domingo, 1 de outubro de 2000

Como as digitais do meu cachorro

“Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal...” Romanos 12:10

De uns tempos para cá, tenho enjoado da solidão de morar sozinha. Sabe aquele calor humano de ter alguém para te receber quando você chega dos seus afazeres, um ser vivo para te saudar alegremente no café-da-manhã, brincar (ou brigar) com você depois do almoço, e te ouvir compenetrado durante o jantar?
E com a família a muitos quilômetros de distância, minha mente foi buscar uma idéia fixa como solução: tenho sentido uma vontade enorme de criar um cachorro! “Mas é claro”, insiste a voz do subconsciente, “você teria uma companhia diária e noturna , fiel, alegre, carinhosa, sincera, que lhe ouviria sempre, sem jamais discordar e para a qual você não teria de se preocupar em ser bonita, agradável ou inteligente”. Hehehehe, muito acomodado esse meu subconsciente, não?
O fato é que, desde então, tudo é motivo para lembrar-me desta estranha necessidade. No escritório, a secretária me fala do seu cachorrinho, e tal qual todo dono coruja, passa a relatar as estripulias do animalzinho como se ele fosse um prodígio da espécie. Vou na casa de amigos e eles me mostram a cadelinha que acharam na rua, quase morrendo de hipotermia, e agora corre alegremente pela casa, com fofura irresistível e cativantes olhos azuis. Um pequeno cãozinho atropelado, no trajeto até o ponto de ônibus quase me faz chorar. Cachorros desfilando em bandos alegres pelas ruas do Parque Fernanda. E no domingo, lá estamos eu e meu namorado passeando pelo Ipiranga, cercados de cães por todos os lados, de todos os tipos.
Num dado momento começamos a conversar sobre a meditação que o amigo Marcão escreveu, na qual fez uma bela analogia ao reino animal, e em breve me pego falando do cachorro dele, o Bernardo. Ah, o Bernardo... o qual, segundo o Marcão, é dono de pêlos brilhantes e olhar magnético, mas cuja alegria desengonçada é o que mais me cativa. Nesse ínterim, eu e meu namorado até criamos a imagem do cachorro ideal, no nosso ponto-de-vista: um vira-lata médio, alegre e esperto.
E sabem qual é a pior parte desta minha pequena tragédia? Eu não posso criar um cachorro!! (snif, snif) . Minhas atuais condições de moradia não me permitem concretizar o direito intrínseco e inalienável que todo ser humano tem de possuir um simples cachorro!!
Foi movida por esta frustração profunda que recorri até meu álbum de fotografias, onde destilei toda a nostalgia nas fotos dos meus bichinhos de estimação, lembrando as peculiaridades de cada um.
Mas foi a foto de um, em especial, que me trouxe à memória uma expressão de carinho tão significativa, que me fez refletir profundamente sobre alguns aspectos dos relacionamentos entre homens e Deus.
Max era um vira-lata daqueles bem vira-latas, sangue puro, folgado, com ar displicente, e muito desastrado, que minha família criou por 14 anos. Ele era muito preguiçoso, e a maior parte do tempo passava deitado, suspirando quase poeticamente. Mas quando encontrava uma brecha no portão... fugia para a rua e só voltava depois de muito tempo – completamente sujo de lama, com um palmo de língua de fora. E o engraçado era que, quando voltava da rua, Max era tomado de uma euforia incrível, incomum. Quando nos via, a primeira reação era pular em cima da gente, como que dividindo sua alegria transbordante... e junto com ela, sua lama transbordante também. Lembro que poucas vezes escapei de vê-lo chegar arfante e radiante de uma farra na rua, sem que não fosse recebida por um abraço carinhoso, que deixava as suas impressões digitais marcadas em lama por toda a minha roupa.
Broncas, brigas, e até uns castigos mais severos aplicados pelo meu pai, não resolviam: todas as vezes que Max fugia, podia-se esperar a festa da lama. E eu que era criança, caía na gandaia e não me preocupava com as marcas do carinho dele. Sabia intimamente que meu cachorro estava apenas querendo dividir comigo o resultado concreto da alegria que ele vira lá fora.
Sabe, eu acho que em nossas vidas podemos ser mais higiênicos que Max, mas tão espontâneos quanto ele. Acredito firmemente que todo ser humano traz dentro de si a semente do amor, que se for devidamente cultivada, florescerá vitoriosa. E cabe a nós, representantes de Cristo, a responsabilidade pela beleza desse jardim.
Somos, por vezes, ensinados a conter a expressão de nosso amor, ou a demonstrar emoções que não sentimos só para não parecermos fracos, tolos, inseguros. Nos acostumamos a ser assim. Mas o que muitas vezes não nos apercebemos é que, quando expressamos o amor de Deus, este amor deixa marcas em quem o está recebendo, e não importa que os outros reduzam a expressão desse amor a algo tão inconveniente e impertinente como lama. Vivemos numa cultura que valoriza cada vez mais os contatos superficiais, as praxes e as educadas falsidades. E quanto menos nos envolvemos com as pessoas, mais nos sentimos seguros, menos nos sentimos cobrados, mais adormecidas estão nossas consciências quanto ao nossos papéis na felicidade e bem-estar dos nossos semelhantes.
Cristo foi perseguido, difamado e humilhado porque sabia amar, e expressava Seu amor deixando-o fluir suavemente em direção às necessidades das pessoas. Esse amor curava, renovava, deixava na pessoa que O recebia, as marcas da digital do amor de Deus. Havia o envolvimento comprometido apenas com a pessoa e não com o que os outros pensariam da relação de amor. Que vissem lama, quando ele amava as prostitutas! Que vissem sujeira, quando ele comia com os ladrões! Que vissem insanidade quando abraçava leprosos! Esta gente doente e faminta, via amor e levava Deus consigo, estampado de maneira palpável em sua vida.
A escritora Ellen G. White faz um comentário muito tocante sobre este assunto: “Animai a expressão de amor para com Deus e uns com os outros. A causa de haver tantos homens e mulheres endurecidos no mundo, é que a verdadeira afeição tem sido considerada fraqueza, sendo cerceada e reprimida... a menos que a luz do divino amor lhes abrande o frio egoísmo, para sempre estará arruinada sua felicidade”. O Desejado de Todas as Nações, p. 516.
Provavelmente eu vou continuar sem cachorro por um bom tempo. Mas a lembrança de Max me fez pensar que, até lá, eu posso me ocupar cada vez menos das minhas necessidades e me dedicar cada vez mais às dos meus semelhantes. Ir deixando que o amor e o carinho de Deus façam de mim um instrumento que deixe marcas nas pessoas ao meu redor. Que dêem a elas um pouco de alegria, que mostrem que elas são especiais, que imprimam nelas as digitais de um Ser que as ama e lhes é fiel... como uma vez fizeram comigo, as digitais do meu cachorro.
Uma semana feliz e iluminada!!

Lux Lunae

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