domingo, 19 de novembro de 2000

Out

“Na tua presença, Senhor, estão os meus desejos todos...” Salmo 38: 9

Depois de seis meses de turismo na “Terra da Fumaça” (título carinhoso dado a São Paulo por meu amigo Marcão), chegou enfim o dia de fazer o que realmente vim fazer aqui: a prova para tentar transferir meu curso da UFRN para a USP. Como todos os dias solenes, especiais e esperados, foi um dia completamente normal, com o sol seguindo rotineiramente sua trajetória. Eu me dirigi para o local das provas, tranquila, estando pronta a deixar a vontade de Deus me guiar e certa de que “o coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa vem dos lábios do Senhor” Provérbios 16:1.
Ao contrário de mim, os outros candidatos transpiravam ansiedade por todos os poros, e eu me divertia olhando o modo espantoso como o único membro deles que conseguia se mover - a boca - aliviava a tensão: os que não mastigavam quilos de guloseimas, devoravam lápis (estes em quantidade suficiente para fazer umas duas mil provas subjetivas), ou roíam avidamente as unhas, mordiam borrachas, rezavam e assobiavam, alguns fazendo tudo isso ao mesmo tempo.
Essa atmosfera bélica me fez lembrar o vestibular de 1996, meu primeiro, que prestei para Engenharia Têxtil (embora descobrisse um semestre depois da matrícula que não “prestava” para a área de exatas). A primeira prova foi no sábado, e ficou estabelecido que os adventistas ficariam confinados num local específico, desde as sete da manhã até às dezoito horas, quando lhes seriam entregues as provas. Porém, por um problema de comunicação, nem todos foram avisados de onde seria esse local. Eu fui uma das contempladas...
Faltando cerca de vinte minutos para o início da prova, cheguei à sala onde julgava que seria minha prova, e fui informada que eu deveria me dirigir para o local onde os “sabatistas” ficariam confinados. O detalhe é que ninguém sabia informar onde era esse local, que só descobri depois de uns dez telefonemas e algumas lágrimas desesperadas. Mas como chegar lá? Novamente, ninguém sabia informar. Uma fiscal mais caridosa se ofereceu para procurar conosco pela Cidade Universitária, mas demos voltas e mais voltas sem conseguir achar o destino. Eu já não chorava: entrei em estado catatônico imaginando um longo ano de cursinho. Mas exatamente às sete horas, avistamos o prédio do confinamento: buzina desesperada, clamores desesperados, pernas desesperadas, e a porta do prédio se fechando bem atrás de mim, no segundo posterior a minha entrada.
Desabei num choro compulsivo de alívio, e uma hora depois ainda me agarrava à cadeira para me certificar que tinha mesmo conseguido chegar, que não tinha ficado de fora do evento mais importante da minha vida estudantil...
Ficar de fora não é nada agradável. A minha infância toda sofri com isso porque sou da geração “do meio”, portanto era enxotada das rodas de conversas e risadinhas das primas grandes por ser boba demais, e expulsa das brincadeiras dos primos pequenos por levar vantagem em ser maior que eles. Portanto sei bem como é chato as sensação de não conseguir estar entre os demais, no lugar almejado, em que as coisas importantes acontecem. Qual ser humano gosta de se sentir out, sem participar do mundo ao redor nem ter sua vida inserida numa realidade que deseja mas só os outros participam?
Jesus insistiu sobre esse “ficar de fora”, contando parábolas que retrataram bem como isso é triste. Em Lucas 16: 19, ele falou de um rico que desprezou a vida inteira o mendigo Lázaro, para só depois se dar conta que, não obstante sua aparente religiosidade, ficara de fora das bênçãos divinas. Em Mateus, no capítulo 13, versículo 47, ele conta dos peixes que, já bem seguros nas redes dos pescadores, ficaram fora da pesca, sendo jogados fora por não serem de boa qualidade. No capítulo 25 nos diz de cinco virgens que se embonecaram para a festa de casamento mais esperada e concorrida do ano, mas cochilaram sem lembrar de comprar mais óleo para suas lâmpadas, com as quais iluminariam a procissão do casamento, como era o costume. Tiveram de sair para comprar mais óleo e ao voltar, a festa já havia começado e elas ficaram de fora... um pouco mais adiante, no verso 33, Cristo fala da separação entre ovelhas e cabritos, estes últimos , sendo comunicados que foram condenados a ficar de fora do aprisco do Bom Pastor. E no capítulo 22 de Mateus, Jesus fala de um penetra que queria tanto estar dentro da festa mas não se preparou para a solenidade da ocasião, e não só ficou de fora como foi expulso debaixo de pancada.
Todos esses ficaram a chorar e ranger os dentes, por perderem o lugar entre os demais. Cada parábola explica um motivo para isso: o rico confiou demais na própria justiça, os peixes achavam que só pelo fato de estarem no meio dos outros seriam considerados tão bons quanto deveriam ser, as cinco virgens néscias aguardavam o noivo sem se prepararem para o evento, os cabritos sustentavam o título de cristãos sem jamais se darem conta das necessidades dos seus semelhantes, para amá-los como a si próprios, e o penetra do casamento não atentou que sua condição destoava com o lugar em que desejava estar. Não é preciso fazer muito esforço para perceber uma aplicação espiritual bem visível para todo nós, que como cristãos queremos alcançar o Reino que Ele nos prometeu.
Mas Jesus sempre vai além: ele não dá só o diagnóstico, mas prescreve o remédio. É por isso que a Bíblia também está cheia de relatos de gente que não se conformou em ficar de fora. Que o diga Zaqueu, que tinha todos os motivos para fugir dAquele que podia ver cada um dos seus vários pecados, mas a despeito disso não se conformou (nem com sua impossibilidade física) e chegou ao ridículo de subir numa árvore para ver o Mestre. Tem também o cego Bartimeu, lutando contra a multidão que tentava fazê-lo calar e gritando bem alto por misericórdia, para não ficar de fora de obter a bênção desejada (Marcos 10:46). O mesmo fez a mulher com um fluxo de sangue que lhe consumia, a qual não se conformou em ficar de fora da vida em abundância que prometia o Messias, e desafiando a palavra de todos que a desenganaram, agarrou firme no manto de Jesus e obteve o seu quinhão (Mateus 9:20). E eu não poderia deixar de citar o paralítico, que já passara tanto tempo sofrendo em sua incapacidade, era tão desprezível em face dos homens e tão impotente para chegar a Jesus, coitado... coitado nada! Ele venceu a auto-piedade, conseguiu ajuda e – bem atípico para um paralítico - destelhou até uma casa para não ficar de fora do lugar onde estava o Filho do Homem!
Para quem sabe exatamente onde quer chegar e caminha preparado nessa direção, nunca faltará a recompensa, nunca haverá a sensação de ficar de fora. Deus prepara para nós caminhos que nos levarão a lugares especiais, onde encontraremos a tão sonhada felicidade. Aqui mesmo na Terra já podemos ter um antegozo do Céu, deixando-nos guiar suave e confiantemente para onde Ele nos quer levar. Não vale a pena se conformar em ficar de fora, porque o que quer que nos prenda lá não justifica perder o que nos espera nos planos de Deus. Não é vantagem se acostumar à mediocridade do lado de fora: é só lutando que tomaremos posse do nosso verdadeiro lugar, mesmo que ele nos pareça distante em nossa visão encoberta de lágrimas, dúvidas ou medo. É lá dentro, pertinho dEle que devemos estar.

Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

domingo, 12 de novembro de 2000

Atenção às nuvenzinhas!

“E olhei, e eis uma nuvem ...” Apocalipse 14:14

Depois de sofrer durante cinco meses o inverno de São Paulo (desesperador para quem tinha como conceito de “frio de rachar” a temperatura de vinte graus centígrados), estou, finalmente, tendo o prazer de sentir o meu saudoso sol. Relembrando no calor da pele, minha condição de filha da terra Natal, a colônia morena sentada no litoral brasileiro. Forte dos Reis Magos seu brinco de estrela, ondas de Ponta Negra seu leve vestido branco, moça risonha e indolente, que embora parceira fiel de traquinagens do vento, ostenta o título nupcial de Cidade do Sol.
Tomada por esse saudosismo que ataca os poetas nordestinos longe de casa, resolvi desenterrar algumas peças do meu guarda-roupa que não via há muito tempo, e sair para comemorar a ressurreição das minhas glândulas sudoríparas. Encontrei um vestido claro, leve e florido, o qual combinava perfeitamente com as sandálias carentes de pés há meses, e com o tempo lá fora. Abri a porta de minha casa, respirei fundo a brisa morna e olhei para o céu de azul-vivo-e-vivificador. Vi lá ao longe, uma pequena nuvem negra, quase imperceptível e lembrei-me das recomendações da minha amiga Lucy antes de eu vir para São Paulo: “mesmo que o dia esteja super ensolarado, leve sempre uma sombrinha e um casaquinho na bolsa”, mas convenci-me de que aquela nuvenzinha não era nada no meio do oceano de luz que estava aberto diante de mim. E lá fui eu andando tranquila e feliz.
Uma hora depois eu voltava para casa, o vestido encharcado gotejando água sobre as tiras descoladas das sandálias, que eu arrastava sofregamente contra a correnteza de lama que descia a ladeira da minha rua. Mal conseguia enxergar onde pisava porque o vento forte arremessava a chuva contra mim, e os trovões e raios completavam a cena dantesca. Chegando em casa, ainda mais saudosa do sol de Natal, me perguntava por que eu não dera ouvidos ao conselho da Lucy e subestimei o poder daquela nuvenzinha negra.
- Deveria ter lembrado da história de Elias! – falou um amigo meu, mal conseguindo conter as risadas ao se deparar com aquela criatura desfigurada, parecendo ter sobrevivido a uma enchente.
Deveria mesmo!
Elias orara a Deus para que não chovesse sobre a terra, pois Seu povo havia esquecido completamente dEle, e agora trilhava os caminhos da iniquidade e da apostasia. E durante três anos e seis meses, nem uma gota sequer se precipitou sobre o solo. Mas Elias convidou o povo a se humilhar e tornar para o Senhor, confessando seus pecados e reconhecendo o Deus de seus pais como o Deus vivo. Os profetas de Baal foram eliminados e agora a maldição do Céu devia ser retirada e renovadas as bênçãos temporais de vida.
A terra ainda estava mais ressequida que nunca, mas Elias disse ao rei Acabe: “Pode ficar tranquilo que eu já posso ouvir ruído de abundante chuva” e vai ver até lhe recomendou andar com um casaquinho e uma sombrinha. Depois, Elias subiu ao Monte Carmelo e lá orou fervorosamente confiando que, o mesmo Deus que havia mandado a estiagem ,tinha prometido abundância de chuvas como recompensa do reto proceder, e agora Elias esperava pelo derramamento prometido. Por sete vezes ele mandou seu ajudante ir olhar se havia algum sinal no céu de que Deus ouvira suas orações, e na sétima recebeu a resposta: “Eis que se levanta do mar uma nuvem pequena como a palma da mão do homem” (I Reis 18: 44). O profeta poderia ter pensado que só uma nuvenzinha não queria dizer nada, mas pela fé contemplou nela uma abundância de chuva. Antes mesmo de ver o pequeno sinal no céu, ele tinha certeza que Deus agiria, e clamou em oração pelo que já esperava confiantemente. Que fé! E Elias “era homem sujeito às mesmas paixões que nós” (Tiago 5:17), a diferença é que ele acreditava num Deus cuja palavra é eterna e cumpre cada promessa com fidelidade.
Muitas vezes nos encontramos no deserto de nossa desesperança, morrendo de sede de justiça, amor e paz, mas esquecemos que ele prometeu saciar-nos (Mateus 5:6). Deixamos nossos problemas nos prostrar e nossos sonhos jazem tão ressequidos quanto a terra em que nossos pés machucados estão. Mas não nos apossamos das promessas que Cristo deu para cada problema humano, e que estão registradas na Bíblia, justamente para que não esqueçamos de crer nelas. Experimente apenas lembrar, e se a ferida dói tanto e tanto que você já não consegue nem pensar... abra a carta de Deus para você e leia! Elas estão lá!
É importante esquecer tudo o que o ser humano lhe ensinou sobre promessas. Vivemos num mundo de promessas quebradas e desde cedo aprendemos que boa parte do que os seres humanos nos prometem não passam de mentiras, ou alimento de ilusões. Eu bem sei disso! Tudo começou com a serpente lá no Édem, prometendo que Eva viveria para sempre. Depois minha professora me garantiu que Papai Noel deixaria um presente embaixo da cama e tudo que eu vi foram minhas sandálias. Veio então minha madrinha, que me deixou desde o cinco anos até hoje esperando uma boneca de presente. E seguiram-se a série de decepções: as juras de amor eterno do primeiro namorado, o pagamento do salário atrasado no primeiro emprego, a amizade que não resistiu à primeira prova, a plataforma política do candidato a quem dei meu primeiro voto, tantas outras que você também deve conhecer bem. E aí acontece uma coisa interessante. Sempre que uma nova promessa surge, tendemos a reagir a ela segundo nossa história de decepções com todas as promessas não cumpridas. E de repente até as promessas de Deus podem nos parecer sem força... mas é exatamente isso que o nosso arquinimigo quer. Porque se duvidarmos das promessas de Deus, fechamos as portas para que elas se cumpram em nossas vidas.
Por isso creia. E mesmo que o coração teime, que a razão questione, que há muito tempo você esteja esperando uma gota de bênção para refrescar sua angústia, e o sol castigue sem que você sinta o menor prenúncio da resposta divina, creia na promessa que Deus reservou para você. E em seguida dê mais uma olhadinha no céu. Talvez perceba uma pequena nuvenzinha lá ao longe, e veja ela crescer proporcionalmente a sua fé e se derramar copiosamente sobre você.
Se mantermos o hábito de erguer o olhar do caminho desértico e o lançarmos com fé ao céu, nunca perderemos de vista os sinais de que Deus está bem perto e agirá no tempo certo. Não duvide das promessas e continue olhando para cima. É de lá que virá a solução e, muito em breve, o cumprimento da mais bela das promessas. A escritora Ellen White, não era meteorologista, mas sabia bem o significado de vigiar o céu. Uma das visões que o Espírito Santo permitiu que ela tivesse, me comove muito e gostaria de concluir partilhando-a com vocês:
“Surge logo no Oriente uma pequena nuvem negra, aproximadamente da metade do tamanho da mão de um homem. É a nuvem que rodeia o Salvador, e que, a distância, parece estar envolta em trevas. O povo de Deus sabe ser esse o sinal do Filho do homem. Em solene silêncio fitam-na enquanto se aproxima da Terra, mais e mais brilhante e gloriosa, até se tornar grande nuvem branca, mostrando na base uma glória semelhante ao fogo consumidor e encimada pelo arco-íris do concerto. Jesus, na nuvem, avança como poderoso vencedor.(...) Com antífonas de melodia celestial, os santos anjos, em vasta e inumerável multidão, acompanham-nO em Seu avanço. Aproximando-se ainda mais a nuvem viva, todos os olhos contemplam o Príncipe da vida. Nenhuma coroa de espinhos agora desfigura a sagrada cabeça, mas um diadema de glória repousa sobre a santa fronte. O semblante divino irradia o fulgor deslumbrante do Sol meridiano. “E no vestido e na Sua coxa tem escrito este nome: Rei dos reis e Senhor dos senhores.” Apoc. 19:16. Os justos clamam, a tremer: “Quem poderá subsistir?” Silencia o cântico dos anjos, e há um tempo de terrível silêncio. Ouve-se, então, a voz de Jesus, dizendo: “A Minha graça te basta.” Ilumina-se a face dos justos, e a alegria enche todos os corações.”
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

domingo, 5 de novembro de 2000

Sei de um lugar de paz

“Sei de um lugar de paz, longe de toda dor,
Aonde vou a luz buscar.
Entre a vegetação, prostrado em oração,
A Deus entrego o meu pesar.
Bem cedo de manhã, ou no cair do sol,
Eu deixo lá o meu temor;
E deste bom lugar eu saio pra enfrentar
A vida com muito mais amor”
(Lugar de Paz – Hino 413 do Hinário Adventista)

Sempre encontrei paz nas coisas brandas. A felicidade não se me revela na explosão, no tumulto do êxtase nem na perda dos sentidos, como muitos a entendem. Felicidade, para mim, sempre teve ares de calmaria, plácida e segura, mãos dadas ao equilíbrio, irmã da paz.
E quando lembro dos momentos em que vivi o amor na sua mais profunda expressão, vejo-o suave e tépido, chamando por minha entrega com mansidão sobremaneira persuasiva, inquestionável. Vejo a mim recebendo-o com pureza; na confiança que sobrepuja o medo, na consciência que dá sentido às sensações, na escolha ética que substitui o impulso do instinto, na razão que corrobora o sentimento, na certeza que vence a defesa, no carinho em detrimento da carícia, na renúncia que toma o lugar da auto-satisfação, na liberdade que convence de um único caminho, e sempre, na paz de uma calma celestial.
Penso que Deus tem os mais preciosos sentimentos, tais como o amor e a felicidade, bem como a Sua própria presença , guardados para o ser humano que os procura na contemplação da paz, daquele que necessariamente aguça todos os sentidos, esquecendo-se de si mesmo para encontrar-se em seu verdadeiro lugar. Os tesouros são entregues aos que se entregam completa e confiantemente à missão de os buscar, e para os achar há que, necessariamente, ir até onde eles estão. Os tesouros que Deus reservou para serem sentidos por nós estão escondidos num lugar de paz, onde a verdade das coisas humanas se revelam.
Onde é esse lugar? Pode ser no templo de oração, pode ser o ônibus na volta do trabalho, pode ainda ser no quintal da sua da sua casa, na beira da praia, no alto da montanha, no leito da doença, no banco do seu carro, esperando a esfiha na lanchonete, num abraço carinhoso da pessoa amada, pode até mesmo ser exatamente aí no lugar em que você está. O lugar de paz é aquele em que você pára e se dá conta que pode ter tudo aquilo que Deus sempre sonhou para você. E mais: esse lugar é quase sempre confundido com o fim, porque é diante dele que chegamos quando sentimos já não haver nada em nós, que nossos planos falharam e o que construímos com nossas mãos não nos deu o que queríamos.
Certo dia, se aperceberam disso os seguidores de Jesus de Nazaré.
A tarde caía silenciosa e uma atmosfera deprimente enchia todos os espaços. Reunidos dentro de uma casa trancada à sete chaves, os discípulos sentiam que havia chegado o fim. Tantos planos para o Reino de que o Mestre falara! Tantos sonhos de um novo Israel sob o comando dEle! Tanto poder que Ele demonstrara, convencendo-os que seria capaz disso! E agora... ele jazia num sepulcro. Aconteceu tudo tão rápido! Pedro até que tentou evitar que aquilo acontecesse, se dispondo a enfrentar quem fosse para manter o Mestre junto de si. Mas Jesus o repreendera e partiu para nunca mais voltar... de que adiantara terem abandonado o lar e partido para o desconhecido para viverem com esforço, privação, perseguição e abnegação, com tanta coragem e sofrimento? Relembravam cada momento sem conseguir assimilar aquela perda não planejada. Os momentos bons passados ao lado de Cristo, os milagres, a autoridade dada para vencer o mundo, os ensinos preciosos que rememoravam com carinho e que levariam por toda a vida... mas agora... agora estava tudo terminado. O que fazer? Esquecer tudo aquilo e voltar à antiga vida? Impossível! Conviver com Jesus mudou todos os padrões daqueles homens, que já não viam a Deus, ao mundo e às pessoas com os mesmos olhos e anseios de antes. Tinham chegado muito perto da felicidade, e qualquer coisa abaixo disso lhes figuraria a mais tediosa frustração.
Mas “veio Jesus e pôs-se no meio deles” (João 20: 19), e aquele lugar mudou. Em Sua primeira aparição aos discípulos, depois de ressurgido, o Salvador a eles Se dirigiu com as palavras: “ Paz seja convosco”, então “abriu-lhes o entendimento para compreenderem” (Lucas 24:45) e os discípulos encontraram ali, onde antes habitava o medo, a ansiedade e a angústia, um lugar de paz. De repente tudo lhes pareceu claro aos seus olhos, porque simplesmente pararam de olhar para si mesmos e viram o que Deus tinha planejado para eles. Viram, e aguçaram os sentidos para tocar na condição que lhes estava reservada terem, se houvessem, desde o início, permitido o Espírito Santo falar mais alto aos seus corações. Desapontados consigo mesmos, identificaram seus próprios erros, reconheceram onde falharam, sentiram seus corações tão quebrantados que seus olhares eram um pedido de perdão. E o que parecia ser o fim tornou-se o início de uma nova e abençoada caminhada.
Jamais tornariam a ter aquele contato íntimo que o Salvador entreteve com eles por três anos, mas agora tinham descoberto o tesouro: entenderam o amor de Jesus, tomaram noção do Seu significado em suas vidas, e descobriram que, nesse período de convívio, fora lhes dado a perceber a grandeza da felicidade que lhes estava reservada, bem como concedidas graciosamente todas as chaves para chegar até ela. Uma transformação profunda ocorreu naquelas almas, e eles saíram daquele lugar de paz, prontos para enfrentarem a vida com muito mais amor, segurança, equilíbrio, maturidade, verdade, esperança e, é claro, a mais sublime e inexpugnável paz.
Não havia mais a ânsia apaixonada e cega dos próprios desejos, porque ela nunca deveria ter existido. Nem nunca mais existiria, depois da visão reveladora sobre a Pessoa do Amor, porque os discípulos encontraram a Verdade de Deus e de si mesmos na calma introspectiva e renovadora daquele bom lugar...
Deixe Jesus entrar agora e faça desse lugar, o seu lugar de paz. Olhe bem e perceberá que, no muro que lhe parece pôr fim ao caminho há uma porta. Ele diz: “Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a Minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo.” Convide-o a ficar contigo. E prove, para nunca mais esquecer, seu ser existindo através dos sentidos de Deus.
Um sábado feliz e iluminado.

Lux Lunae

domingo, 29 de outubro de 2000

Deixa ir a ti...

“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu...” João 3:16

Esta semana foi uma das mais duras desde que cheguei em São Paulo. Devido a uma mudança não programada de casa, eu me cansei muito, física e emocionalmente (não tenho grande facilidade em lidar com mudanças bruscas de quaisquer tipos), e resolvi passar numa livraria cristã para procurar um livro interessante que me ocupasse a mente e animasse o coração. Divórcio... como amar seu marido...aprenda a criar seus filhos...o sexo são... testemunhos de sobreviventes de guerra...vícios: como combatê-los... comida assassina...puxa! Mas que deprimente está o nosso mundo! Resolvi recorrer à boa e velha Bíblia que fala de um tema leve e ao mesmo tempo poderoso para dar a solução de todos os problemas: o amor de Deus. E como já há muito escrito sobre como sobreviver ao desamor, eu resolvi escrever sobre coisas mais simples, tentando descobrir como viver o amor.
Decidi falar sobre peixinhos. Mais precisamente os peixinhos da Lagoa de Muriú, lá no RN. Minha família tem um pequeno sítio nesta cidade praiana. À quinze minutos da casa fica a praia mais bonita do mundo, à vinte minutos uma lagoa magnífica entre dunas de beleza estonteante, e à cinco minutos, uma grande lagoa da qual praticamente apenas a família usufrui, por possuir os terrenos da margem. Tive o privilégio de passar bons momentos de minha infância nesse pequeno paraíso, junto com primos, tios e avós.
Na lagoa mais próxima à nossa casa, costumava brincar por horas com os peixinhos, que chamávamos “piabas”. Bastava ficar quieta um pouquinho e eles começavam a se aproximar, às dezenas, centenas, incontáveis, nadando ao redor e de vez em quando arriscando uma mordiscada de leve, como suaves beijinhos. Mas um único movimento na direção deles e... adeus! Todos iam embora em segundos! Algumas vezes fazíamos apostas para ver quem conseguia pegar um deles... no meio daquele cardume imenso parecia fácil, mas nunca ninguém, nem adulto nem criança conseguiu, dada a rapidez e reflexo dos pequeninos. E o jeito era usar truques... pegávamos um pano grande, enchíamos de farinha de mandioca e o afundávamos levemente na água. Os peixinhos avançavam sobre o banquete, e aí era fácil pegá-los; bastava levantar rapidamente o pano, encurralando-os. Na hora a sensação era maravilhosa: “consegui te pegar!! Vou cuidar de você ter sempre seus beijinhos!!”. Depois os colocávamos em um vasilhame com água da lagoa e em poucas horas... estavam todos mortos! Por isso, aprendi bem cedo que era melhor ficar esticada como um jacaré na beira da lagoa, recebendo os beijos dos peixinhos, deixando apenas eles virem até mim, sem nenhuma pretensão de posse, recebendo seus carinhos aquáticos sem fazer absolutamente nada para convencê-los a ficarem sob meu controle.
Foi difícil aprender a ser assim com os peixinhos, e ainda é com os homens e com Deus! Porque somos ensinados a amar com trocas. Para eu merecer o amor de alguém tenho que dar-lhe algo de muito especial, e então a pessoa terá que me dar algo muito especial também! Logo em seguida, estaremos presos pelo laço do amor, o que significa que, para a vida inteira, possuirei o doce favor do meu ser amado. Certo? Errado.
O amor pressupõe trocas, mas resumi-lo apenas a trocas, é torná-lo interesseiro e egoísta, é querer determinar o que e o quanto o outro tem a lhe dar, quando você poderia simplesmente receber e não se preocupar em buscar mais. O amor, sem dúvida é capaz de doar tudo de si, mas jamais irá cobrar que o outro o faça na mesma intensidade, para que possa sentir-se correspondido. É muito mais eficaz, numa relação de amor, dar sem interesse e sem cobrança, parar de querer encaixar o outro nos moldes do teu conceito de “dar amor”, e deixar ir a você o que ele tem para te dar.
Quando a gente aprende a amar, antes de tudo, aceitando, sem toma-lá-dá-cá-assim-do-jeito-que-eu-quero, o amor começa a fazer muito mais sentido. Aproveita-se tudo que se tem ao invés de ficar se lamentando o que não tem. Não se criam expectativas quanto ao futuro porque o presente está sendo construído com o aproveitamento feliz de cada momento. Cada nova conquista é motivo para festa e não para ansiedade. Cada passo em direção ao outro flui naturalmente, as trocas acontecem num ambiente de respeito e sinceridade, e ninguém se fere. Há gente, no entanto, que não concebe amor sem dor, uma dor profunda no peito, uma forma prazerosa de morrer aos poucos, uma ferida que, ao contrário da de Camões, dói e se sente vividamente... isso pode até encontrar apoio em alguma corrente poética ultraromântica, mas não é o conceito bíblico de amor. Outro tanto se especializa em prestar gentis favores para cobrar o preço em seguida: dou uma mãozinha ao amigo e ele me dá três pés, faço um agrado sexual ao namorado e ele será eternamente meu, me torno um cristão "administrativamente-correto" e recebo o respeito ( e outras "cositas más") da liderança e irmãos da Igreja. Isso basta! Pelo menos como substituto made in Paraguay do amor...
Amor abençoado, produtivo e forte é o amor dado de graça. Aquele que tudo sofre, sem amargura; tudo crê, sem precisar ser cego; tudo espera, sem ansiedade; tudo suporta porque se sabe vitorioso. Tal qual o amor de Jesus por mim e você. Amor de tal maneira grande, que se deu, para que todo que nele crê, não pereça, mas tenha a vida eterna...
Por isso, esse conceito de amor-troca não funciona com Deus (e funciona com alguém?). Há quem passe a vida preocupado em “barganhar” com Ele: “Deus, veja como sou bonzinho! Fiz tantas coisas certas, cumpri a Tua Lei e as dos homens à risca, e até as regrinhas mais intrincadas da Igreja, então o Senhor tem que me amar muito, não é mesmo? Sou ou não Seu filho preferido, fala a verdade!?”
Então eu penso nAquele olhar que há dois mil anos atrás buscava com amor infinito os olhos dos pecadores. Penso nEsse olhar poderoso buscando os olhos da prostituta que nesse momento chora, no preso marginalizado que agora clama, no jovem viciado que perdeu a vontade de viver... quanto amor dado de graça! Penso nos olhos de Jesus, buscando os meus olhos, os quais jamais poderiam encará-lO sem se encherem de lágrimas e vergonha. Este Jesus olharia o homem bonzinho, o qual eleva as mãos cheias de obras em Sua direção. O cheiro de justiça-própria incomoda o Filho de Deus, mas Ele se aproxima, abraça o pobre homem e diz: “Filho, você quer trocar isso por meu amor? Desculpe, eu não posso fazê-lo, porque isso é muito pouco, mal vale o meu perdão... meu amor por você é tão grande que a única coisa que você pode fazer para possuí-lo é dar a si mesmo a mim. E isso não é uma troca, é a simples aceitação do que já foi comprado para você...”
Amor divino é assim; se dá e sabe receber. Já aprendeu há muito tempo que o valioso não é possuir, controlar, arrancar, exigir, manobrar, violar para conseguir ser correspondido. E recebe o outro, com seu melhor e pior, com o que tem. O poder transformador do amor virá em seguida imputando a Sua Justiça... com todas as coisas sendo suavemente acrescentadas...
Um sábado feliz e iluminado!!

Lux Lunae

domingo, 22 de outubro de 2000

Gostinho de Deus

“Eu sou a videira verdadeira...” João 15: 1

A tarde do sábado passado foi uma das mais agradáveis que já tive. A manhã já tinha providenciado que o espírito estivesse leve, depois de assistir um culto de poesias e músicas sacras realizado pelo coral ACASP. A mente estava em harmonia com a brandura do dia claro e fresco, e o corpo satisfeito por um almoço que foi um verdadeiro gozo gastronômico. Além disso, eu ainda tinha a companhia do ser amado procurando comigo o lugar mais bonito das redondezas para fazer sesta e festa.
Encontramos uma pracinha linda, pequena mas alegre e aconchegante. O lugar perfeito para aquela “contemplação da natureza sem responsabilidade botânica”, só para admirar a criatividade Divina.
Pombas embaixo de uma enorme seringueira, bem-te-vis no tronco de uma árvore altaneira, passarinhos azuis brincando numa pitangueira... espere! Uma pitangueira! Dá para acreditar numa pitangueira carregada de frutos no meio de São Paulo? Mas ainda havia a apoteose: uma amoreira!! Eu nunca havia provado uma pitanga também, mas à amora acrescentava-se o desejo que sempre tive de sentir seu sabor de verdade. Elas sempre me pareceram tão suculentas nas embalagens de balas e doces! Colhemos as frutinhas com avidez. Que frutinhas lindas! Que cor fascinante! que formato admirável! que gosto... gosto...hann...estranho!!! Não era o gosto das balas e doces, era absolutamente diferente do que meu paladar tinha convencionado a chamar “gosto de amoras”. Contei isso para o meu namorado, que replicou com sua tese do gosto das cores: “o que você tinha provado não era o gosto da amora, mas um gosto vermelhinho. Esses gostos artificiais são assim: dão nomes de frutas a gostos que na verdade nem chegam perto do original, são apenas gostos vermelhinhos, amarelinhos, verdinhos...”
Isso me fez lembrar um outro lugar lindo, para onde eu gostaria que você olhasse agora. Também há árvores diversas e frutíferas ornamentando o local, e treze homens caminham por ali lentamente. Um vai à frente falando suave e mansamente, mas Suas palavras envolvem a cada um dos que O ouvem, como uma brisa refrigerando a alma. A lua esparge sua clara luz, revelhando-Lhes uma florescente videira, para onde Aquele homem de voz poderosa aponta e diz: “Eu sou a videira verdadeira...”
Embaixo dessa videira encontraremos descanso, segurança, proteção e alimento. Seus frutos pendem dos ramos para saciar nossa fome de amor e justiça, para nos dar forças e revigorar o ser cansado das lutas, derrotas e decepções. Basta estender a mão e sentir seu delicioso sabor.
Há no mundo ao redor todas as tentativas possíveis de enganar o paladar, com gostos artificiais que imitam sem jamais chegarem perto do sabor de paz que tem os frutos da Videira. Há até mesmo árvores se proclamando videiras e oferecendo o doce e enganoso fruto, com promessas e prazeres fáceis e tentadores. Como produtos artificiais, seu objetivo é enganar e viciar o paladar. Mas quem escolhe a Videira Verdadeira, terá alimento e nutrição para nunca mais sentir fome outra vez.
Há vida em abundância no gostinho de Deus. Mas esse é um gosto que nosso paladar espiritual tem de se acostumar a conhecer e buscar com discernimento. Existem muitos frutos cheios de corante e sabor artificial prontos para nos ludibriar e levar-nos à desnutrição do espírito.
E cuidados redrobados! Esta semana li uma coisa interessante sobre a língua: quando comemos algo excessivamente doce, as papilas gustativas, responsáveis pela detectação dos sabores, ficam entupidas pela glicose, e qualquer outro alimento que você provar a seguir parecerá sem gosto. Experimente comer um quindim e tomar um suco depois.
Com nossa espiritualidade não é diferente. Se nos acostumamos demais aos sabores adocicados e artificiais do mundo, chegará o tempo em que não mais perceberemos qual o verdadeiro gostinho de Deus, e poderemos rejeitar os frutos da videira por acharmos que eles ficaram, de repente, muito insípidos ao nosso paladar...
Seja o Cristo vivo nossa vida e sustento em cada momento de nossas vidas, e como fez Daniel, resistamos ao banquete dos ímpios. É acostumando o paladar às coisas do céu, que tomaremos lugar na promessa: “Bem aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordeiro”. Apocalipese 19: 9
Uma semana feliz e iluminada...

Lux Lunae

domingo, 15 de outubro de 2000

Diante do mar

“Então me mostrou o mar da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro” Apoc. 22:1

Como vinte e cinco mil paulistanos, decidi passar o fim-de-semana no litoral, e me dirigi até a casa de um amigão no Guarujá. Fui na sexta-feira, um dia depois do feriado, para evitar o congestionamento gigantesco, mas confesso que meu coração ansiava pela visão majestosa do mar, sentir o cheiro da maresia, pisar a areia macia, respirar a brisa úmida. Quatro meses sem estar numa praia, longe do clima litorâneo que eu tanto amo e onde cresci... e eis que ele surge diante de mim. Enorme. Com a grandeza realçada pelas rochas altivas que formam a paisagem da serra.
Me senti cada vez menor...meu peito ía apertando à medida que eu chegava mais perto do mar, aquele aperto de “saudade matada” que a gente sente quando dá um abraço em alguém que ama e não vê há muito tempo. Geralmente, praia é encarada como sinônimo de alegria, diversão, agito. Eu porém sempre a encarei como pretexto para reflexão. E agora muito mais, já que aquela paisagem me envolveu numa atmosfera de saudosismo que “encharcou” todos os meus sentidos de água salgada –as minhas lágrimas traduzindo ondas de sentimentos.
Gente entusiasmada em mergulhar nas ondas. Inexplicável estusiasmo aquático. E eu mergulhava cada vez mais fundo em mim. Uma menina passa de biquíni vermelho. Deve ter cinco anos... brinca com a areia, e a simplicidade do que a vida significa para ela, naquele momento, me atrai. Lembrei de quando meu pai levava a mim e as minhas irmãs para a praia da Via Costeira em Natal, e foi lá que eu aprendi a primeira lição sobre perdas.
Certo domingo, depois de muito tempo brincando nas areias grossas e águas exibidas daquela praia, nos dirigimos até o carro para irmos embora. Eu, como a maioria das crianças, corri na frente, zombando das minhas irmãs que vinham atrás reclamando da areia quente. Quando atravessava a rua que me separava do carro, fui surpreendida pela freiada brusca de um outro carro que, lembro bem, ficou com o pára-choque a uns dois centímetros de mim. Meu pai observava tudo do outro lado da rua, e quando o motorista foi embora, ele e mais dois policiais que estavam perto correram , não acreditando que eu pudesse estar intacta, dada a velocidade com que o carro se arremeteu contra mim. Meu pai, nervoso como jamais o vi, me abraçou e chorou compulsivamente. Eu não dizia uma palavra... foi a primeira vez que vi meu pai chorar, e além do susto que passara a pouco, me assustava ainda mais com a dor que ele demonstrava. Depois de algum tempo ele recobrou a calma, entramos no carro e fomos embora. Ele foi o caminho inteiro brigando comigo, predizendo mil castigos, e de vez em quando olhava para trás, bem nos meus olhos, como que certificando-se de que eu realmente estava ali.
Até então eu nunca havia parado para pensar que algo poderia me separar do meu pai. E que caso isso acontecesse, ele iria sentir tamanha dor. Em minha mente, tudo era para sempre, e a coisa mais próxima que eu sentia de perda era a saudade quando ele demorava a chegar do trabalho... mas eu esperava com a certeza de que sempre haveria mais um abraço. Até aquele momento, eu nunca havia parado para pensar que talvez eu não pudesse voltar a vê-lo, e que meu abraço ficaria inerte nos braços, cada vez mais frios. Eu não me preocupava em ficar de mal dele, pois para mim sempre haveria o momento depois de dizer que eu o amava. E quando eu ficava com medo de morrer porque minha avó falou que o mundo ia se acabar, ou meu cérebro ia derreter porque a febre estava muito alta, eu não tinha dúvidas que tudo ficaria bem quando ele sentasse do meu lado, pusesse a mão sobre a minha cabeça e orasse por mim, me dando seu carinho e voz suaves até que eu dormisse. A partir daquele momento na praia, eu cresci um pouco mais na ciência do bem e do mal...
Depois vieram outras perdas.
Meu sagui, chamado Mikimo, meu cachorro Max, minha cadelinha Funny. Até que este ano eu perdi duas pessoas bem próximas, dois amigos que me deram a noção exata do que a morte significa para o coração humano. O primeiro foi o Jairo, e logo em seguida o Felipe Veras. Entendi, sem jamais aceitar, como dói a falta de alguém que amamos e como demoramos a valorizar com exatidão a importância da sua simples presença. O primeiro impulso é pensar que acabou, e que você também fracassou. A solidão atordoa como se a morte gargalhasse em nossos ouvidos. Aí, tudo fica mutilado, incompleto, impotente, tudo tem sabor de nunca mais, cheiro de desesperança, há tantas dúvidas que até o nosso caminho parece incrivelmente torto e desfigurado.
Minhas reflexões à beira-mar não foram em vão. Ao chegar em casa, recebo a notícia que o pai de uma grande amiga minha faleceu. Ele era meu vizinho, sempre silencioso e quase sempre incompreendido. Mas desde o primeiro momento surgiu uma empatia entre nós, uma cumplicidade que às vezes se traduzia em profundas conversas que tivemos umas três vezes, outras, apenas no respeito amigo em demonstrações mútuas. Meu coração ficou angustiado e resolvi ligar para casa... recebo a notícia que uma tia muito querida de toda a família faleceu esta manhã. Ela tinha lupus, mas por ser Testemunha de Jeová, se recusou a tomar sangue e teve assim seu sofrimento intensificado até descansar, com uma serenidade solene de quem se sente fiel e em paz com sua consciência. Eu parei alguns momentos para tentar digerir tantas perdas ao mesmo tempo e lancei novamente meu olhar ao mar, não mais o mar do litoral paulista, mas ao Mar da Galiléia.
Lá, um homem também vislumbra o mesmo horizonte. Há poucos dias, sofreu a perda irreparável de alguém que ama e sentiu todo o desespero típico de quem fica com a saudade de quem a morte leva. Sentiu-se impotente por não poder salvá-lo, e terrivelmente frustrado por não ter tido tempo de afirmar que o amava. Muito, muito mais que Ele pudesse imaginar. Ficou deprimido, sem saber qual rumo tomar, pois percebeu o quanto sua vida estava envolvida a daquEle Ser... como poderia continuar com aquela solidão? Que saudade enorme, que sensação de fracasso! Ele chegou que os planos foram por água abaixo, e que tudo acabou. E tudo ficou mutilado, incompleto, impotente, com sabor de nunca mais, cheiro de desesperança, e dúvidas deixando o caminho incrivelmente torto e desfigurado.
Mas sabe, Pedro olhava o Mar e sorria. Ele também estava diante de lembranças fortes... fora ali que Jesus acalmara a tempestade e seus corações cheios de terror, caminhando por cima das ondas para os livrar. “Ali fora a tempestade acalmada à Sua voz. Ao alcance da vista estava a praia em que mais de dez mil pessoas foram alimentadas com alguns pães e uns peixinhos. Não muito distante estava Cafarnaum, testemunha de tantos milagres. E ao espraiarem os discípulos o olhar por todo esse cenário, enchia-se-lhes a mente de palavras e atos do Salvador” ( O Desejado de Todas as Nações, pág. 809). Mas que incrível, as recordações não machucavam Pedro.
E ele também tinha que tocar a vida. Ele e os discípulos estavam necessitando de comida e roupa, tinham de trabalhar e continuar o labor apesar da grande perda. Pedro lançou-se ao Mar com seu barquinho e alguns discípulos e passou a noite jogando a rede em busca de peixes... com aquele semblante sorridente no rosto. E além de ainda nem ter se recuperado bem do desgaste emocional que sofrera, seu trabalho não rendia. Mas Pedro manteve o mesmo ânimo até o raiar do sol.
De longe, na praia, um Observador atento preparava pães e peixes. Era Jesus, e assim que os discípulos se deram conta disso, correram em Sua direção, Pedro com o sorriso explodindo em alegria transbordante. Seguindo a ordem do Mestre de lançar a rede do lado direito – o lado da fé nEle – trouxeram também a rede cheia de peixes, para que lembrassem que, mesmo que eles sentissem solidão ou medo, ainda que fragilizados pelo sentimento de perda, não deveriam jamais esquecer que o Salvador ressuscitado cuidaria deles ainda, provendo-lhes todas as necessidades desde que combinassem seus esforços aos de Jesus ao jogarem a rede.
E sabe o que fazia Pedro resistir tão bravamente à perda? É porque ele cria da ressurreição do Ser a quem esperava. Ele sabia que Jesus apenas foi e voltou como uma onda do mar, mas que chegaria o tempo em que Ele voltaria para nunca mais ir embora. E Pedro poderia reafirmar que O amava, não apenas três vezes, mas dez, cem, um milhão, sempre que sentisse vontade, pois o amado amigo estaria eternamente ao seu lado. Esta esperança viva fazia-o entender que “tragada foi a morte pela vitória” e nada mais poderia o abalar. (I Coríntios 15:54)
Hoje eu só tenho mais motivos para dizer que creio que Jesus vive, e porque Ele vive nós também viveremos. E como Pedro, eu espero por amigos a quem será dada a vitória sobre a morte. “Como Jesus ressurgiu dos mortos, assim hão de ressuscitar os que nEle dormem. Reconheceremos os nossos amigos, da mesma maneira que os discípulos de Jesus. Talvez hajam sido deformados, doentes, desfigurados nesta vida mortal, ressurgindo em plena saúde e formosura; no entanto no corpo glorificado, será perfeitamente mantida a identidade. Então conheceremos assim como também somos conhecidos. No rosto, glorioso da luz que irradia da face de Cristo, reconheceremos os traços daqueles que amamos.” (DTN, p. 804)
Sim, eu creio e espero ansiosa o breve dia em que, numa Terra sem dor nem morte, Jesus, eu e nossos amigos uniremos olhares e reflexões alegres ao horizonte de um mar eterno... o mar de cristal da água da vida, na Jerusalém Celeste.
Uma semana feliz e iluminada.

Lux Lunae

domingo, 8 de outubro de 2000

Percebendo a semelhança

“Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança...” Gênesis 1:26

Há algo de realmente curioso nos buscadores da internet, aqueles trocinhos que a gente usa quando não faz a mínima idéia de onde achar uma informação: das duas mil opções que eles nos mostram, 80% não tem nada a ver com o que pedimos para ele procurar. Semana passada, durante as eleições, eu recorri a um para saber quais os locais onde eu poderia justificar o meu voto e acabei indo parar num site de contos e histórias reais (surpreendente isso na net, não?), de um certo escritor que não lembrei de gravar o nome. Atentei a uma história em especial, muito engraçada, que desejo partilhar com vocês. Assim conta ele:
“Minha mãe sempre que fazia um pernil assado, tirava uma pequena lasca de cada lado do mesmo, antes de pô-lo para assar.
E ela um dia me contou que quando uma vez lhe perguntaram porque fazia isto, não soube responder. Apenas fazia a mesma coisa que a mãe dela fazia, pois foi quem a ensinara. Teve a curiosidade de perguntar para a mãe dela qual a razão de tirar as tais lascas do pernil, ao que esta respondeu que assim procedia pois sua mãe fazia e ela também. Porquê, não sabia. Resolveu , certo dia, fazer uma visita a sua avó, que morava em uma cidade do interior, praticamente somente para saber a razão daquilo, pois já eram 3 gerações que faziam o pernil daquele jeito.
Dito e feito! Viajou, achou a avó já velhinha e, depois das novidades contadas e presentinhos trocados, lascou a pergunta sobre o pernil ao que a vó lhe respondeu tranquila:
- A FORMA QUE EU TINHA NÃO CABIA O PERNIL.”
Sabe aquele recurso psicológico de contrastes, que faz você pensar em branco quando vê uma coisa preta? Pois bem, essa historinha engraçada me fez lembrar de uma garota que também queria ser escritora, mas não era exatamente adepta do gênero cômico. E lembrei de um de seus escritos que dizia:
“Não entendo como Deus pode ter me dado uma mãe tão diferente de mim. Não consigo nem imaginar que um dia estive dentro dela, porque somos completamente diferentes e tenho certeza que nunca chegaremos a entender o jeito da outra ser. Somos tão estranhas uma a outra que sinto como se ela não me tivesse como filha, como se ela nunca pudesse vir a me amar...”
Essas palavras estão numa página amarelada de um dos meus diários, escrito no ano de 1993, quando eu tinha catorze anos de idade. É , eu sei, também me parece bem duro, intragável, forte e inflamado, mas na época , em que eu adolescia – e aborrecia – era como eu enxergava a relação com minha mãe. Devido a isso, passei muito tempo projetando tudo que queria ser no meu pai, transformando-o no meu super-herói e acreditando que eu era a cópia xerox autenticada dele. E nesse mesmo ano, de repente, me vi tendo de conviver com minha mãe apenas, e depois de um período difícil fomos nos aproximando como nunca antes, pois a perda do meu pai nos fez alimentar uma necessidade enorme de coesão. Com isso, aprendi a conhecer melhor aquela mulher que me parecia tão distante e estranha, e a respeitá-la, bem como ela a mim.
Mas não parou por aí: eu precisava da ausência completa dela também, para descobrir exatamente o quanto eu estava equivocada. Me lembro que ela sempre dizia quando estava chateada: “eu só desejo que um dia você tenha uma casa para tomar conta e as responsabilidades de uma dona-de-casa para que você entenda o que eu passo.” Ou então apenas murmurava: “um dia você vai ser mãe...”, “um dia você vai ter a sua casa”.
Pois é. Cá estou eu na minha casa, que ainda não abriga uma família, mas já me mostra muito do que a minha mãe passava tendo ainda que aguentar uma “aborrecente” revoltada e anarquista. O mais curioso nisso, é que além de ter idéia do quanto foram importantes e árduas as responsabilidades dela comigo e com minhas irmãs, percebo que na minha forma de lidar com os problemas do dia-a-dia eu reflito a imagem e semelhança dela!
Detalhes que noto no supermercado, no banco, limpando a casa, administrando o dinheiro, cozinhando, lidando com a lavadeira de roupas, cuidando das plantas, tudo me faz crer que sou mesmo “a cara” da minha mãe, e isso não foram coisas que eu busquei aprender dela, simplesmente se insculpiram em mim e foram fazendo parte do meu ser até se manifestarem hoje em dia. E por ter percebido essas semelhanças, me permiti analisar mais profundamente, e ver muitas outras características que nós duas temos em comum. Nunca havia percebido que foi dela que herdei meu gosto pelas artes (embora , infelizmente não vivêssemos numa cultura que apoiasse esse gosto), a mania de estudar e se envolver com o ser humano bem individualmente, sem palcos nem luzes (eu vivia brigando com ela porque ela elaborava sermões lindos e comoventes para as filhas, mas se recusava a os expor em público na igreja, como meu pai fazia... hoje sei qual método é mais eficaz) , até mesmo minhas tendências para a área jurídica são herança da minha mãe, já que ela, definitivamente, tem o dom de argumentar com uma lógica dedutiva impecável e altamente persuasiva (que eu estou longe de ter!).
E tem o gosto pela natureza, pelos animais, pelo humor fino, pela leitura, por estudar a Bíblia com humildade e sentimento, por tirar lições das coisas pequeninas e detalhes humanos. Tem a voz, a barriga “quebrada”, a canela fina, a timidez, a tendência dramática... tantas coisas que ficaria cansativo listar aqui. Coisas que é a figura dela, a da minha mãe, que me trouxeram e que não existiam no meu amado pai, com quem eu queria tanto parecer. Bom descobrir isso! Melhor ainda é ouvi-la dizer ao telefone: “hoje te sinto muito mais minha filha do que quando você estava aqui”. Ou seja, nossa descoberta é mútua!
Há coisas que obedecem à voz do sangue, que nos atam nos laços familiares, que estão marcados lá dentro de nossas células, no DNA, e que, queiramos ou não, nos programam para sermos semelhantes aos nossos antepassados. Para reforçar há o que adquirimos com o convívio e um determinante extremamente forte, embora às vezes desconhecido de nós mesmos: o poder do amor que prende nossa alma ao ser que nos gera.
Refletir sobre isso reacende em mim a esperança no ser humano.
Todos os dias convivo com pessoas que relatam casos tristes: mulheres que são espancadas pelos maridos, bebês morrendo de subnutrição gritante porque o pai se recusa a lhes dar alimentos, pessoas que matam o cônjuge, homens inescrupulosos que se aproveitam da ingenuidade alheia para lhes tirar todo o dinheiro, outros que já pagaram sua pena mas que continuam presos naquele inferno que é a penitenciária estadual, mães pedindo para que seus filhos fiquem na FEBEM para não vê-los mortos, e tantas outras coisas deprimentes. Nos jornais e revistas a violência também está estampada, e ninguém já nem se com notícias como: “Zé-Tinhoso matou mais uma vítima, estrangulando-a e em seguida disparando vinte tiros, desferindo duzentas facadas, arrancando-lhe os olhos, dois dedos, três braços e quatro estômagos.”
No entanto a Bíblia ainda diz que eu, você e Zé-Tinhoso fomos criados à imagem e semelhança de Deus. O amor deste Ser Supremo que nos gerou, continua com a mesma intensidade, embora nós tenhamos nos degradado tanto por causa do pecado. A humanidade, embora doente e corrompida, foi resgatada pelo preço do sangue de Cristo para que tivéssemos direito de continuar vinculados a Deus como filhos dEle. (Romanos 8:15-17 ). Ao olhar para nós, Deus não vê o que o quanto o pecado nos desfigurou, mas acha os traços dos Seu próprio Filho: por que nós não deveríamos fazer o mesmo? E olhando por este olhar do Pai é que devemos ver cada irmão nosso, cada criatura que ferimos ou que nos fere, cada ser miserável que ainda não descobriu que ele pode ser mais semelhante a Jesus.
Concluo com uma pequena citação da escritora Ellen G. White, no livro O desejado de Todas as Nações, página327:
“Uma bela ilustração das relações de Cristo para com Seu povo, encontrava-se nas leis dadas a Israel. Quando, em virtude da pobreza, um hebreu se via forçado a abrir mão do seu patrimônio, e a vender-se como escravo, o dever de resgatá-lo a eles e a sua herança, recaía no parente mais chegado (Levítico 25:25, 47-49). Assim a obra de redimir a nós e a nossa herança, perdida por causa do pecado, recaiu sobre Aquele que nos é “parente chegado”. Foi para resgatar-nos que Ele Se tornou nosso parente. Mais chegado que o pai, mãe, irmão, amigo ou noivo ;e o Senhor nosso Salvador. “Não temas”, diz Ele, “porque Eu te remi; chamei-te pelo teu nome, tu és meu”
Cristo ama os seres celestiais, que Lhe circundam o trono; mas quem explicará o grande amor com que nos tem amado? Não o podemos compreender, mas podemos sabê-lo real em nossa própria vida. E se mantermos para com Ele relações de parentesco, com que ternura devemos olhar os que são irmãos e irmãs de nosso Senhor! Não devemos estar prontos a reconhecer as responsabilidades de nosso divino parentesco? Adotados na família de Deus, não devemos honrar a nosso Pai e nossos parentes?”
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

domingo, 1 de outubro de 2000

Como as digitais do meu cachorro

“Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal...” Romanos 12:10

De uns tempos para cá, tenho enjoado da solidão de morar sozinha. Sabe aquele calor humano de ter alguém para te receber quando você chega dos seus afazeres, um ser vivo para te saudar alegremente no café-da-manhã, brincar (ou brigar) com você depois do almoço, e te ouvir compenetrado durante o jantar?
E com a família a muitos quilômetros de distância, minha mente foi buscar uma idéia fixa como solução: tenho sentido uma vontade enorme de criar um cachorro! “Mas é claro”, insiste a voz do subconsciente, “você teria uma companhia diária e noturna , fiel, alegre, carinhosa, sincera, que lhe ouviria sempre, sem jamais discordar e para a qual você não teria de se preocupar em ser bonita, agradável ou inteligente”. Hehehehe, muito acomodado esse meu subconsciente, não?
O fato é que, desde então, tudo é motivo para lembrar-me desta estranha necessidade. No escritório, a secretária me fala do seu cachorrinho, e tal qual todo dono coruja, passa a relatar as estripulias do animalzinho como se ele fosse um prodígio da espécie. Vou na casa de amigos e eles me mostram a cadelinha que acharam na rua, quase morrendo de hipotermia, e agora corre alegremente pela casa, com fofura irresistível e cativantes olhos azuis. Um pequeno cãozinho atropelado, no trajeto até o ponto de ônibus quase me faz chorar. Cachorros desfilando em bandos alegres pelas ruas do Parque Fernanda. E no domingo, lá estamos eu e meu namorado passeando pelo Ipiranga, cercados de cães por todos os lados, de todos os tipos.
Num dado momento começamos a conversar sobre a meditação que o amigo Marcão escreveu, na qual fez uma bela analogia ao reino animal, e em breve me pego falando do cachorro dele, o Bernardo. Ah, o Bernardo... o qual, segundo o Marcão, é dono de pêlos brilhantes e olhar magnético, mas cuja alegria desengonçada é o que mais me cativa. Nesse ínterim, eu e meu namorado até criamos a imagem do cachorro ideal, no nosso ponto-de-vista: um vira-lata médio, alegre e esperto.
E sabem qual é a pior parte desta minha pequena tragédia? Eu não posso criar um cachorro!! (snif, snif) . Minhas atuais condições de moradia não me permitem concretizar o direito intrínseco e inalienável que todo ser humano tem de possuir um simples cachorro!!
Foi movida por esta frustração profunda que recorri até meu álbum de fotografias, onde destilei toda a nostalgia nas fotos dos meus bichinhos de estimação, lembrando as peculiaridades de cada um.
Mas foi a foto de um, em especial, que me trouxe à memória uma expressão de carinho tão significativa, que me fez refletir profundamente sobre alguns aspectos dos relacionamentos entre homens e Deus.
Max era um vira-lata daqueles bem vira-latas, sangue puro, folgado, com ar displicente, e muito desastrado, que minha família criou por 14 anos. Ele era muito preguiçoso, e a maior parte do tempo passava deitado, suspirando quase poeticamente. Mas quando encontrava uma brecha no portão... fugia para a rua e só voltava depois de muito tempo – completamente sujo de lama, com um palmo de língua de fora. E o engraçado era que, quando voltava da rua, Max era tomado de uma euforia incrível, incomum. Quando nos via, a primeira reação era pular em cima da gente, como que dividindo sua alegria transbordante... e junto com ela, sua lama transbordante também. Lembro que poucas vezes escapei de vê-lo chegar arfante e radiante de uma farra na rua, sem que não fosse recebida por um abraço carinhoso, que deixava as suas impressões digitais marcadas em lama por toda a minha roupa.
Broncas, brigas, e até uns castigos mais severos aplicados pelo meu pai, não resolviam: todas as vezes que Max fugia, podia-se esperar a festa da lama. E eu que era criança, caía na gandaia e não me preocupava com as marcas do carinho dele. Sabia intimamente que meu cachorro estava apenas querendo dividir comigo o resultado concreto da alegria que ele vira lá fora.
Sabe, eu acho que em nossas vidas podemos ser mais higiênicos que Max, mas tão espontâneos quanto ele. Acredito firmemente que todo ser humano traz dentro de si a semente do amor, que se for devidamente cultivada, florescerá vitoriosa. E cabe a nós, representantes de Cristo, a responsabilidade pela beleza desse jardim.
Somos, por vezes, ensinados a conter a expressão de nosso amor, ou a demonstrar emoções que não sentimos só para não parecermos fracos, tolos, inseguros. Nos acostumamos a ser assim. Mas o que muitas vezes não nos apercebemos é que, quando expressamos o amor de Deus, este amor deixa marcas em quem o está recebendo, e não importa que os outros reduzam a expressão desse amor a algo tão inconveniente e impertinente como lama. Vivemos numa cultura que valoriza cada vez mais os contatos superficiais, as praxes e as educadas falsidades. E quanto menos nos envolvemos com as pessoas, mais nos sentimos seguros, menos nos sentimos cobrados, mais adormecidas estão nossas consciências quanto ao nossos papéis na felicidade e bem-estar dos nossos semelhantes.
Cristo foi perseguido, difamado e humilhado porque sabia amar, e expressava Seu amor deixando-o fluir suavemente em direção às necessidades das pessoas. Esse amor curava, renovava, deixava na pessoa que O recebia, as marcas da digital do amor de Deus. Havia o envolvimento comprometido apenas com a pessoa e não com o que os outros pensariam da relação de amor. Que vissem lama, quando ele amava as prostitutas! Que vissem sujeira, quando ele comia com os ladrões! Que vissem insanidade quando abraçava leprosos! Esta gente doente e faminta, via amor e levava Deus consigo, estampado de maneira palpável em sua vida.
A escritora Ellen G. White faz um comentário muito tocante sobre este assunto: “Animai a expressão de amor para com Deus e uns com os outros. A causa de haver tantos homens e mulheres endurecidos no mundo, é que a verdadeira afeição tem sido considerada fraqueza, sendo cerceada e reprimida... a menos que a luz do divino amor lhes abrande o frio egoísmo, para sempre estará arruinada sua felicidade”. O Desejado de Todas as Nações, p. 516.
Provavelmente eu vou continuar sem cachorro por um bom tempo. Mas a lembrança de Max me fez pensar que, até lá, eu posso me ocupar cada vez menos das minhas necessidades e me dedicar cada vez mais às dos meus semelhantes. Ir deixando que o amor e o carinho de Deus façam de mim um instrumento que deixe marcas nas pessoas ao meu redor. Que dêem a elas um pouco de alegria, que mostrem que elas são especiais, que imprimam nelas as digitais de um Ser que as ama e lhes é fiel... como uma vez fizeram comigo, as digitais do meu cachorro.
Uma semana feliz e iluminada!!

Lux Lunae

domingo, 24 de setembro de 2000

E Deus criou o ódio.

“Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” Gên. 3:15.

Há cerca de um mês recebi, emocionada, uma caixa enorme de uns cem quilos. Bem, talvez menos, mas foi o que me pareceu pesar enquanto eu a levava para dentro do meu quarto. Nela estavam parte dos meus livros amados que eu tinha deixado em Natal quando parti, para não dar problema com excesso de bagagem. Abri a caixa e cada um que eu pegava era um suspiro e um abraço... passei um bom tempo matando a saudade deles quando me dei conta de uma coisa horrível! Dentre os livros que eu deixara separados para que minha mãe me enviasse, estava um, que é o meu preferido, minha relíquia mais preciosa, e foi justamente esse que ela esqueceu de colocar na caixa... meu “O Grande Conflito” de 1978, que pertenceu a duas pessoas antes de mim, uma delas um tio falecido, que não era adventista mas dizia ser esse, seu livro preferido depois da Bíblia.
Desalentada, liguei para minha mãe e mencionei o fato, mas acho que ela nem percebeu. No momento, ela ainda estava sob o impacto do seu próprio grande conflito, que, ansiosa, passou a me relatar.
Meus pais separaram-se há mais ou menos 6 anos, e meu pai passou então a conviver maritalmente com outra mulher. Acontece que, finda a paixão inicial e vindo a primeira filha, o relacionamento deles começou a ter dificuldades, até que meu pai saiu de casa novamente e foi morar sozinho. Mas arranjou uma namorada... uma garota de vinte anos, sem muitos atrativos físicos ou intelectuais, mas com uma característica importante o suficiente para conquistar um homem: carinhosa. Minha pequena irmã, no entanto, passou a apresentar sérios problemas devido à falta dele, e então, vencido pelo instinto paterno e na tentativa de acertar ao menos um pouco as coisas, ele voltou para a casa de sua segunda mulher, para tristeza da sua namorada.
Minha mãe sempre reagiu quase indiferentemente às atitudes de Don Juan do meu velho e amado pai (pelo menos era o que ela expressava). Mas naquele dia, quando preparava-se para sair para a igreja, D. Lindalva teve de reagir e tomar uma posição.
Sabrina, minha irmã mais nova, atendeu à porta uma garota que insistia para falar com minha mãe e foi chamá-la. Vestindo-se apressadamente, D. Lindalva vai até o portão e dá de cara com aquela menininha franzina, morena, minguada, com o olhar inseguro pelo nervosismo reforçando seus traços infantis. Era a namorada de meu pai. Depois de se apresentar e dizer que viera falar com minha mãe porque lhe disseram que ela era uma pessoa boa, e teve esperança que seria entendida, não controlou-se e começou a chorar.
Minha mãe a conduziu até a sala e lá chegando a garota se descontrolou ainda mais. Chorando convulsivamente, ela dizia:
- Por que a senhora deixou ele voltar pra a outra, por quê??? Ela vai acabar com a vida dele, ela quer se vingar dele e disse pra todo mundo que vai deixá-lo na pior! Eu o amo e quero vê-lo feliz, mas com ela ele nunca vai ser! Ele me falou que quer ficar comigo mesmo assim, mas eu disse a ele que não aceito porque ele voltou para aquela (...). Se ele tivesse voltado pra senhora eu não diria nada, porque a senhora é boa e é a esposa dele, mas para aquelazinha...
Minha mãe estava quase catatônica. Ela estava ali, na sala da sua casa, com a amante do homem que, para todos os efeitos, foi e é seu marido. E mais. Estava ouvindo da pequena que se ele tivesse voltado para a sua legítima esposa estaria tudo bem, porque poderia continuar exercendo sua função de amante numa boa, sabendo que não estaria concorrendo com outra amante, seria apenas o “complemento” da esposa. O pior? O pranto daquela garota era tão sincero, tão verdadeiro que comoveu minha mãe. E agora ela estava ali, na sala de sua casa, consolando a amante de seu marido. Dando-lhe conselhos e olhando-a como a uma filha, mesmo abominando as coisas más que aquela criatura tinha o potencial de fazer. Teve até vontade de abraçá-la, tamanha compaixão teve dela, mas limitou-se a falar-lhe longamente sobre o amor de Deus até que a garota parou de chorar e a olhava compenetrada.
- Bem, eu já vou embora – disse a namorada de meu pai – desculpa ter vindo aqui...
- Você não tem o que se desculpar. Esta conversa serviu para alguma coisa? Perguntou minha mãe.
- Sim, sim, com certeza! Eu estava muito angustiada quando cheguei aqui, agora estou em paz...
E minha mãe sorria aquele riso confuso ao telefone, falando para mim que não entendia porquê entre tantos seres humanos, justamente ela tinha que ser o instrumento para mostrar o amor de Deus àquela menina. Justamente ela, D. Lindalva (que detesta o tratamento de Dona), tinha que passar por aquela situação constragedora.. ela, que tem motivos de sobra para odiar o adultério, naquele momento teve um sincero amor maternal pela amante de seu marido.
E eu me emocionei com as coisas que essa atitude dela revelou: primeiramente que ela é um ser especial e um instrumento abençoado para transmitir o amor do Pai, acima de suas próprias vontades, egoísmos, mágoas, com uma sublime capacidade de perdoar – que talvez até então ela mesma desconhecesse. Segundo, que aquela menina não teria descoberto o amor de Deus de maneira mais eficaz em sua vida por outra pessoa, pois a atitude de minha mãe talvez tenha lhe revelado a força de um amor que até então ela desconhecia. E terceiro, com a atitude de minha mãe, eu enfim descobri um sentido forte, pessoal e até então desconhecido para aquela velha frase de púlpito: “Deus odeia o pecado mas ama o pecador”, mostrando que não só Deus, mas também nós somos capazes de fazê-lo.
Depois do homem e da mulher, houve ainda uma coisa que Deus criou no Éden: o ódio. Tendo o pecado atingido de forma fatal a raça humana, Deus providenciou que este sentimento brotasse no ser humano com uma direção bem definida: o próprio pecado.
Voltei esta semana ao Grande Conflito (mais uma vantagem da internet, que me deu o livro sem, infelizmente, me dar as páginas amareladas, sublinhadas e roídas de traça do meu exemplar) e notei uma parte em que a escritora Ellen G. White, comentando sobre o momento em que Deus pôs a inimizade na raça humana, escreve, inspirada pelo Espírito Santo:
“Deus declara: “Porei inimizade.” Esta inimizade não é entretida naturalmente. Quando o homem transgrediu a lei divina, sua natureza se tornou má, e ele ficou em harmonia com Satanás, e não em desacordo com ele. Não existe, por natureza, nenhuma inimizade entre o homem pecador e o originador do pecado. Ambos se tornaram malignos pela apostasia. O apóstata nunca está em sossego, exceto quando obtém simpatia e apoio, induzindo outros a lhe seguir o exemplo. Por este motivo os anjos decaídos e os homens ímpios se unem em desesperada união. Se Deus não Se houvesse interposto de maneira especial, Satanás e o homem teriam entrado em aliança contra o Céu; e, ao invés de alimentar inimizade contra Satanás, toda a família humana se teria unido em oposição a Deus.
É a graça que Cristo implanta na alma, que cria no homem a inimizade contra Satanás. Sem esta graça que converte, e este poder renovador, o homem continuaria cativo de Satanás, como servo sempre pronto a executar-lhe as ordens. Mas o novo princípio na alma cria o conflito onde até então houvera paz. O poder que Cristo comunica, habilita o homem a resistir ao tirano e usurpador. Quem quer que se ache a aborrecer o pecado em lugar de o amar, que resista a essas paixões que têm dominado interiormente e as vença, evidencia a operação de um princípio inteiramente de cima.
No coração não regenerado há amor ao pecado e disposição para acariciá-lo e desculpá-lo. No coração renovado há ódio e decidida resistência ao pecado.[1]
Portanto, é para isso que existe o ódio: para investir contra o pecado e não contra os homens pecadores. Deveríamos lembrar disso todas as vezes que nos sentíssemos tentados a odiar alguém. O pecado certamente levaria o homem a uma tendência para o mal, mas esse sentimento específico, que faz aborrecer com ardor, com uma intensidade enorme e uma repulsa insuportável, foi criado por Deus para, quando em comunhão com Ele, detestarmos o pecado. Satanás se aproveita desse sentimento e segue “semeando ódios, rivalidade, contenda, sedição, assassínio”, nos dando motivos para odiarmos uns aos outros, dirigirmos a força do ódio aos pecadores, que são seres falhos, mas acima de tudo são filhos de Deus e merecem ser amados como Cristo os amou.
Enquanto perdemos tanto tempo, espiritualidade e mucosa estomacal alimentando mágoas odiosas contra nossos inimigos e aqueles que nos ofenderam, Satanás regozija, feliz por desvirtuar o plano de Deus para nós e para o sentimento de ódio. Quando desaprendemos a perdoar, fechamos as portas ao Espírito Santo e deixamos de ser canais de salvação pelo amor de Deus, para sermos instrumentos do Maligno para a perdição de almas – inclusive a nossa própria, visto que tal mácula não poderá manchar o caráter do ser que pretende entrar no Céu.
Atualmente, há pouca inimizade contra Satanás e suas obras e muita inimizade entre aqueles que um dia se propuseram a ser imitadores de Cristo. Que no decorrer desta semana tornemos por hábito lembrar que nossos alvos devem se elevar até a altura do caráter de Jesus e coloquemos em prática as palavras de Victor Hugo: “Eu jamais me rebaixarei fazendo com que os homens me façam odiá-los”.
Uma semana feliz e iluminada!!

Lux Lunae

[1] WHITE, Ellen G. O Grande Conflito. Cap. 30 - O Pior Inimigo do Homem ,e Como Vencê-lo. São Paulo: CASA Publicadora. p. 505 – 510.
Você pode fazer o download desse livro, inteiramente grátis no endereço www.advir.com/sermões, no link Livros de EGW.

domingo, 17 de setembro de 2000

A porta dos sonhos.

“Entrai pela porta estreita... porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz para a vida, e são poucos que conseguem encontrá-la.” Mateus 7: 13 e 14.

Há algumas semanas, tive o prazer de entrar pela primeira vez no Teatro Municipal de São Paulo. Foi uma das experiências mais emocionantes da minha vida, e certamente o lugar mais bonito em que pus os meus pés.
Fizemos um pequeno tour pelas dependências e escadarias do Teatro, e eu andava com passos solenes de quem está realizando um sonho. Quando enfim nos acomodamos nas cadeiras, esperando o início do espetáculo, eu me vi invadida de arte e beleza por todos os poros. Não sabia para onde olhar primeiro (e meu olhar detalhista não me permite ver sem reparar minuciosamente), permanecia extasiada, sorvendo a emoção que cada pequeno canto daquele lugar me transmitia, e me deixei ser levada pelas melodias de Bach e Villa-Lobos, o meu ser na profusão emocional de quem tem o sonho realizado.
Lembrei de como foi difícil manter esse sonho, num mundo onde já não há lugar para esse tipo de beleza. Meu gosto pelo clássico sempre me fez parecer um dinossauro ET no meu meio, mas se isso não era cultivado por nenhum estímulo das pessoas (antes, muitas vezes ridicularizado), por outro lado eu não cedia à tentação de ser igual para ser aceita. Seguia sozinha, às vezes meio sem norte e até hoje com muito a aprender sobre as artes que sempre amei... mas segui, e por isso hoje tenho histórias de sonhos realizados para contar.
Pode não ser fácil achar a porta de seus sonhos! Pode ser que ela não pareça tão atraente como você pensa que ela deveria ser! Pode ser que você veja centenas de pessoas passarem indiferentes por ela e ache que aquela é a porta errada, preferindo seguir a multidão! Pode ser que você desacredite e esqueça do seu sonho, entrando por uma porta, para somente depois de estar lá dentro, descobri que ali não é o seu lugar... mas não consiga se colocar na contramão para voltar! Pode ser que, por equivocar-se quanto ao seu verdadeiro sonho, você passe a perseguir a porta errada e nunca chegue a encontrar o que você realmente quer!
Aprendi uma lição sobre a porta dos meus sonhos na primeira vez que fui a um teatro: o Teatro Alberto Maranhão, em Natal. Vi numa chamada na TV que a orquestra sinfônica iniciaria uma série de apresentações gratuitas no Teatro, e logo me dei conta que não ia adiantar ficar esperando que alguém me acompanhasse até lá. Peguei o ônibus e cheguei quinze minutos antes da apresentação, mas as portas do Teatro estavam fechadas, e tive que esperar numa fila do lado de fora. Quando as portas principais se abriram, todos entraram de uma vez, e eu, sem saber para onde ir, resolvi segui um pequeno grupo que me pareceu já ter ido ali outras vezes... nem reparei que eles estavam vestidos bem mais elegantemente que eu; meu olhar se dirigia para cada detalhe daquele lugar lindo, que até então , era o mais bonito em que eu já havia posto os pés. E eu estava emocionada demais para prestar atenção a qualquer coisa que não fosse arte...
A fachada interna do Teatro me apareceu magnífica, cheia de portas e escadas. As pessoas entravam por lugares diferentes, tentei entrar pela porta principal mas um educado funcionário avisou-me que as cadeiras ali já estavam todas reservadas para as pessoas que tinham adquirido os ingressos antecipadamente. Então dirigi o olhar novamente até o pequeno grupo que subia lenta e distintamente por uma escada lateral. Segui-os, tentando fazer uma cara de quem sabia muito bem para onde estava indo. O grupo parou diante de uma porta e certa funcionária do Teatro abriu-a , sorridente. Eu, logo atrás, fiquei comovida com a recepção calorosa que era dada às pessoas ali naquele lindo Teatro!! E entrei com o elegante grupo pela porta, o qual só se deu conta da minha presença quando estava prestes a se acomodar em suas não menos elegantes cadeiras. A funcionária, com um sorriso já não tão espontâneo, olhou para mim e disse:
- Você deve estar enganada quanto ao seu camarote... este é o do deputado fulano e sua família... posso ajudá-la?
Fiquei tão azul quanto a deselegante blusa que estava usando e expliquei que me dirigi até ali porque “lá embaixo” todas as cadeiras estavam ocupadas. A moça sorriu para o deputado e sua família, que me olhavam de cima a baixo, pediu desculpas a eles e me disse:
- Venha, vou te acompanhar até a galeria...
E desde então tenho estado mais atenta na procura pela porta que me levará até o objetivo sonhado, mesmo que ela seja uma humilde e pouco atraente porta de galeria. Foi lá dentro que eu assisti, em pé, duas horas de sonho melódico.
A Bíblia nos fala de homens que, certo dia, também tiveram dificuldades em achar uma porta, e por não perceberem que estavam perseguindo a porta errada, acabaram por perder a própria vida e o sonho de Deus para eles.
Naquele dia em Sodoma haviam duas portas em evidência perante o Céu: a porta da casa de Ló e a porta de saída da cidade. Deus mandou dois anjos baterem à primeira, para conduzirem os justos pela segunda, a fim de que eles fossem salvos. No entanto não havia ali muitos interessados na porta de saída. Quando os homens daquela cidade se deram conta que haviam dois seres hospedados na casa de Ló, aquele estrangeiro metido que queria ser juiz de tudo, cercaram a casa do servo de Deus e puseram-se a ameaçá-lo, exigindo que lhes fossem entregues os anjos para que estes fossem abusados sexualmente. Ao arremeterem-se contra Ló, tentando arrombar a porta de sua casa, os anjos o protegeram levando-o para dentro, olharam um para o outro e conversaram mais ou menos assim:
“É o seguinte: esses homens há tempos perderam seus nobres sonhos de vista. Deixaram-se contaminar pelo pecado a tal ponto que abandonaram os objetivos de Deus para eles, e até mesmo os mais novos não têm forças para resistir, antes se deixam levar pelos pecados dos mais velhos. Agora todos eles tentam arrombar a porta da casa de Ló, quando a porta que lhes daria salvação é a da saída da cidade. Estando eles cegos para verem essa verdade, vamos cegá-los para que não encontrem também a porta da casa de Ló, que eles perseguem com malevolente insistência.” (Gênesis 19)
E assim, os homens de Sodoma se cansaram à procura da porta equivocada, deixando escapar a oportunidade de obterem a salvação. E isso porque já não acreditavam que valia a pena sonhar em ser bom, temente a Deus, justo. Era moda ser mau. Todo mundo era mau! Todo mundo que praticava a injustiça, a imoralidade, a abominação, a maldade, o pecado enfim, era visto como forte, vencedor, poderoso. Somente um homem conseguiu preservar o seu sonho de ser uma pessoa melhor, fiel, temente e justo, e Deus lhe conduziu até a porta que lhe trouxe a vida, a esperança da realização de seus sonhos.
Há hoje muitas portas espalhadas pelo mundo, cada uma nos chamando a entrar. Mas apenas uma está em evidência perante o Céu, e todos os nossos sonhos convergem para ela, se acreditarmos e lutarmos por estes sonhos, não nos deixando influenciar pelos sonhos torpes da multidão, que segue em direção a portas que não levarão ao nosso lugar sonhado. Como está a nossa busca hoje? Estaremos tal como os homens de Sodoma, esgotando nossa forças em busca da porta errada, para a nossa perdição? Ou estaremos atentos para a estreita, humilde e pouco atraente porta da Salvação, pela qual passa o mundo indiferente?
Nessa busca não precisamos seguir os grupos que nos parecem mais elegantes, mais poderosos, mais em moda. A única coisa que precisamos é não perder de vista nossos sonhos, e então a mão de Deus nos guiará até o nosso almejado lugar.
Uma semana feliz e iluminada!!

Lux Lunae

domingo, 10 de setembro de 2000

Enquanto eu achava que tinha perdido a lente

“Aconselho-te que de mim compres... colírio para ungires os teus olhos, a fim de que vejas”. Apocalipse 3: 18

A hora avançava pela noite fria e chuvosa. O despertador tocou e ao contrário da maioria das pessoas, ao ouvi-lo, me preparei para dormir. Como costumo perder a noção do tempo quando estou na frente do computador, essa é a forma mais eficaz de eu me lembrar que é hora de descansar...
Terminei de ler as últimas linhas de um sermão do Pe. Antônio Vieira – uma semana e meia sem internet foi suficiente para me permitir ler o primeiro tomo -, desliguei o computador, escovei os dentes e fui tirar a lente de contato. Puxei a pálpebra.... nada. Puxei mais uma vez, com um pouco mais de força...a lente não se moveu. Respirei fundo, pensei na bênção que é ter uma córnea antes de murmurar, e puxei mais uma vez, piscando fortemente várias vezes. A lente de contato pulou abrupta e serelepe do meu olho esquerdo, indo cair silenciosamente sobre algum lugar do carpete cinza, que em nada contrastava com a cor dela...
Antes que eu pudesse me baixar para tentar localizá-la pelo reflexo, as luzes se apagam. “Ai, ai , ai...de novo não...”, pensei. Eu estava no meio de um black-out, com nove graus de miopia e sem condições de procurar a lente: se me movesse um centímetro que fosse, poderia pisar em cima dela e reduzi-la a pedacinhos, como o fiz com a malfadada penúltima; se me baixasse e tentasse apalpar os arredores, a pequena coisinha poderia ser afastada ainda mais pela minha mão, ou que é pior, grudar na palma e ser transportada para um lugar em que eu nunca viria a achá-la. Certa vez ao fazer isso, a lente enganchou no meu cabelo, o que eu só descobri quando fui penteá-lo e a vi caindo singelamente no ralo da pia... outra vez, minha irmã fez o mesmo e encontrou a lente dela semanas depois, totalmente ressequida, dentro de um livro de José de Alencar – esta pelo menos se perdeu de- forma culta. Se conseguisse, num salto olímpico, alcançar minha cama, deixando para procurá-la no outro dia, poderia estar levando-a comigo em minha roupa e aumentar a possibilidade de perdê-la, ou se ela ficasse no carpete, um inseto ou rato poderia dar-lhe um fim definitivo durante a noite.
Pensando no que seria sobreviver em São Paulo com meu grau de visibilidade, preferi ficar em pé, esperando a energia voltar, a providenciar um cachorro guia e uma bengala. E para não deixar o sono vencer passei a meditar nas palavras que há pouco acabara de ler, exatamente sobre essa condição incômoda e angustiante: a falta de visão.
Pensei que o espírito Santo, como Oftalmologista PhD em visão teológica, poderia classificar a deficiência visual espiritual tal como a classificam os médicos humanos. E assim, teríamos a miopia, o astigmatismo e a hipermetropia espirituais, cada qual com suas peculiaridades, cada uma podendo levar à cegueira definitiva.
Como míope de família de míopes, tenho de reconhecer as vantagens de o ser. Machado de Assis já dizia: “os míopes enxergam onde as grandes vistas não chegam”. Hehehe. Mas um míope espiritual corre o sério risco de deixar passar a presença de Deus sem vê-la, por não ser capaz de olhar além. Deste mal padeceram os fariseus, que estavam em contato direto com Deus aqui na Terra, ouvindo-O, tocando nEle, comendo do pão que Ele fizera surgir milagrosamente, sentindo Seu cheiro, enfim, sentindo-O com todos os sentidos, menos com a visão. Olhavam para Jesus, mas não viam mais que um homem petulante, um subversivo, um louco que acabaria como o Batista. Eram tão míopes espiritualmente que não conseguiam enxergam além da sua justiça própria, e Jesus em suas pregações já sabia da dificuldade em atingir os corações daquele povo que olhava mas não via (Marcos 4:12). Seria bom meditarmos se temos permitido que nossa visão veja a atuação de Deus em nossas vidas, Seu chamado, Suas advertências, Sua presença. Ao entrarmos na igreja – e ao sairmos dela – bem que poderíamos focalizar nossos olhos espirituais no motivo de nossa crença. Nosso Oftalmologista de plantão está pronto a nos ajudar nesse sentido...
Há ainda o astigmatismo espiritual, que não consegue perceber com nitidez a imagem do Pai, antes a vê de maneira confusa, às vezes equivocada, nebulosa. E acaba vendo uma coisa por outra, não discernindo as coisas espirituais e fazendo má-interpretação delas. Foi por esse defeito visual que os apóstolos , na barca de Pedro, que cruzava o Mar de Tiberíades, derrotada da fúria dos ventos e quase soçobrada do peso das ondas, viram assombrados um fantasma , quando apareceu sobre elas Cristo caminhando a grandes passos a socorrê-la. (Mc. 6, 49) Ora, perguntamo-nos, como podem homens que tinham acabado de ver Cristo operando o milagre da multiplicação dos pães, tremerem como meninos assustados diante do mesmo Cristo? Bem, mais tenazmente deveríamos nos perguntar porque nós temos essa estranha tendência de não enxergarmos a Cristo quando Ele escolhe o meio que acha melhor para guiar nossas vidas, e esse meio contraria aquilo que nós julgamos o melhor, o mais lógico, o mais racional a ser feito. O Espírito Santo não distribui panfletos na rua nem insiste gritando com plaquinhas, mas seu consultório oftalmológico está sempre aberto quando nos dispomos a fazer um exame.
Por fim há a hipermetropia espiritual, que faz a alma doente não ver a presença de Deus embaixo do seu nariz. Este mal nos faz incapazes de enxergarmos o poder de Deus no momento em que Ele está atuando. Foi a hipermetropia espiritual que fez Geazi, o moço que acompanhava o profeta Eliseu, passar uma das situações mais desesperadoras de sua vida. Vendo-se a si e ao profeta completamente cercados pelo exército sírio, com tropas, cavalos e carros, o rapaz correu desesperado em busca do profeta e o encontrou sentado, calmamente, descascando uma laranjinha. Depois de contar ao profeta o motivo de seu pavor, e encher Eliseu até ele não aguentar mais, este orou: “Senhor, peço-te que lhe abras os olhos...” II Reis 6:17. E o que fez Geazi? Sentou, pegou uma laranjinha para descascar e ficou admirando o monte cheio de cavalos e carros de fogo da parte do Senhor, para protegê-los de qualquer mal. A tropa divina estava lá o tempo todo, assim como Deus está o tempo todo presenciando as nossas vidas. O defeito está nos nossos olhos que nem sempre conseguem ver essa presença atuando poderosamente em nosso favor.
A condição da nossa atual Igreja Laodiceana, explanada em Apocalipse 3: 14 – 22 é realmente preocupante pois somos sérios concorrentes a cegueira dupla. Ou seja, além da cegueira provocada pelos males acima mencionados, ainda podemos estar cegos para a nossa cegueira: falta a fé para ver a Deus e para ver a condição debilitada de nossa visão, estando assim nós, cegos duas vezes!
Você já deve ter percebido que a raiz de todos os males visuais aqui estão num desvio na retina da fé. E qual a solução? Pode-se recuperar a perfeita visão espiritual de duas maneiras: ou através de uma queda bem dolorosa, a que todo cego está fadado, tal como aconteceu a Saulo (Atos 9:80), ou então pelo poder milagroso do colírio do Espírito Santo, dado de graça àquele que tem convênio na botica da cruz. (Apoc. 3:18). Jesus é o Deus que tem poder “para abrir os olhos aos cegos” Isaías 42: 7, e assim como o fez quando esteve aqui na Terra, continua até hoje operando com o mesmo poder, clamando com a mesma voz: “olhai, para que possais ver.” Isaías 42:18 e atuando com o mesmo amor para com aqueles que pedem: “Senhor, abra os meus olhos para que eu veja...” Salmo 119:18.
Um feliz e iluminado tudo!!!
Lux Lunae

domingo, 3 de setembro de 2000

Proteção e posse: um dueto

"Porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei; pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome" Salmo 91: 14

A segunda-feira, amanhã, trará rostos mais animados, pessoas mais sorridentes, conversas mais empolgadas... aproxima-se o feriadão!! 7 de Setembro é dia de comemorar, mesmo que não seja necessariamente a “Independência” do Brasil (comemorar-se-ía?). Para os que, como eu, ainda não traçaram planos de fuga para o próximo fim-de-semana prolongado, ou para os que pretendem apenas passar o máximo de tempo fazendo o mínimo possível, sugiro este passatempo:

JOGO DOS CINCO ERROS
O que há de errado nas cinco frases a seguir (excetuando-se alguma provável afronta gramatical)?
1. Senhor, protege-me durante a viagem.
2. Mamãe, proteja-me dos(as) namorados(as) que a senhora acha que me farão sofrer.
3. Meu amado marido, corra aqui!! Veja! Uma barata! Proteja-me!!
4. Minha amada esposa, proteja meu estômago: não use mais este azeite de dendê para cozinhar, tá bom?
5. Luciana, proteja seus livros das traças.

J Se a sua curiosidade não permitir esperar até o fim do feriadão, pode olhar a resposta a seguir.
Todas as frases contém o mesmo erro: são redundantes. O pedido de proteção é totalmente dispensável pois é dirigido a um ser que ama a coisa ou pessoa a ser protegida. Nestes casos, quem pede a proteção, quer mesmo ouvir a (re)afirmação deste amor.
Parece evidente, mas eu só vim reparar na prescindibilidade dessa redundância há algumas semana quando o carro de uma pessoa muito querida veio a sofrer pela segunda vez em pouco mais de um mês, sérias avarias. Um tanto quanto chateada, eu lhe sugeri que fizesse uma oração sempre antes de sair no carro! Ao que a mais que estimada pessoa me respondeu:
- E é Deus acaso um amuleto, como um pé-de-coelho ou uma fitinha de Nosso Senhor do Bomfim? Acaso Ele tem de ser lembrado de me proteger, só é acessível por uma oração ritualística que tem o objetivo de pedir a Ele a proteção que Ele já me dá como Ser que me ama? E se eu estiver pedindo algo que na verdade Ele quer permitir que aconteça por um motivo que só Ele sabe? Por que minha confiança nEle tem de estar condicionada a um ato meu, quando é pelos méritos do amor dEle que sou protegido?
Calei-me meditando nessas palavras e só pude vir a concordar. Entre os seres que se amam não se fala em proteção isolada, pois ela está contida no próprio amor, como consequência deste. Acontece que em nossa mente a proteção está muitíssimo associada à posse, assim, quando pedimos para ser protegidos por alguém que sabemos que nos ama, estamos apenas afirmando de alguma maneira que somos possuídos pelo amor àquela pessoa. Portanto o que realmente diz a oração de alguém que diz: “Senhor, protege-me durante a viagem” é “Senhor, lembra que Teu amor me possui, portanto cuida de mim!”, o que soa até ingênuo pois não precisamos lembrar a Deus disso, só queremos, no fundo, nos sentir mais seguros afirmando o que já sabemos.
Passei a me perguntar se eu não amadureceria muito mais se passasse simplesmente a confiar nEsta proteção divina e parasse de tentar dizer a Ele como deve me proteger. Pois na verdade quando dirijo a Ele um pedido específico sobre proteger-me, estou na verdade falando-Lhe do que EU acho que seja o melhor para mim. Mas a visão de Deus vai muito mais além, e o que eu mais temo que me aconteça, pode ser exatamente o que Ele quer permitir acontecer para que eu chegue mais perto dELe. E como um Pai que deixa o filho correr livre pelo parque, sem no entanto desviar o olhar de cima dele um segundo, Ele nos dá a liberdade de tomar decisões, que podem nos levar a grandes conquistas ou tombos homéricos. Em ambos os casos, Seus braços estarão sempre por perto, seja para partilhar a alegria de uma vitória ou chorar a dor de um fracasso. Como bom Pai e Pastor, Deus está muito mais interessado em nos orientar suficientemente para enfrentarmos as dificuldades, problemas e maldades do mundo e com isso moldarmos nosso caráter à semelhança do dEle, do que nos proteger em uma redoma feita por nossas próprias mãos.
Por fim, há ainda uma consequência bem interessantes do dueto proteção-posse.
Quando na relação com Deus deixou de haver amor, e agora só reina o legalismo, o ser não mais sente necessidade de ser protegido, mas de proteger a Deus. Isso por que se não há amor, nenhum ser se deixa possuir, antes desenvolve um inevitável desejo de poder. A pessoa que deixou de desejar ser possuída pelo amor de Deus, passa mais ou menos inconscientemente, a desejar possuir Deus. E isso ela faz se colocando no lugar de Deus: sentir-se como Deus satisfará seu desejo de poder. O sinal claro de uma pessoa que assumiu essa triste condição é a expressão da posse pela necessidade de “proteger Deus”. Passa a ser um exímio acusador de todos os irmãos que não se portam com a devida reverência, santidade, modéstia cristã, testemunho, mordomia, etc, etc... dá ares de calamidade a quebra de qualquer regra, praxe, detalhe litúrgico que seja, e está sempre a criticar a vida dos “pecadores” que teimam em afrontar a Deus com seus erros incorrigíveis, sem aperceberem-se que Deus não precisa ser protegido! E assim seguem os “protetores de Deus” , juizes poderosos, doutores em como possuir a essência divina da onipotência.
Numa frase, ao menos, eu concordo com Jung: “onde o amor domina não há desejo de poder. Onde o poder domina, falta amor. Um é a sombra do outro.” Que possamos ser dominados pelo amor, que se deixa possuir, que é protegido pela simples certeza de existir, que está seguro pela fé da sua força uma vez sentida. Que o amor impere por sobre o desejo de posse e que possamos confiar cada vez mais na sua força protetora, nos deixarmos levar, guiados pela força de suas muitas águas até a Fonte de todo amor.
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

domingo, 27 de agosto de 2000

Um lugar seguro

“Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra.” Salmos 121: 1, 2

Programa típico de paulista para sábado à noite: shopping. E lá estávamos os três sentados numa praça de alimentação de um shopping onde, surpreendentemente, havia vagas no estacionamento. Ainda que não seja o tipo se lugar onde eu me sinta muito bem, me satisfazia com o fato de ser ao menos um bom lugar para observar o comportamento das pessoas.
Na mesa ao lado um casal tentava manter um garotinho quieto, e ele por sua vez tratava de não deixar a comida quieta, fazendo-a voar alegremente pelos arredores. Mais à frente uma loja de decoração onde eu seria capaz de passar horas a fio, mostrava em sua vitrine um crucifixo de prata confeccionado no estilo art noveau, muito lindo. Do meu lado, meu namorado a quem eu acariciava a mão carinhosamente, na minha frente um de-li-ci-o-so beirute que eu degustava com prazer indescritível. E do outro lado da mesa, estava ele, a quem estimo mais do que o desejo de ser sua cunhada possa convencionar, pois desde algum tempo passei a admirá-lo por um conjunto de qualidades que o faz uma pessoa muito especial. Não sei o que deu neles, mas neste dia os dois estavam particularmente sensíveis, de defesas baixas e bem sentimentais. Eu sorria por dentro admirando o momento histórico e ouvia a conversa atentamente, quando o assunto pendeu para a confiança em Deus. Os olhos dele, do outro lado da mesa, adquiriram então um brilho fascinante, prendendo os meus, e sua expressão ganhou uma solenidade irradiante.
- Vou contar para você uma história que eu gosto de contar para aqueles que são capazes de entender o que é confiança em Deus. – disse ele , começando a narrativa- Eu estava morando no sul da Alemanha, um lugar lindo. Abria minha janela de manhã e via um imenso vale verde, cheio de flores, animais pastando, montanhas grandiosas no horizonte... uma paisagem como aquelas que só se vê em quadro do século passado. Certo dia, eu, que já vinha observando aquela cadeia de montanhas há algum tempo, decidi que iria explorá-las percorrendo as trilhas que levam até o pico da sétima montanha. Preparei-me, peguei o material necessário, fui com o carro até o início da trilha e comecei a aventura.
O garotinho da mesa ao lado acabara de fazer uma batatinha frita aterrissar perto do meu pé, mas eu já não lhe dava atenção; minha mente se direcionava para o que ele acabara de falar. “Previsível”, pensei. Já havia observado várias fotos dele e da sua família escalando rochas, montanhas, desbravando trilhas... enfim, não me tinha passado de largo o seu instinto de águia, que nasceu para as alturas. Seu gosto pela aventura nas montanhas é o mais fiel reflexo de sua personalidade: enfrentar os riscos pela ânsia de chegar, alçar vôos que o elevem para além dos limites ordinários, ampliar a visão de sua capacidade pela conquista de novas paisagens. Dei a última mordida no Beirute, que estranhamente perdeu seu sabor, reparei mais uma vez no crucifixo de prata, acariciei mais intensamente a mão de meu namorado, mas continuava presa aos seus olhos, agora cheios de uma solenidade mais densa.
- Quando eu iniciei o percurso o céu estava de um azul encantador e o sol banhava toda a paisagem em redor. O caminho era difícil, pedregoso, por vezes íngreme, mas eu continuava num ritmo compassado e meu espírito elevava-se também à medida que eu subia. Foi quando, tendo acabado de subir a quinta montanha, olho para trás e vejo uma cena aterradora: nuvens escuras e ameaçadoras formaram-se muito rapidamente enquanto eu escalava, e eu sabia que pela forma com que se punham, muito provavelmente eu enfrentaria uma tempestade. Mas uma tempestade, ali, naquele lugar arriscado e vazio? Parei um instante e orei: “Senhor, houve um servo Teu, o qual também atendia por meu nome, que um dia pediu que a chuva não caísse sobre a terra durante sete anos. Eu não Te peço que o faças nem por sete anos nem mesmo por sete horas, apenas Te peço que me leves para um lugar seguro.” Prossegui a caminhada e subi sem muita apreensão as duas últimas montanhas. Chegando ao cume da imponente sétima montanha, me dirigi até os pés de uma cruz de madeira que estava fincada sobre as rochas. Atrás da cruz, dentro de uma lata e enrolado dentro de um plástico, estava um caderno onde se registra o nome de todos que por ali passam. Escrevi meu nome, devolvi o caderno à lata e o guardei aos pés da cruz. O céu veio abaixo!
Esta sua última frase foi dita com a força de uma lembrança viva e de uma emoção ainda mais viva. Estremeci ligeiramente, e instintivamente olhei pela última vez para o crucifixo de prata na vitrine da loja. Meus olhos prenderam-se total e definitivamente aos dele, onde o brilho dera lugar ao que não consigo descrever com outro termo, senão os olhos de ressaca descritos por Machado de Assis: “com uma força que arrastava para dentro como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca”. Minha mão prendeu-se à mão de meu namorado e eu permaneci segura a ela enquanto ele continuava.
- A chuva e o vento forte que se precipitou sobre a montanha não me permitiu ir muito longe ou escolher cuidadosamente um lugar. Sentei-me numa rocha próxima, ao lado de um pequeno arbusto, abri um guarda-chuva para proteger-me da água gelada e contemplei a fúria daquele espetáculo. Sentado onde estava , contemplava logo por trás do pequeno arbusto, um enorme precipício... a neve costuma abrir fendas na rocha daquelas montanhas, cortando-as de cima a baixo e formando estes precipícios de altura vertiginosa. Mas não era só a altura a que eu me sentia sujeito a cair que me aterrorizava, todos a natureza parecia compelida a me assombrar. O vento era violentamente impelido contra o precipício, fazendo com que a chuva viesse de baixo para cima e arremessasse elementos indistinguíveis sobre mim... do outro lado, eu via as rochas da montanhas rolarem montanha abaixo, soltas pela força da tempestade, e eu aguardava desesperado a hora em que uma delas me jogaria contra o precipício. Meu rosto contorceu-se de revolta e durante meia hora eu levantei minha voz em brado indignado contra Deus: “Eu não te pedi nenhum grande milagre, apenas que me conduzisses para um lugar seguro! Apenas isso! Sei que és capaz de muito mais, mas não atendesses a uma simples oração que seria capaz de salvar-me a vida!!! Esta tempestade não fará diferença depois que passar, mas e a minha vida? Faz ela alguma diferença para Ti? Importa alguma coisa para Ti que eu viva? Onde estás que não me vês, antes me ignoras no momento em que mais preciso de Ti?” E assim continuei, exaltadamente, até que a chuva passou...
Respirei. Minha memória levou-me até o clamor de Davi: "Rejeita o Senhor para sempre? Cessou perpetuamente Sua graça? Esqueceu-se Deus de ser benigno?"(Salmo 77).
Pude ainda sentir a mão de meu namorado roçar levemente sobre a minha antes de desligar-me de todas as sensações e deixar-me absorver pelos olhos dele que agora continuavam a me prender por uma doçura sacra e sublime.
- Foi somente depois da tempestade que pude analisar e perceber melhor a situação em que eu me encontrava. A calma contrastava com a desordem do lugar, em seus sinais de grandiosa turbulência. Constrangido, cheguei a uma conclusão: Deus atendera minha oração, Ele me levara até um lugar seguro. Reparei que a rocha onde eu me assentara era de fato o melhor lugar para abrigar-se ali, pois estava em um ângulo em que de forma alguma seria atingida pelas outras rochas que rolavam do alto da montanha, e o pequeno arbusto que estava ao meu lado era na verdade forte como uma muralha de aço, pois a vegetação daquele lugar desenvolve uma resistência natural ao vento, que os faz extremamente rígidos e inamovíveis. Ainda que eu me atirasse sobre o precipício, aquele arbusto estava de tal modo colocado que eu ficaria seguramente preso a ele. Dirigi nova oração a Deus, pedindo-lhe perdão por minha falta de fé, por minha visão limitada e meu desespero que me impedira de ver Sua providência... mas ainda estava muito emocionado pelo medo. As trilhas poderiam estar muito danificadas e o terrenos estava sujeito a avalanches. Confessei-me fraco e pela primeira vez em minha vida pedi a Ele um sinal de que poderia voltar seguro para casa: “Senhor Misericordioso, eu só descerei a montanha se Tu me deres um sinal e fizeres com que essas nuvens dêem lugar aos raios do sol.” Esperei mais meia hora e vi um raio de sol penetrar os densos cúmulos indo incidir sobre uma montanha ao longe. Insisti: “Senhor, para mim este ainda não é o sinal, me mostra de maneira mais clara que Tu estás comigo!”. No mesmo momento, as nuvens abriram-se em cima de mim e um feixe luminoso do sol atingiu-me diretamente, como se os olhos de Deus enfocassem o meu ser. “Agora sim, Pai, eu irei seguro”.
Neste ponto nossos olhos estavam tão cúmplices que eu senti-me banhar nas lágrimas que começaram a brotar naquele olhar. Emocionei-me especialmente por identificar aquela experiência com a minha própria caminhada cristã. Como é duro, íngreme e pedregoso o caminho que leva até a cruz no alto da montanha! Mas prosseguimos, sem desanimar, confiantes, mesmo que às vezes essa confiança esteja depositada sobre nossos próprios méritos. É porém quando sentimos a glória de termos chegado no cume da montanha, no auge de nossa estabilidade religiosa, quando achamos que não temos nada mais a aprender porque já estamos seguros de que nossa fé está estabelecida, concluída, conquistada (e registrada no livro de membros da Igreja), vem a tempestade... que agonizante é sentir que tudo ao redor desaba e se abala frente a nossa inerte impotência! Que humilhante é reconhecer que ainda há um longo caminho a ser percorrido e nossa fé e segurança não estão protegidas por nossa auto-suficiência! Quão desesperados ficamos ao percebermos que não conseguimos sentir Deus tão perto quanto gostaríamos - e poderíamos ter aprendido a sentir... mas Ele está ali para nos dar a segurança de que precisamos e fazer-se conhecer como Senhor de nossa existência, como Rei Protetor de nosso caminho. Ele está bem perto para provar-nos que Ele não abandona seus filhos, antes lhes está provendo um lugar seguro na tribulação, e a vitória, que é dada ao que deposita a confiança em Suas mãos.
É... meus princípios anti-capitalistas que silenciem, mas foi num shopping que eu ouvi ser proferido, com poder, o testemunho mais forte que já ouvi.
Uma semana Feliz e iluminada!

Lux Lunae

Ps.: experimentei revisar o texto ao mesmo tempo que ouvia ária de baixo “For behold darkness shall cover the earth”, do “Messias” de Haendel, que já estava mesmo na minha cabeça enquanto eu escrevia o final do texto... gente, só posso dizer que foi uma das coisas mais emocionantes que já senti. Vai como sugestão.