segunda-feira, 30 de julho de 2001

Teopoesia - A quem não bateu à tua porta

"Se alguém bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta,
Bater sequer à porta irreal do céu.
Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir,
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta!"

(Fernando Pessoa)

Ela sentava, olhava para a janela e esperava.

Havia um sentimento de tristeza íntima, uma certa ansiedade borboleteando seus olhos castanhos, mas as tardes mornas de Domingo eram tão azuis, que resistiam à melancolia. De vez em quando ela levantava, ia até o velho teclado e ensaiava um compasso de alguma valsa de Chopin. Fazia isso tão distraidamente, que só descobria ao
fundo da melodia, que ela era uma maneira de evocar o objeto de sua espera. Então suas mãos paravam frias sobre o teclado, e ela voltava a sentar-se em frente a janela, esperando e procurando-o em algum lugar daquele azul tépido.

Por que ele não vinha? A mesa estava posta. Seu coração transbordante de amor. As flores no vaso, sobre a escrivaninha. Os lápis tinham as pontas feitas. Papéis em branco ao lado. Tudo ao redor estava tão pronto quanto ela, e às vezes o vento parava de agitar as cortinas, como que anunciando sua chegada, mas... ele não vinha.
Seu amor era um mar agitado, batendo nas mesmas rochas... tão grande – mas que força estranha... – batendo nas mesmas rochas.

Olhou a porta e conteve-se: alguém precisava abrí-la. A porta também estava pronta. Ela o desejou mais fortemente e foi para perto do azul que a janela lhe dava. Mas admirou-se com o que viu: daquele ângulo ela via muito mais que o céu. Percebeu que havia tanta vida lá fora! E à medida em que inclinava o olhar para baixo da abóbada celeste, ela descobria que naquele momento a terra era mais urgente que o céu.

Perscrutou os detalhes para comprovar essa primeira impressão, e o que viu a fez tremer. Havia pessoas passando diante da sua porta! Bem embaixo da sua janela! Pessoas, pessoas, aqui e até a linha do horizonte! Em todas uma necessidade urgente. Elas deviam estar procurando alguma porta também, pois tinham a mesma expressão de ansiedade que os olhos dele possuíam. Mas não era só ansiedade. Ela tentou desvendar o nome preciso, mas tudo que conseguiu foi cumular uma lista de necessidades: confiança, atenção, perdão, compreensão, bondade, perdão, compaixão, doçura, perdão, perdão!...

Pessoas passando diante da sua porta! Bem embaixo da sua janela! Pessoas necessitando! Mas por que ela estava ali tão alheia? Ela tinha uma mesa posta! Flores no vaso, alguém poderia estar buscando flores! Lápis com pontas feitas, papéis em branco! Meu Deus, ela tinha um coração transbordante de amor! Por que ela estava ali dentro? Ah, porque ela esperava. Ela sentava e esperava. Mas as pessoas continuavam passando, todas elas necessitavam! E ela tinha uma porta pronta! Poderiam estar buscando uma porta...

Sentiu que precisava sair. A calma que o céu azul lhe transmitia fora trocada pela extrema urgência da contemplação terrena. A porta estava pronta, por que as pessoas não abriam? A resposta veio áspera, de si mesma:. porque ele, e todas as outras pessoas não buscavam portas, apenas o amor que elas aprisionavam.
Aquela porta estava pronta para ser aberta por ela e mais ninguém. Tola espera... ela nunca estivera pronta! E se ele chegasse? Se ela partisse e não estivesse mais presente quando ele fosse procurá-la? Como ele reagiria se encontrasse a porta aberta, e nenhum vaso, nenhum lápis ou papel em branco?

Ela sorriu, sorriu alegre como a mais dançante valsa de Chopin. Era tão simples... Ele não iria buscá-la ali. Ele estava também na urgência da Terra, caminhando ao lado de outras pessoas que necessitavam Então era preciso partir, e quando ele chegasse, iria encontrá-la em pé, vivendo de nunca chegar, amando sem reter.

Mais que contemplar o azul: doar-se na urgência da Terra e possuir o céu. Esperar com uma fidelidade ativa, pois o amor que tinha para ele não lhe pertenceria menos se semeado no vento. Havia tanto o que fazer, e ser: abrir-se a um mundo que não bateu a sua porta. E quando ele chegasse, iria tomar posse de um amor que era um lago tranquilo, fluindo sempre na mesma intensidade... tão grande – mas que força estranha... – fluindo na mesma intensidade.

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