma dificuldade e tentou se firmar melhor na pedra onde pousara. Diante de si via os vales que percorrera, e tudo que vivera até aquela momento, o cenho franzido com a ansiedade solene que antecede grandes decisões.

Ele precisava de discernimento e força. Nasceu águia, e como tal, destinado para as alturas. Nunca se conformou com a mediocridade, perseguiu seus objetivos com segurança, determinação e coragem. Não obstante, aprendeu muito cedo que tudo o que viesse a ter, seria dado pelas mãos de Deus. Lutava, deixando que esta vontade imperasse. E obteve muitas vitórias.

Enquanto jovem, conheceu o verdadeiro amor em sua plenitude, por isso era fácil sonhar e acreditar. Tinha fé na verdade e a defendia sinceramente. Assim disposto, deu os melhores anos e talentos de sua vida pelas causas que acreditava, realizou grandes conquistas pessoais, que ao mesmo tempo ajudaram a construir muitos outros que vieram após ele e seguiam-lhe o exemplo. Até queria sentir uma pontinha de orgulho por certas glórias que sua fé persistente lhe proporcionara, mas novamente lembrava que fora Deus quem lhe dera tudo, e simplesmente sorria satisfeito.

Mas vieram também as decepções. Foi traído, atacado injustamente, enganado, ludibriado por semelhantes seus, que muitas vezes professaram compartilhar os mesmos ideais. O perdão passou a ser muito mais uma forma de suportá-los. Enfrentou também tempestades e toda sorte de mal tempo: conseguiu vencê-los, é verdade, mas machucou-se bastante, e a cada nova luta, perdia um pouco mais do seu vigor. Com o tempo percebeu que estava mais sozinho, seus velhos e leais companheiros iam escasseando. Nunca tivera medo de parecer incômodo para defender os princípios em que cria, mas quando jovem isso era encarado como intrepidez, agora, como rabugice...

O cansaço falava tão alto, que ele sentiu ser hora de decidir. Deixar-se morrer, abandonando-se numa derrota plácida? Ceder ao peso dos anos, mágoas, solidão, da sua plumagem obsoleta? Deixar-se conduzir pela mão do tempo, agora seu algoz, e acomodar-se vendo tudo pelo que lutou sendo gradativamente destruído, seus sonhos enterrados, seus ideais pisados, objetivos esquecidos, e as crenças, a verdade que defendera e ajudara a construir, esmagadas aos pés daqueles que, sorrindo-lhe num aceno irônico, decretavam o seu passamento?

Leonardo arremeteu o bico contra a rocha. Sentiu uma dor profunda. Bateu de novo, uma vez mais, e o sangue espirrou. Seguiram-se outras violentas pancadas contra a rocha até que seu bico gasto estivesse completamente estilhaçado. Semanas se passaram e agora um novo bico nascera-lhe. Foi a vez então de arrancar, uma a uma, as suas garras velhas, as quais já estava inutilizadas por não terem corte nem tamanho apropriado. A dor era quase insuportável, mas Leonardo pensava que outras águias já haviam passado pelo mesmo processo de renovação, e assim venceram a morte, vivendo mais vários anos. Ele não queria morrer. Não queria aposentar seus ideais - era uma águia! Nascera para as alturas! E nem tempo, nem decepções, nem qualquer oposição lhe tirariam a ânsia de voar! Enquanto houvesse esperança de viver e lutar, não desistiria.

Para continuar, Leonardo precisou se livrar da parte que havia envelhecido nele. Que estavam gastas e apenas lhe faziam sentir-se incapaz de continuar. Foi difícil e doloroso arrancar de sua própria carne aquela aparência de velhice. Mas valeria a pena. Poderia ser que alguns anos a mais de vida não lhe permitissem ver seus ideais triunfarem, mas ele não se entregaria tão facilmente. Se acomodar era fazer parte do erro que sempre combatera, morrer agora, quando tinha chance de continuar, era envergonhar as crenças que defendera.

E eu confesso-lhe que quero aprender a amar como Leonardo. O que mais explicaria a coragem de renovar-se? Se muitos o traíram, ele jamais traiu seus ideais. Se outros tinham medo, ele continuou a sonhar. Ousou ser ele mesmo, ainda sendo o único a fazê-lo. Nenhum ser sob o céu o viu cair dele, nem abandonar a montanha. Eu, e você também, temos bons motivos para desejar amar assim. Temos um Deus que "faz forte o cansado e multiplica as forças de quem não tem nenhum vigor. Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços caem de exaustos, mas os que esperam no Senhor..."¹

Uma semana iluminada!

Luna

¹ Isaías 40: 29-31

segunda-feira, 30 de julho de 2001

Teopoesia - A quem não bateu à tua porta

"Se alguém bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta,
Bater sequer à porta irreal do céu.
Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir,
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta!"

(Fernando Pessoa)

Ela sentava, olhava para a janela e esperava.

Havia um sentimento de tristeza íntima, uma certa ansiedade borboleteando seus olhos castanhos, mas as tardes mornas de Domingo eram tão azuis, que resistiam à melancolia. De vez em quando ela levantava, ia até o velho teclado e ensaiava um compasso de alguma valsa de Chopin. Fazia isso tão distraidamente, que só descobria ao
fundo da melodia, que ela era uma maneira de evocar o objeto de sua espera. Então suas mãos paravam frias sobre o teclado, e ela voltava a sentar-se em frente a janela, esperando e procurando-o em algum lugar daquele azul tépido.

Por que ele não vinha? A mesa estava posta. Seu coração transbordante de amor. As flores no vaso, sobre a escrivaninha. Os lápis tinham as pontas feitas. Papéis em branco ao lado. Tudo ao redor estava tão pronto quanto ela, e às vezes o vento parava de agitar as cortinas, como que anunciando sua chegada, mas... ele não vinha.
Seu amor era um mar agitado, batendo nas mesmas rochas... tão grande – mas que força estranha... – batendo nas mesmas rochas.

Olhou a porta e conteve-se: alguém precisava abrí-la. A porta também estava pronta. Ela o desejou mais fortemente e foi para perto do azul que a janela lhe dava. Mas admirou-se com o que viu: daquele ângulo ela via muito mais que o céu. Percebeu que havia tanta vida lá fora! E à medida em que inclinava o olhar para baixo da abóbada celeste, ela descobria que naquele momento a terra era mais urgente que o céu.

Perscrutou os detalhes para comprovar essa primeira impressão, e o que viu a fez tremer. Havia pessoas passando diante da sua porta! Bem embaixo da sua janela! Pessoas, pessoas, aqui e até a linha do horizonte! Em todas uma necessidade urgente. Elas deviam estar procurando alguma porta também, pois tinham a mesma expressão de ansiedade que os olhos dele possuíam. Mas não era só ansiedade. Ela tentou desvendar o nome preciso, mas tudo que conseguiu foi cumular uma lista de necessidades: confiança, atenção, perdão, compreensão, bondade, perdão, compaixão, doçura, perdão, perdão!...

Pessoas passando diante da sua porta! Bem embaixo da sua janela! Pessoas necessitando! Mas por que ela estava ali tão alheia? Ela tinha uma mesa posta! Flores no vaso, alguém poderia estar buscando flores! Lápis com pontas feitas, papéis em branco! Meu Deus, ela tinha um coração transbordante de amor! Por que ela estava ali dentro? Ah, porque ela esperava. Ela sentava e esperava. Mas as pessoas continuavam passando, todas elas necessitavam! E ela tinha uma porta pronta! Poderiam estar buscando uma porta...

Sentiu que precisava sair. A calma que o céu azul lhe transmitia fora trocada pela extrema urgência da contemplação terrena. A porta estava pronta, por que as pessoas não abriam? A resposta veio áspera, de si mesma:. porque ele, e todas as outras pessoas não buscavam portas, apenas o amor que elas aprisionavam.
Aquela porta estava pronta para ser aberta por ela e mais ninguém. Tola espera... ela nunca estivera pronta! E se ele chegasse? Se ela partisse e não estivesse mais presente quando ele fosse procurá-la? Como ele reagiria se encontrasse a porta aberta, e nenhum vaso, nenhum lápis ou papel em branco?

Ela sorriu, sorriu alegre como a mais dançante valsa de Chopin. Era tão simples... Ele não iria buscá-la ali. Ele estava também na urgência da Terra, caminhando ao lado de outras pessoas que necessitavam Então era preciso partir, e quando ele chegasse, iria encontrá-la em pé, vivendo de nunca chegar, amando sem reter.

Mais que contemplar o azul: doar-se na urgência da Terra e possuir o céu. Esperar com uma fidelidade ativa, pois o amor que tinha para ele não lhe pertenceria menos se semeado no vento. Havia tanto o que fazer, e ser: abrir-se a um mundo que não bateu a sua porta. E quando ele chegasse, iria tomar posse de um amor que era um lago tranquilo, fluindo sempre na mesma intensidade... tão grande – mas que força estranha... – fluindo na mesma intensidade.

domingo, 22 de julho de 2001

Teopoesia - Alberto

"...E o que ele, o coração, aspira, almeja
É o sonho que de lágrimas delira.
É sempre sonho e também é piedade,
Doçura, compaixão e suavidade
E graça e bem, misericórdia pura".

(Cruz e Souza – O coração)

Eu olhei uma vez mais e pisquei meus olhos com força, tornando a encará-los. Eram tão puros aqueles rios, que a água parecia feita de luz e cristal. Ao longe, eu ouvia o grasnar de pássaros, e ao meu redor tudo era verde, de uma paz quase tangível. Mas algo me disse que aquilo não poderia ser verdade, que era um sonho, e a consciência me tomou pela mão levando-me para longe, em direção aos sons estridentes dos pássaros, que ficavam cada vez mais fortes, e pareciam querer pronunciar algumas palavras:

- Tem alguém em casa?!! Abra, abra, por favor!!

Abri os olhos e não deixei de lamentar profundamente a ausência do cenário que contemplava no sonho, enquanto olhava meu quarto pedindo uma faxina. Cocei a cabeça tentando voltar em definitivo à realidade, e reconheci que os sons dos pássaros agora tomavam a forma de vozes agudas e afetadas vindas do portão. Levantei-me, vesti algo às pressas e quando cheguei lá fora, minha mãe já conversava com um
deles: Alberto.

Eu parei na porta, um pouco distante, e ouvi ele falando para minha mãe que meu primo foi encontrado por eles num matagal, violentamente espancado, com vários ferimentos graves na cabeça, inclusive uma fratura craniana, causados por armas típicas de lutadores de artes marciais, enfim, tentativa de homicídio. Alberto e seu amigo, que conheciam bem a vítima, o levaram a casa da avó materna, com quem meu
primo vive, mas a senhora teve um grande choque emocional e nada pôde fazer. Chamaram então a polícia, que o levou até o hospital público estadual, e procuraram minha mãe, que sabiam ser o familiar mais próximo.

De longe o desespero de Alberto parecia esdrúxulo. Suas lágrimas desfiguravam ainda mais o rosto maquiado grotescamente, e deslizando por um vinco junto ao nariz, vinham a cair nos lábios besuntados de batom vermelho. As mãos de Alberto se contorciam pregadas uma a outra enquanto ele falava, se abandonando apenas quando a mão direita saía ao encontro da sua mini-blusa branca, manchada de sangue, onde uma
fina alça insistia em cair-lhe dos ombros magros. Seus joelhos emanavam um ligeiro tremor que se propagava até sua saia vermelha e curta. Olhando assim, de longe, não era difícil de reparar que a história de Alberto era muito parecida à do meu primo, pois ambos viviam num mesmo submundo. Viviam? Pessoas como Alberto não vivem, atuam. Não têm outra alternativa diante da maldade que exala dos mais baixos níveis humanos, único lugar onde eles acham abrigo todas as noites. Maquiam o rosto e o espírito; quando podem, com drogas, quando não, com a ilusão de que são livres e alegres.

O choque da notícia não me fez recuar, antes me atraiu para ainda mais perto de Alberto, sem que ele reparasse em mim. Agora seu desespero parecia mais humano, pois pude observar outros vincos no seu rosto, algumas marcas no seu corpo, expressões . Em cada um desses sinais estava escrito um pecado, marcados ali com fogo e dor. Cada um reclamava para si e para aquele mundo miserável, a alma de Alberto, que já devia crer, como meu primo, que aquele era seu lugar, a prisão que lhe cabia como prêmio por ter buscado uma tal "liberdade". Involuntariamente passei as mãos pelo rosto, certificando-me das minhas próprias marcas. Há pessoas que optam por escondê-las mais a fundo, onde olhos humanos não possam chegar. Alberto as trazia estampadas...por quê? Talvez fosse sua maneira de pedir socorro. Ele vivia sorrindo e contrariando valores, mas era apenas alguém ousando pedindo socorro. Saberá ele disso?

Aquelas mãos nervosas haviam há pouco prestado socorro a um membro de minha família, que agora agonizava. Aquela mancha de sangue na blusa de Alberto, me fazia interrogar por uma humanidade inteira que agoniza, sangrando junto com o Filho de Deus. Jesus Cristo sente a dor, e espera – até quando? – o momento de estancar com Suas próprias mãos, essa ferida aberta que se tornou nossas vidas aqui, neste mundinho. Ele sabe o valor que tem sangue derramado.

Enquanto eu pensava nisso, cheguei tão perto de Alberto que os olhos dele vieram com força em minha direção. Agora, tão próximo dele, seu desespero era também o meu e de todos que simplesmente não agüentam mais. Naqueles olhos eu vi refletido o desejo comum a todo ser humano: "doçura, compaixão e suavidade, e graça, e bem, misericórdia
pura", o anseio universal pela felicidade completa. Me dei conta que esses olhos são a parte do ser humano onde estão fixos o olhos de Jesus, e Ele está assim, perto o suficiente para ver além de nosso invólucro deficiente de humanidade.

Nos olhos de Alberto que eu vi a maior de todas as nossas Esperanças...saberá ele disso? Voltando a sonhar, olhei uma vez mais e pisquei meus olhos com força, tornando a encará-los. Eram tão puros aqueles rios que a água parecia feita de luz e cristal.

Uma semana iluminada,

Luna

segunda-feira, 16 de julho de 2001

Teopoesia - O amor inocente

Chegaram as esperadas férias de julho, e com elas uma promessa: este mês só vou ler poesias e escutar Chopin. Resolvi dar uma pausa com o Direito e outros assuntos mais graves, porque minha alma está sedenta de brandura. Como em uns versos que escrevi há
muito tempo (e nem tive o pudor de revisar):

"Não há mínima pressa em meu viver;
Quero senti-lo até meu passamento.
Vou amar sem cautela e não entristecer,
Por ter a certeza de alçar o momento.

E não me importam sombra ou amargura,
Que venham ter comigo em meu pesar.
Hei de provar do mel toda doçura,
Todas canções, amando, irei cantar.

Lenta, tempestuarei em mares de ternura,
Junto à sandice irei bailar no vento,
Na minha vida acentuar a brandura,

Pois mesmo sendo prazer e tormento,
Que junto à vida, dores transfigura,
O amor encobre todo sofrimento."

Eu ainda cria em pequenas verdades, que eram tolas, mas eram só minhas. Perde-se muito nas buscas fora de si mesmo. Agora quero tudo que houver de doce e terno. Reaprender rimas pobres para combinar "pesar" com "cantar". Dar asas ao pensamento como quem plana na brisa e, como no tempo em que escrevi este sofrível soneto, não me preocupar com nada além da minha felicidade e a de tudo mais que estiver num raio de duas vezes o diâmetro da Terra. As quatro meditações que seguirão este mês, frutos do ócio criativo, terão como tempero uma cheiro de poesia, que é a minha própria essência. São histórias reais, nem mais nem menos que a luta de pessoas que descrevem a palavra humanidade. Dou-me a liberdade de "tempestuar" em mares de ternura com a mesma energia pueril de outrora, mas agora com versos que conhecem além: o poder que o Amor – o Verdadeiro Amor – tem para encobrir todo sofrimento. Deixem-me ousar falar de Deus assim..

Luna


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O amor inocente

"Última flor do Lácio, inculta e bela,
És a um tempo, esplendor e sepultura..."


Flor era inculta e bela. Não nascera no Lácio, mas sem o saber, era lasciva. Naquele momento ela se achava a última, a pior de todas as mulheres. Tinha consciência do esplendor de sua beleza, mas se sentia sepultura: "um sepulcro caiado" diria a mãe. A mãe é quem tinha razão.

Puxou a saia um pouco mais para baixo e releu os primeiros versos daquele poema, tentando se concentrar, mas não conseguia deixar de pensar no olhos do professor de literatura percorrendo-a despudoradamente. "Droga de saia de lycra que não se ajeita!". Ela sabia que não precisava fazer a prova. Como em todos os bimestres anteriores, bastaria assinar seu nome, entregar o exame em branco e esperar o professor em frente ao carro dele. Lembrou dos olhos monstruosos daquele homem vindo em sua direção, o sorriso malicioso com um fio de saliva se destacando enquanto dizia: "boa menina...você vai tirar dez, meu amor". O estômago da garota se contraiu. "Meu amor?"

Inclinou-se um pouco mais sobre a carteira, segurando firme o lápis. Haveria de entender os próximos versos.

"... Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio da ventura e o amor sem brilho!"¹


Flor percorreu as questões que se seguiam com olhos cada vez mais desesperados, intimamente revoltada. Ela sabia que era inteligente, tinha valor. A mãe sempre lhe dissera isso: "nunca deixe que duvidem dos seus valores", mas ela não sabe em que momento ao certo deixou de acreditar em si mesma. Talvez quando percebeu que ser dotada de beleza poderia lhe trazer muitas vantagens. Ganhar cada vez mais através do seu corpo tornou-se um desafio e logo ela se acostumou com isso, todos faziam – essa parecia a lei. Foi desacreditando na beleza que havia dentro dela, em sua capacidade de amar, em sua inteligência; esses era lugares onde ninguém nunca demorava um olhar. Foi começando a duvidar de Deus e Sua justiça, porque seu mundo foi sendo invadido por maldade, interesse e corrupção. Já não conseguia se libertar de seus vícios, nem dizer não aos seus erros, e o tempo, cínico, foi fazendo ser cada vez mais fácil deixar de pensar nas coisas certas. Agora não queria mais pensar nelas. Tudo que tinha de fazer era conseguir mais prazer e diversão, enquanto a beleza ainda fosse sua aliada.

Mas agora ela se sentia estranhamente envergonhada. Lembrou dos olhares odiosos que as garotas da escola lhe lançavam, e das expressões maldosas que os meninos lhe dirigiam. Sempre conviveu com aquilo como se merecesse, como se tivesse nascido para o opróbrio – essa também parecia a lei. E sua saia parecia cada vez mais curta.

"...em que Camões chorou, no exílio amargo..."

A garota fechou os olhos tentando lembrar do significado da palavra exílio. Nada lhe vinha à mente, e as palavras se misturavam confusas: amargo, rude, doloroso – isso ela conhecia bem... "amor, a voz materna..." lembrou dos versículos que a mãe obrigava-a a memorizar quando estudavam a Bíblia juntas. Fazia muito tempo, mas as palavras ainda ecoavam em seu coração. Havia também as histórias que as professoras contavam na classe de estudos bíblicos da igreja, e houve até uma vez em que ela ganhara um prêmio, uma Bíblia azul, porque conseguira decorar um capítulo inteiro do livro de provérbios... um dos versículos dizia: "O que faz com que os retos se desviem para um mau caminho, ele mesmo cairá na cova que abriu; mas os inocentes herdarão o bem". (Provérbios 28:10). Onde estaria agora a Bíblia azul?

Mas ela tinha que lembrar o significado da palavra exílio e apertou mais os olhos; amargo, rude, doloroso, amor, a voz materna... amor... inocentes... amor sem brilho... amor sem inocência. Onde estaria agora a inocência?Haveria alguém tão inocente a ponto de amar? Tudo que ela conhecera sobre o amor foi sem brilho, vazio, egoísta e doloroso. "Olá Camões, eu também conheço o amor sem brilho". Flor não sabia quem era Camões, mas como ele, também chorou, de olhos menos apertados que seu coração. Queria ser capaz de amar de novo, com a mesma entrega inocente e completa de que foi capaz algum dia, mas como fazer isso sem se machucar? Valeria a pena, afinal? Aqui, todos só haviam procurado-a para satisfazer seus próprios interesses, para usá-la e abandoná-la quando fosse conveniente, e sempre que acreditou ter encontrado sinceridade, veio a decepção logo em seguida. Com o tempo ela aprendera também a usar as pessoas e amar coisas: era mais seguro assim... o que fazer para voltar a crer? Se a mãe estivesse ali ela lhe diria; a mãe sempre tinha razão. Mesmo quando se vestia tão mal com aquelas saias de "crente"; saias de lycra não se ajeitam.

Agora Flor estaria completamente só... não fosse a força da voz materna, vindo clara e segura em sua lembrança: "...Pois que com amor eterno te amei"... Jeremias 31:3 Flor abriu os olhos e sorriu. Sim, havia Alguém que ainda era capaz de amar, de derramar Seu sangue inocente por isso. Haveria de existir na cruz de Cristo, uma gota de sangue que lhe pertencia, lhe dando direito a uma vida melhor, a um amor como sempre quis ter junto de si. Havia Jesus, sempre tão rejeitado do seu coração rebelde, mas agora aparecendo como o único ser capaz de amar e se entregar de forma completa e inocente, como ela e ninguém mais seria capaz de fazer. Havia Deus acreditando até o último instante na beleza e importância da sua alma por inteira.

Pela primeira vez, Flor se sentiu acolhida, num mundo que só se importava em colher. E decidiu também amar e se entregar Àquele que estava esperando ansioso para transformá-la. O único interesse daquele Amor era salvá-la, e não dava mais para adiar o momento de ser feliz de verdade.

Andando em passos firmes, Flor enxugou as lágrimas e dirigiu-se até o professor. Ele tinha uma grande interrogação nos olhos e esperava dos lábios trêmulos da garota, uma palavra que demorou, demorou e não veio. Flor rasgou a prova num silêncio que dizia ao professor: "vou recomeçar". Deu as costas àquilo tudo, e seu sorriso tornou-se mais amplo. Como acontece a quem descobre que um Amor Inocente lhe salvou.


¹Língua Portuguesa, poesia de Olavo Bilac.

sábado, 7 de julho de 2001

Canil

Chegara enfim o grande momento. Ela esperou durante meses uma oportunidade, a melhor ocasião, mas agora tomara a decisão: era hora de criar um cachorrinho. A vontade já existia há tanto tempo quanto imperava a solidão (que mundo frio esse nosso), e a companhia dócil, amável e fiel de um animal lhe parecia muito mais atraente que uma consulta nos nomes masculinos em sua agenda telefônica.

Como toda grande decisão feminina, mister foi divulgá-la a todas as amigas, para ouvir sugestões, críticas e deliciar-se com os olhares tomados de uma inveja espantada: "Ela vai criar um cachorro! Ela pode fazer isso!". Lojas de animais foram sugeridas, algumas razoáveis, outras em que ela nunca ousaria entrar, todas deprimentes com suas jaulas minúsculas. Com a testa franzida, ela pensou na maldade que é fazer comércio de vidas , e com o contracheque na mão decidiu que não incentivaria tal prática. Até que lhe veio a idéia iluminada, resplandecente nestes tempos de apagão: escolheria seu cachorrinho num canil.

Ao deparar-se com o centro de controle do zoonoses relutou se uma loja de animais não seria uma visão menos terrível, mas respirou fundo e um pensamento lhe fez continuar: "Não importa o que eu veja, o importante é que estou aqui hoje para salvar um deles" – o sentimento salvador era a propulsão que precisava para sair do carro e ir em frente.

Um funcionário a interpelou na recepção, olhar sonolento, mas muito prestativo. Ela contou-lhe sua decisão, já não mais tão sorridente como o fizera às amigas, mas ele pareceu se empolgar mais que elas. Levou-a até uma ala de paredes brancas cobertas de musgo e com o reboco cheio de falhas, onde havia um portão enegrecido ostentando um cadeado gasto. Os sons que vinham lá de dentro fizeram o coração dela disparar de ansiedade e horror. De repente se viu diante de um corredor, com pequenas celas de ambos os lados, por trás das quais pequenos seres peludos lhe atiravam olhares e latidos comoventes. Alheio a seu nó na garganta, o funcionário caminhava atrás dela falando detalhes do trabalho que era feito com os animais, a importância para o controle de doenças, e - a parte que ela mais temia ouvir – que todos aqueles animais seriam sacrificados caso não aparecesse alguém disposto a "adotá-los". Usam gás; é rápido e indolor. Ela caminhou mais lentamente e reparou que o corredor da morte lhe parecia maior agora. "Poderia ser menor..."

Ficou algum tempo contemplando aqueles olhinhos caninos, alguns dóceis e meigos sem desconfiar de seu destino, outros ríspidos como que prevendo a sorte funesta, e ainda outros brincalhões, serelepes, violentos, tristonhos, cansados, doentes. Mas tinha que escolher só um??? Pensou na cara da mãe vendo ela chegar em casa com quinze vira-latas embaixo do braço. É, tinha que ser só um. Quando limpou a lágrima furtiva que lhe caía do olho esquerdo (como era bom ser mulher nesse momento e não ter que dar motivos para chorar:
cisco, conjutivite, a morte da tia), reparou num gesto de impaciência do funcionário e resolveu fazer tudo rapidamente, sem escolher demais.

Parou em frente a uma cela onde uma cauda de pequinês se agitava freneticamente e decidiu que seria aquele. Ela se abaixou e chegou bem perto dele cochichando: "parabéns, você ganhou a salvação". A pequena bola de pêlos levantou as orelhas, inclinou a cabeça para a direita e piscou.

Quando saía do corredor com o cachorrinho, novo tumulto de latidos e gemidos ecoou fazendo ela cair no choro de uma vez. Agradeceu ao funcionário, entrou no carro com o pequinês no colo e ficou ali um tempo fazendo planos de divulgar ao máximo de pessoas que aqueles cachorrinhos precisavam de outros salvadores. Imaginou a alegria da cachorrada toda saindo dali em bando, para gozar a liberdade num lugar tranquilo, amplo, com bastante comida e carinho.

E por causa de uma paixão incurável pelas coisas do alto, dirigiu seus pensamentos até Deus, num instinto de prece.Ela pensou no privilégio que Jesus teve em ser o Salvador de uma raça inteira que estava condenada à morte. Na alegria com que se dispôs a dar a vida por essa raça inferior, tal qual eu não acho provável que nenhum ser humano se animasse a dar em prol dos cães.

Nos planos que fez para levar toda a humanidade até um lugar de paz, tranquilidade e carinho: o Seu próprio Lar Celestial, onde haveria vida e gozo em abundância. Mas de repente ela pensou no que é a frustração de um Salvador. Imaginou como ela se sentira se abrisse as ortas daquele canil convidando todos os cachorros a virem após ela, para obterem vida eterna e descanso para suas almas, e alguns deles permanecessem e suas celas por acharem aquele malcheiroso antro o melhor lugar para um cachorro se viver. E que alguns deles ladrariam em sua direção: "ora, saia daqui, não acredito em você, você é criação de mentes de cães fracos. Deixe-me com minha ração e minha vida de cachorro porque a morte é uma consequência natural da nossa raça, só nos resta aproveitar o que temos agora", ela não saberia reagir diante desses cães epicuristas! E que dizer dos "caneístas",
que lhe lançariam um olhar de respeito mas murmurariam: "acredito em sua força superior, mas não convém que você interfira em nossa vida de cão". Pior seria se alguns deles, crentes na verdade do convite feito, dissessem que iriam depois, assim que tivessem tempo, pois agora estavam de olho naquele gato em cima do muro, e um cachorro neste mundo precisa sobreviver, e só alcança dignidade se perseguir um gato. Menos mal diante dos que poderiam se arremeter contra ela dispostos a despedaçar-lhe, em violento ataque contra quem só desejava dar-lhe a Salvação...

Ela sorriu interrogando a si mesma quem no mundo daria crédito àquela teologia canina. Ora, era apenas uma divagação, e difícil crer que alguém no mundo além dela tivesse tais delírios. O olhar doce do pequinês parecia querer compreender-lhe. Ela alisou os tufos marrons da cabeça dele, ligou o carro e partiu.