domingo, 24 de maio de 2009

Adveniat - Vinde

“Vinde a mim, todos...” (Mateus 11: 28), foi o convite de Cristo. Mas quanto do eco desse chamado ainda pode ser ouvido na vida de seus seguidores? Como resolvemos o problema de ser luz acolhedora para um mundo que é vendaval furioso? Talvez a resposta aponte para uma confiança que se deposita aos pés de Cristo, e não em nossa própria percepção do mundo.

Pois foi o que concluí outro dia olhando para o passarinho engaiolado na casa da minha vizinha. Sempre abominei enjaular esses animais. E nunca me convenci que o mais carinhoso e dedicado dos criadores de pássaros poderia substituir um vôo livre pelo céu e o ambiente que o Criador fez para ser o lar deles. Uma opinião pessoal, é certo. Por isso mesmo quando vi a gaiola pendurada na casa da minha vizinha, bem em frente à porta da minha cozinha, fiquei incomodada. Mas tive que me acostumar a sua presença ali, enjaulado e expondo sua solidão para mim todos os dias.

A princípio fechava a porta para não vê-lo e assim minimizar a sensação de incômodo. Depois meu filho o descobriu e encantou-se por ele. Todos os dias me pedia para ver o “piu-piu”. E eu tentava desviar sua atenção, tentava mostrar os outros passarinhos no céu, nas árvores... não houve acordo, ele queria ver aquele passarinho. E os dois começaram a interagir. Quando via meu filho na porta da cozinha o passarinho começava a cantar. Meu filho respondia com balbucios e gritinhos de alegria.

Foi preciso que se passasse algum tempo até eu perceber o tamanho de minha ignorância. Sim, ignorância no sentido mais triste do termo, de ignorar, desprezar. Eu tentava resolver o problema dos passarinhos enjaulados fugindo da visão deles. E daquele em particular, o da minha vizinha, eu fugia fechando-me em meu mundo onde todos os passarinhos deveriam ser livres, como se não existisse um preso ali, ao meu lado. Foi preciso que meu filho de um ano apontasse que ali também havia uma vida, e que ao invés de evitá-la – visando tão somente meu próprio conforto existencial – eu poderia contribuir para torná-la um pouco mais feliz, nem que fosse “conversando” com o pequenino um pouquinho, já que não podia libertá-lo.

Gostaria muito que esta história se aplicasse apenas a seres irracionais, mas ela também repercute nas esquinas dos semáforos onde crianças ficam na ponta dos pés e encostam o nariz no vidro fechado do meu carro. São crianças presas na pobreza. Alguém nos diz: “Não dê esmolas! Você estará estimulando a mendicância!”, mas ninguém nos mostra uma alternativa para essa atitude, e chegamos a pensar que com a atitude negativa de “não dar” estamos contribuindo significativamente para o bem estar da sociedade. É, pode ser que, se ninguém der esmolas, elas sumam dos sinais, sumam da minha visão, mas continuarão existindo em algum beco sujo. E o que estou fazendo a respeito?

Gostaria que essa história não tivesse nada a ver com a forma como nossa sociedade trata os que não são confortáveis à nossa existência, e assim joga idosos num asilo, espreme criminosos numa cela, interna bem longe “menores delinqüentes” (falando assim nem lembramos que são crianças) e os “menores abandonados” (por nós também?), separa os deficientes, os que têm problemas mentais, os alunos que não aprendem, os jovens que não se encaixam, o joio - que era a árdua tarefa de Deus, e não nosso passatempo arbitrário, separar. Até que as conseqüências desses absurdos nos atinjam, achamos que está tudo bem porque o problema some de diante dos nossos olhos para continuar existindo longe de nós.

Não posso num texto tão curto discorrer sobre as formas de atuar sobre essas vidas sem segregá-las. Nem mesmo considerar questões sobre segurança e confiabilidade no fazer-o-bem-sem-olhar-a-quem. Gostaria até de falar sobre a dificuldade que é, simplesmente, ter a iniciativa de fazer o bem quando todos estão se fechando dentro de suas casas, instituições, empresas e politizando o processo – simples – de amar como Cristo amou. Resta-me terminar apontando para a própria figura do Cristo, que não fechou os olhos para os seres mais desprezíveis em seu tempo: prostitutas, leprosos, publicanos, ladrões... Em nosso tempo onde os desprezados aumentam vertiginosamente (Mateus 24), eu apelo que procuremos o eco daquele convite do Mestre: “Vinde!”. “E quem ouve diga: Vem. E quem tem sede, venha; e quem quiser, receba de graça a água da vida”. Recuperando a imagem de Deus em suas criaturas, digamos uma vez mais: “Ora, vem, Senhor Jesus”(Apocalipse 22:17 e 21).

domingo, 10 de maio de 2009

Adveniat - Sobre a vida

O teólogo Agostinho escreveu há alguns séculos: "Usamos mal da imortalidade e isso nos fez morrer. Cristo usou bem da mortalidade e isso nos faz viver." E hoje? Lidamos bem com a idéia da imortalidade? E da mortalidade?

Eu pensava sobre isso enquanto observava os jambos se acumulando no chão do meu jardim. Nosso pé de jambo foi plantado por minha sogra quando ela ainda era viva. Ela o fez para amenizar o calor, uma vez que a copa dessa árvore é realmente um abrigo refrescante nos dias quentes de Recife. O que talvez ela não imaginasse é que eu e meu marido não iríamos desfrutar de mais que a sombra dessa árvore, uma vez que não gostamos de jambo, e toda vez que os vemos assim, às centenas, no chão do jardim, gostamos menos ainda.

Alguns amigos e familiares que nos visitam ficam com dó. Tantos jambos e tão vermelhos, tão grandes e suculentos, mas que apodrecem até serem recolhidos por uma vassoura impiedosa que os manda todos para um enorme saco de lixo. Como a árvore já está muito alta, os que caem se partem de maduros, e os de cima estão muito altos para serem pegos com facilidade. Só os meninos da rua que às vezes entram para roubá-los – com meu total assentimento – é que conseguem tirá-los inteirinhos depois da deliciosa trabalheira de escalar quase até o topo.

E o que isso tem a ver com Agostinho, além dele também ter roubado algumas frutas na infância? É que o desperdício dos jambos me fez pensar em como desperdiçamos também a imortalidade que Deus oferta da frondosa árvore da vida. Não só isso: nem mesmo a nossa volátil mortalidade escapa de ser mal aproveitada, muitas vezes.

O fato é que se não amamos a Vida, que é a Pessoa de Jesus Cristo (João 14:6), não poderemos saboreá-la. Não teremos ânimo de enfrentar a escalada íngreme até o topo dos princípios cristãos, para nos apoderarmos de algo que nos é na boca tão insípido e sem graça quanto um jambo o é para mim – é também Cristo que dá sabor ao Fruto do Espírito (Gálatas 5:22). Ele é o maior argumento contra aqueles que vivem como se a vida fosse algo que pertence ao além, pois a forma como Ele viveu nos lembra que vida é agora, porque agora é chegado o Reino de Deus (Mateus 10:7). E a despeito da morte que nos espreita, cada cristão tem aqui um dever, que é mostrar o amor de Deus àqueles que precisam de Vida em abundância. Se não nos dermos conta de que precisamos morrer um pouco a cada dia em abnegação e conversão (João 17:3), pereceremos como fruta que não encontrou seu propósito: ser alimento para a vida (João 12: 24; 15:8). Fruta que não alimenta, seca e morre.

Por outro lado, a imortalidade também precisa ser um anseio do cristão. Mas essa imortalidade almejada não é simplesmente a vitória sobre a morte. Ela representa a vitória sobre o pecado, sobre a pequenez, sobre a amargura, sobre a mesquinhez, representa a vontade de transcender a carne e chegar até a perfeição que Deus pode nos prover (Romanos 6:22). Significa também esperança, segurança, coisas que não se encontram facilmente num mundo em crise de confiança (II Cor. 5:1). Se não cremos no imperecível e não buscamos aqui, dentre todas as coisas, aquilo que pode nos remeter ao Eterno (João 6:27), seremos como a semente que apodrece antes de descobrir nas mãos do Semeador o germe de uma nova vida. O fruto da árvore da Vida que nos acena da copa frondosa não cairá ao chão. Quanto a nós, é nossa escolha viver para a Eternidade – e os altos ideais que ela representa - ou voltar ao pó, como fruta que podendo ser transformada para a Vida, prefere o cimento lapidar do chão do jardim.