sábado, 7 de julho de 2001

Canil

Chegara enfim o grande momento. Ela esperou durante meses uma oportunidade, a melhor ocasião, mas agora tomara a decisão: era hora de criar um cachorrinho. A vontade já existia há tanto tempo quanto imperava a solidão (que mundo frio esse nosso), e a companhia dócil, amável e fiel de um animal lhe parecia muito mais atraente que uma consulta nos nomes masculinos em sua agenda telefônica.

Como toda grande decisão feminina, mister foi divulgá-la a todas as amigas, para ouvir sugestões, críticas e deliciar-se com os olhares tomados de uma inveja espantada: "Ela vai criar um cachorro! Ela pode fazer isso!". Lojas de animais foram sugeridas, algumas razoáveis, outras em que ela nunca ousaria entrar, todas deprimentes com suas jaulas minúsculas. Com a testa franzida, ela pensou na maldade que é fazer comércio de vidas , e com o contracheque na mão decidiu que não incentivaria tal prática. Até que lhe veio a idéia iluminada, resplandecente nestes tempos de apagão: escolheria seu cachorrinho num canil.

Ao deparar-se com o centro de controle do zoonoses relutou se uma loja de animais não seria uma visão menos terrível, mas respirou fundo e um pensamento lhe fez continuar: "Não importa o que eu veja, o importante é que estou aqui hoje para salvar um deles" – o sentimento salvador era a propulsão que precisava para sair do carro e ir em frente.

Um funcionário a interpelou na recepção, olhar sonolento, mas muito prestativo. Ela contou-lhe sua decisão, já não mais tão sorridente como o fizera às amigas, mas ele pareceu se empolgar mais que elas. Levou-a até uma ala de paredes brancas cobertas de musgo e com o reboco cheio de falhas, onde havia um portão enegrecido ostentando um cadeado gasto. Os sons que vinham lá de dentro fizeram o coração dela disparar de ansiedade e horror. De repente se viu diante de um corredor, com pequenas celas de ambos os lados, por trás das quais pequenos seres peludos lhe atiravam olhares e latidos comoventes. Alheio a seu nó na garganta, o funcionário caminhava atrás dela falando detalhes do trabalho que era feito com os animais, a importância para o controle de doenças, e - a parte que ela mais temia ouvir – que todos aqueles animais seriam sacrificados caso não aparecesse alguém disposto a "adotá-los". Usam gás; é rápido e indolor. Ela caminhou mais lentamente e reparou que o corredor da morte lhe parecia maior agora. "Poderia ser menor..."

Ficou algum tempo contemplando aqueles olhinhos caninos, alguns dóceis e meigos sem desconfiar de seu destino, outros ríspidos como que prevendo a sorte funesta, e ainda outros brincalhões, serelepes, violentos, tristonhos, cansados, doentes. Mas tinha que escolher só um??? Pensou na cara da mãe vendo ela chegar em casa com quinze vira-latas embaixo do braço. É, tinha que ser só um. Quando limpou a lágrima furtiva que lhe caía do olho esquerdo (como era bom ser mulher nesse momento e não ter que dar motivos para chorar:
cisco, conjutivite, a morte da tia), reparou num gesto de impaciência do funcionário e resolveu fazer tudo rapidamente, sem escolher demais.

Parou em frente a uma cela onde uma cauda de pequinês se agitava freneticamente e decidiu que seria aquele. Ela se abaixou e chegou bem perto dele cochichando: "parabéns, você ganhou a salvação". A pequena bola de pêlos levantou as orelhas, inclinou a cabeça para a direita e piscou.

Quando saía do corredor com o cachorrinho, novo tumulto de latidos e gemidos ecoou fazendo ela cair no choro de uma vez. Agradeceu ao funcionário, entrou no carro com o pequinês no colo e ficou ali um tempo fazendo planos de divulgar ao máximo de pessoas que aqueles cachorrinhos precisavam de outros salvadores. Imaginou a alegria da cachorrada toda saindo dali em bando, para gozar a liberdade num lugar tranquilo, amplo, com bastante comida e carinho.

E por causa de uma paixão incurável pelas coisas do alto, dirigiu seus pensamentos até Deus, num instinto de prece.Ela pensou no privilégio que Jesus teve em ser o Salvador de uma raça inteira que estava condenada à morte. Na alegria com que se dispôs a dar a vida por essa raça inferior, tal qual eu não acho provável que nenhum ser humano se animasse a dar em prol dos cães.

Nos planos que fez para levar toda a humanidade até um lugar de paz, tranquilidade e carinho: o Seu próprio Lar Celestial, onde haveria vida e gozo em abundância. Mas de repente ela pensou no que é a frustração de um Salvador. Imaginou como ela se sentira se abrisse as ortas daquele canil convidando todos os cachorros a virem após ela, para obterem vida eterna e descanso para suas almas, e alguns deles permanecessem e suas celas por acharem aquele malcheiroso antro o melhor lugar para um cachorro se viver. E que alguns deles ladrariam em sua direção: "ora, saia daqui, não acredito em você, você é criação de mentes de cães fracos. Deixe-me com minha ração e minha vida de cachorro porque a morte é uma consequência natural da nossa raça, só nos resta aproveitar o que temos agora", ela não saberia reagir diante desses cães epicuristas! E que dizer dos "caneístas",
que lhe lançariam um olhar de respeito mas murmurariam: "acredito em sua força superior, mas não convém que você interfira em nossa vida de cão". Pior seria se alguns deles, crentes na verdade do convite feito, dissessem que iriam depois, assim que tivessem tempo, pois agora estavam de olho naquele gato em cima do muro, e um cachorro neste mundo precisa sobreviver, e só alcança dignidade se perseguir um gato. Menos mal diante dos que poderiam se arremeter contra ela dispostos a despedaçar-lhe, em violento ataque contra quem só desejava dar-lhe a Salvação...

Ela sorriu interrogando a si mesma quem no mundo daria crédito àquela teologia canina. Ora, era apenas uma divagação, e difícil crer que alguém no mundo além dela tivesse tais delírios. O olhar doce do pequinês parecia querer compreender-lhe. Ela alisou os tufos marrons da cabeça dele, ligou o carro e partiu.

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