domingo, 25 de março de 2001

Complexo de Gilliatt? (Victor Hugo)

Há alguns dias, dando minhas navegadas, encontrei um site que entre outras coisas interessantes, disponibiliza vários e-books (http://ebooks.imn.com.br/). Acho de uma tristeza desmedida ler livros no computador, devido à sensação lamentável de não ter o contato orgânico do folhear de páginas. Mas ainda assim, os títulos que encontrei no site eram tão bons que não resisti a fazer uns "downloads". Não me arrependi, e contrariando minhas inclinações, "devorei" em pouco tempo as 1406 páginas virtuais (pequenininhas) de "Os trabalhadores do mar", de Victor Hugo, traduzido por Machado de Assis.

Não dá para resumir um livro tão profundo e minucioso como este. O autor enriquece o enredo com detalhes dos costumes, pessoas, lugares, objetos e sentimentos, a ponto de nos sentirmos diante de uma tela de cinema, e ainda nos leva a refletir nas suas assertivas sobre o ser humano e a natureza. De modo que não é sem receio que eu me atrevo a comentar parte da narrativa, e dividir minhas impressões – mais poéticas que filosóficas - com vocês.

O personagem principal do livro é um homem chamado Gilliatt, pescador rude, porém nobre que mora na pequena ilha de Guernesey, numa típica aldeia normandia do século XIX. Ele é o único personagem que se mostra inteiramente assim: nobre. Todos os outros têm desde uma mácula até a podridão completa no caráter. No entanto, justamente por ser um homem bom e simples, Gilliatt é renegado à solidão. As pessoas, longe de estimá-lo, o desprezam, lhe são ásperas e o insultam chamando-no feiticeiro, feio, e todo um cortejo de adjetivos repulsivos, que era a forma de disfarçar o quanto o temiam. Ele, alheio a tudo isso, desde pequeno aprendeu a conviver com o preconceito e desprezo através do isolamento. Tornou-se um homem com aversão ao contato humano e fez da natureza seu refúgio.

Durante a narrativa, o que me impressionou é que todos os elementos sobre a face da Terra pareciam expulsar Gilliatt dela. Todos os homens aparecem maus, ignorantes, ou simplesmente ignóbeis, de espírito corrompido pelas paixões ou futilidades. Parece ser impossível haver lugar entre eles que Gilliatt possa se acomodar. A própria natureza, de onde ele tira o sustento e sua única companheira, por vezes submissa e domada, mostra uma face monstruosa quando decide investir contra ele e arrasar-lhe as forças, tentando por todos os meios acabar com sua vida e empreendimentos. Tudo conspira contra Gilliatt, e até mesmo o amor, que o faz enfrentar a fúria de todos esses elementos, acaba por abandoná-lo também. Gilliatt sai do enredo como alguém que ousou entrar na história errada. Ele não possuía lugar entre as coisas humanas, porque parecia bom demais para estar entre elas. Desistiu de tentar, e entrega-se por fim ao mar, contra quem houvera tão bravamente lutado.

Há muito que se extrair da leitura desse livro fascinante. Mesmo quem não é dado a demoradas reflexões, não tem como sair ileso às frases de efeito ou, ao menos, um pouco mais entendido de assuntos navais.

Mas o que eu quero abordar aqui é apenas um aspecto das minhas conclusões literárias: o forte senso de desajustamento que atinge aqueles que decidem ser bons. Não pela glória da virtude nem pela recompensa do feito, apenas pela decisão de imitar a Jesus Cristo.

Quando decidimos fazer a coisa certa, mais precisamente quando nos tornamos cristãos autênticos, sempre encontramos a oposição, o escárnio, a falta de incentivo, o desânimo, a descrença, o riso. Dá aquela sensação que tudo ao redor nos expulsa. A que se deve esse sentimento? Complexo de Gilliatt? Jesus previu que seus seguidores passariam perseguições, injúrias, mentiras, aflições para todos os gostos e desgostos (relembrar Mateus 5:11 e 12, João16:33 entre outros). A Bíblia está cheia de histórias assim vividas pelos servos do Senhor. Eu, você e todos que um dia decidiram ser cristãos, também as têm.

Já vi muitos fazendo grandes esforços para tentarem adequar o fato de estarem no mundo e não serem do mundo, mas as tentativas nesse aspecto sempre resultam vãs. Há também quem desista porque não suporta enfrentar a fúria de um mundo inteiro contra as suas fraquezas humanas. A pressão da maioria é discreta mas intensa! Talvez seja melhor encarar tudo ao redor como normal e sobreviver! É tão mais fácil ser apenas "humano"...

Mas eu continuo achando que não temos que nos adequar aqui, porque este não é nosso lugar. Nosso planeta está muito contaminado pela maldade, e isso faz com que Satanás o controle facilmente. Por isso não é para se espantar que tudo se arremeta contra quem ouse ser bom e acredite no amor. Não é para se admirar que as pessoas nos machuquem, que os planos sejam frustrados sem explicação, que as conquistas sejam tão árduas e as vitórias tão sofridas. Se nós desanimamos com coisas como esta, é porque esquecemos que é à Pátria Celestial que devemos nos adequar; lá se dará a vitória que nos interessa. Não deixe que os sofrimentos aqui te preocupem ao ponto de fazer-te triste, de te levarem a desistir como Gilliatt fez.

A sensação de estar alheio a este mundo deve ser encarada como um lembrete de que pertencemos a um mundo muito superior. E quando rirem e pisarem nos nossos valores, sonhos e crenças, olhemos para o sorriso promissor de Jesus que nos espera mais além...

sábado, 17 de março de 2001

Exibindo

Olá amigos iluminados!

Não é mentira, está lá, para quem quiser ver. Eu estava deitada numa rede, sorvendo em preguiçosos goles meus últimos dias de férias, e procurando alguma coisa para ler na "Veja" que não fosse propaganda nem matéria para "Caras", quando me deparo com a criatura. Esposa de um cirurgião plástico, a...(custa-me dizer com convicção) mulher exibia seus mais recentes atributos. Em dois anos ela implantou cabelo, colocou 225 ml de silicone nos seios, mais silicone nos lábios e panturrilhas, fez lipoescultura na cintura, abdome e culotes, clareou os dentes, fez plástica no queixo para fazer uma covinha, tomou injeções químicas na testa para "suavizar" rugas, tudo isso arrematado com unhas postiças de porcelana e lentes de contato verdes, para destacar a beleza da tez bronzeada - artificialmente, claro. Para os que ensaiam uma interjeição indignada, é bom levar em conta os interesses artísticos da mulher: ela quer posar na playboy e participar de uma novela na Globo.

Eu ainda investigava a foto insólita, quando minha prima pulou na rede e me assaltou com uma proposta bem anti-estética: "vamos brincar de contar cicatrizes??" Invenção dos dias tediosos, essa é uma brincadeira interessante mas difícil: você tem que apontar uma cicatriz que tenha no corpo e dizer exatamente onde ou como a adquiriu. Se não lembrar, perde.

- Eu começo! - disse ela - essa aqui foi minha gata Chiquita que fez.

- Tá. Essa aqui na coxa, foi um ferro de passar que caiu quando eu tinha 7 anos.

- Essa no pé, foi um caco de vidro.

- Hmmm... espere. Essa na cabeça, foi passando numa cerca de arame farpado, quando tinha a sua idade.

- Essa aqui no tornozelo ó, foi semana passada, na sela do cavalo que eu montei.

- Ah, não lembro mais. Não faça essa cara, você está trapaceando, todo dia consegue uma nova. Eu não lembro mais de todas que tenho...

- Ganheeeeeiii!! E nem falei dessa na perna, quando levei uma queda, essa na testa quando bati no tronco de uma árvore, essa do dedo, que foi um bicho de pé, e essa daqui - falou ela aboreando a glória suprema - essa enooorme, quando esfolei meu joelho numa xícara quebrada.

Que contraste enorme entre a criatura da revista e aquela que me sorria dentro da rede. A primeira, utilizou-se de todos os artifícios para esconder seus defeitos, para encobrir de modismos suas imperfeições. Não a condeno: para os objetivos que ela tem em mente, está no caminho certo. E minha prima, toda feliz do meu lado, tirava a alegria de mostrar justamente todas as imperfeições que possui no seu corpinho, apontando detalhada e enfaticamente cada cicatriz, ficando tanto mais alegre, quanto mais feia ela fosse. Compreendo-a perfeitamente: aquelas cicatrizes são importantes porque contam a história dela, são as lembranças das aventuras saboreadas.

Cada um exibe o atributo que traduz seu conceito de felicidade. A Bíblia fala de alguém que também gostava de contar e exibir cicatrizes. O apóstolo Paulo não perdia a oportunidade de enumerá-las detalhadamente: "essa foi nos açoites e varas dos judeus, essas nos naufrágios, essas num abismo, essas quando fui apedrejado, essas de ladrões, essas aqui no deserto, etc, etc" (II Coríntios 11: 24 - 28) e arrematava com orgulho: "...trago no meu corpo as marcas de Jesus" Gálatas 6: 17. O que explicava esse orgulho feliz de Paulo? Masoquismo?

Em outro lugar Paulo fala de uma carreira que nos está proposta: o caminho do cristianismo (Hebreus 12:1). Acontece que esta carreira é longa, o caminho pedregoso, e ele sabia que podemos até levar uns tombos, arranharmos o joelho da alma, levarmos um corte na testa do espírito. E daí? O importante é levantar, limpar o pó, pôr um band-aid bíblico e sorrir feliz.

Paulo não via suas feridas como machucado, mas como um atributo que mostrava por QUEM e PORQUÊ ele vivia. Suas cicatrizes, eram exibidas com aquele gostinho alegre que antecede a vitória. O motivo desse estranho senso estético é um Ser que, vivendo num lugar cheio de seres perfeitos em todas as dimensões, é o único que exibe feias cicatrizes. "E se alguém lhe perguntar: Que feridas são essas nas tuas mãos? Dirá ele: São as feridas com que fui ferido em casa dos meus amigos" (Zacarias 13:6). Não pense que Jesus dirá isso com tristeza. Ele apontará para a cicatriz, abrirá um sorriso largo de satisfação e pronunciará o seu nome. E o meu. E o nome de cada pessoa por quem ele deu a vida na cruz.

As nossas cicatrizes espirituais, querido (a) amigo (a), são a forma de lembrar para fazer valer essas cicatrizes de Jesus. Os arranhões que porventura adquirirmos por causa de nossa fé, são uma maneira demonstrar nosso "sim" ao sacrifício supremo dEle. Tenha certeza que a mão de Deus te acompanhará durante toda a carreira para te livrar do mal e te levantar nas quedas. Mas se você sair com cicatrizes das batalhas, sorria e se exiba. Você está levando no corpo os atributos de uma guerra cuja vitória se aproxima, as insígnias do exército divino, as marcas do Senhor Jesus.

Uma semana iluminada!

Luna

domingo, 11 de março de 2001

Surpresa

Oi amigos!
Alguns aqui já sabem que há algum tempo eu resolvi me meter a regente e formar um grupo vocal na pequena Igreja do Alecrim. Ao contrário da atual tendência para esse tipo de formação, temos por objetivo primeiro louvar a Deus e depois, promover o senso de agregação entre os jovens que participam dele, procurando também desenvolver técnicas de educação vocal e espiritual, para um louvor sadio. A proposta é interessantíssima, o trabalho é exaustivo.

Eu fiz uma campanha intensa de incentivo para que toda a igreja participasse, e o resultado esperado é que, a grande maioria do grupo é formado por leigos e inexperientes em música, pessoas que não sabem o que é uma clave do sol, ou que só cantavam no banheiro, que nunca seguraram um microfone nem jamais ouviram falar de técnicas de respiração, impostação ou dicção. Chamam o relaxamento de "ginástica" e fazem as caretas mais sórdidas para aprenderem a usar o diafragma corretamente.
Como vocês podem imaginar, os primeiros ensaios foram bastante, digamos... trabalhosos. Eles cometiam erros primários, alguns não conseguiam cantar em uníssono. Não que eu saiba lá grande coisa de música, sou uma amadora em todos os sentidos da palavra, mas confesso que por vezes beirei ao desespero, me contendo num sorriso e em doses cavalares de paciência e bom-humor. A vantagem - também esperada - é que eles não têm vícios de cantar errado por anos a fio, são humildes para aceitarem seus erros, não sentem necessidade de sobressair, e se aplicam com afinco aos exercícios e ensaios. Estão todos lá, pontuais, ativos, participando em tudo, desde as meditações bíblicas até as vocalizes.

E o que a princípio era quase um desespero, passou a ser um trabalho compensador. Depois de muito esforço conjunto, oração, treino e um clima de amizade e estímulo, conseguimos harmonizar razoavelmente a primeira música. Algum entendido em música que nos ouvisse poderia julgar o som hediondo, mas enquanto eu ouvia todas as vozes em seus lugares, soando firmes e se harmonizando, fui ao êxtase, quase beijei todo mundo de tanta felicidade.

Surgiu então o problema. Como eles não estão acostumados às luzes e microfones, são tímidos e inseguros se forem colocados perante um público. Quando sugeri que iríamos cantar na igreja em breve, alguns quase desmaiaram, outros já começaram a ter crises de garganta. Mas ficou dado o recado, e embora eu não contasse com o apoio da maioria, os adverti que a qualquer momento poderíamos cantar, pois era para isso que estávamos nos esforçando tanto.

Procurei uma oportunidade por algum tempo. Não queria fazer isso num culto porque eles ficariam muito nervosos e acabariam não cantando nada mesmo, além de correrem o risco de se sentirem humilhados devido a presença de muitas pessoas. Mas eis que uma irmã da igreja resolve fazer aniversário...

Eu estava lá, com uma coxinha numa mão e o playback dos ensaios na outra. Quando vi que todos do grupo já haviam chegado na casa da irmã, levantei. Dirigi-lhe uma pequena homenagem, li um texto bíblico condizente com o tema da música ensaiada e anunciei que o nosso grupo iria cantar naquele momento em homenagem ao natalício daquela pessoa tão especial.

Dava para ouvir o coração de alguns batendo em ritmo de escola de samba. Eles se entreolharam medrosos, visivelmente assustados, mas incapacitados de reagirem porque a irmã realmente nos é especial, e ficou tão comovida com a iniciativa que não deixou espaço para ninguém voltar atrás. Sem um pingo de piedade, pedi para que todos ficassem de pé, se ajuntassem e soltei o playback com a melodia conhecida. Eles precisavam dar esse passo, quebrar a barreira do medo, terem uma primeira experiência como cantores. E tinha de ser ali, onde quer cantassem bem ou horrivelmente, todos achariam sublime, porque não entendiam muito de música.
Amigo, eu bem que gostaria , mas esta não é uma história sobre os milagres que Deus é capaz de fazer, ou anjos que se juntam aos cantores para dar uma harmonia perfeita e celestial...

Um dos tenores tentava engolir os cinco salgadinhos que, nervoso, colocou na boca de uma vez só. A contralto à minha direita teve um acesso de tosse. A soprano mais segura acabara de beber um copão de guaraná borbulhante e não conseguia mais que miar as notas. As calças dos baixos balançavam convulsivamente no ar, e a luta para unir as vozes lembrava a batalha de Waterlloo...

Aceito todas as críticas das ONGs protetoras de cantores amadores. Também assinto na reprovação dos psicólogos, regentes, assistentes sociais, ouço as mais duras censuras de todos os cantores aqui. O fato é que, depois que saímos de lá e convencidos a me pouparem o pescoço, demos boas risadas e chegamos à conclusão que a segunda vez será bem melhor que a primeira. Pelo menos pior, vai ser impossível ser. E eles vão se dedicar mais ainda a fim de estarem prontos para cantarem a qualquer instante necessário. A lembrança deste fato vai deixá-los tão atentos quanto preparados.

Sabem, Jesus é um regente que decidiu nos fazer surpresa análoga. Ele poderia ter escolhido anjos perfeitos e poderosos para terminar a maior obra desde a criação: levar o evangelho a toda criatura, e anunciar que Ele está voltando em breve e quer salvar a todos. Mas ao invés disso escolheu a nós, pobres coristas limitados, cheios de defeitos, falhas e pecados. E prometeu que muito em breve se dará o dia glorioso em que nos apresentaremos face ao Universo, com essa obra terminada – quer por nossas mãos, quer não. Temos à nossa disposição tempo, material e estímulo suficientes para estarmos preparados para esse grande dia, mas será que temos dedicado esforço bastante para não sermos pegos completamente desafinados com a música divina? Quando o Rei e Regente do Universo vier, achará em mim uma voz melodiosa por proclamar as verdades do Reino, e segura por firmar-se na Rocha? Ou apenas um par de pernas tremendo por saber-se nota dissonante da Bíblia, desesperando em gritar para fugir da face do Cordeiro?

Quero convidá-lo a, junto comigo, preparar-se com dedicação para tomar parte no coro celestial. É agora que devemos afinar nossas vidas de acordo com a música que Deus compôs para a humanidade, fugindo dos ritmos e dissonâncias que Satanás insiste em tentar inserir entre nós. A partitura é a Palavra de Deus. Unidos, orientando e confortando uns aos outros, ficará mais fácil conseguir a harmonia necessária. "Quando, pois vier o Filho do homem na sua glória, e todos os anjos com ele" (Mt25:31), nós nos uniremos a eles num perfeito louvor, em grandioso coro celestial.

Uma semana iluminada!

Luna

sábado, 3 de março de 2001

Biografia não-autorizada de um urubu

Seguindo a tradição milenar do calendário brasileiro, é passado o carnaval e começa oficialmente o ano. As férias se foram, deixando apenas a lembrança de umas boas histórias para contar; que eu, enfocando espiritualmente, me proponho a dividir com vocês.

A maior parte do meu ócio de verão foi passado na praia de Muriú, onde minha família possui uma pequena casa cercada por um paraíso tropical. Esse tipo de cenário costuma atrair os mais variados tipos de pentelhos de verão: cunhados, amigos do primário de quem você nem lembra mais, a vizinha do tio da namorada do amigo do seu primo em terceiro grau. Mas o que não esperávamos, é que um veranista muito mais bizarro nos viesse fazer companhia.

Aproveitando a onda atual de exaltação aos animais, que fez a secretária de defesa dos animais do Rio de Janeiro empregar um cão em cargo público de bastante reputação, e uma Universidade do Paraná emitir diplomas para uma cadelinha poodle e uma égua, resolvi também fazer minha homenagem. Quero registrar aqui uma biografia e dar meu viva à alimária!

Ele já chegou bastante bronzeado e recebeu o nome de Tiazinha. Segundo consta, era macho, mas não escapou à alcunha humilhante. Parece que o viram pela primeira vez, andando com as galinhas da minha tia, mas como todo bicho que chega a Muriú, acabou indo parar na nossa casa. As reações à chegada dele foram as mais diversas, mas todos estava unânimes numa coisa: o urubu era feio. Asqueroso. Tinha um olho torto e uma pata manca que o fazia ainda mais medonho, e seu bico parecia ter sido fabricado por um produtor de filme de terror trash. De alguma forma se afeiçoou ao nosso alpendre e insistia em passear por lá, assombrando os cachorros e traseuntes mais desavisados. Minha irmã mais nova, que a princípio morria de repugnância por ele, passou a lhe dar restos de comida, sobre os quais Tiazinha avançava com avidez, dando um nó no estômago dos que presenciavam o espetáculo.

Certo dia, um primo nosso levou o urubu para a Beira da Lagoa, e ninguém nunca mais o viu. Alguns desconfiam que ele foi morto, outros, como eu, preferem achar que agora Tiazinha voa pelos prados e campinas, com aquele vôo sublime que só os urubus têm. Quando em terra esses animais assustam, parecem-nos horríveis, nojentos, monstros comedores de carniça. Mas não há como ficar pasmo diante do belíssimo vôo deles, quando planam num balé majestoso pelos ares. Nisso eles são tão bons e bonitos quanto qualquer águia americana. Chego a achar até que os urubus deveriam viver sempre planando, lá em cima parece ser o lugar ideal para eles ficarem, não acha? Não é a opinião da minha irmã mais nova, que agora anseia a oportunidade de ter de novo um urubu de estimação.

Pois se afirmam que somos parente do macaco, e temos um tiquinho mais de genes que os vermes, eu lanço essa: nós temos algo em comum com os urubus.

Deus nos criou para as alturas. Quando os anjos nos vêem aqui na terra, acho que custam a acreditar que foi por essa raça medonha, horrível, desfigurada, que o Filho de Deus deu a vida. E se nós nos acostumarmos as coisas desse mundo, tranquilos em passear pela vida terrestre nos alimentando dos restos de prazer que ela tem a nos oferecer, não passaremos nunca de feios comedores de carniça espiritual. Porque tudo que há de bom aqui, é resto degradado por seis mil anos de pecado. Se nos conformarmos só com a felicidade que a humanidade busca na satisfação carnal, intelectual, social, financeira, espiritualmente seremos sempre a mais rasteira e repugnante criatura.

Mas experimente planar sobre tudo isso. Decida ir até o céu e você encontrará seu verdadeiro lugar. É buscando os objetivos mais elevados, os padrões celestiais, que nos transformaremos em lindo espetáculo a todo o universo. Alçaremos vôo belíssimo, que nos levará além de toda a pequenez dos limites humanos. Descobriremos nossa vocação para seres celestes, e mergulhando na atmosfera desse céu, ficaremos cada vez mais lindos, à medida em que chegarmos mais perto de Deus.