sábado, 3 de março de 2001

Biografia não-autorizada de um urubu

Seguindo a tradição milenar do calendário brasileiro, é passado o carnaval e começa oficialmente o ano. As férias se foram, deixando apenas a lembrança de umas boas histórias para contar; que eu, enfocando espiritualmente, me proponho a dividir com vocês.

A maior parte do meu ócio de verão foi passado na praia de Muriú, onde minha família possui uma pequena casa cercada por um paraíso tropical. Esse tipo de cenário costuma atrair os mais variados tipos de pentelhos de verão: cunhados, amigos do primário de quem você nem lembra mais, a vizinha do tio da namorada do amigo do seu primo em terceiro grau. Mas o que não esperávamos, é que um veranista muito mais bizarro nos viesse fazer companhia.

Aproveitando a onda atual de exaltação aos animais, que fez a secretária de defesa dos animais do Rio de Janeiro empregar um cão em cargo público de bastante reputação, e uma Universidade do Paraná emitir diplomas para uma cadelinha poodle e uma égua, resolvi também fazer minha homenagem. Quero registrar aqui uma biografia e dar meu viva à alimária!

Ele já chegou bastante bronzeado e recebeu o nome de Tiazinha. Segundo consta, era macho, mas não escapou à alcunha humilhante. Parece que o viram pela primeira vez, andando com as galinhas da minha tia, mas como todo bicho que chega a Muriú, acabou indo parar na nossa casa. As reações à chegada dele foram as mais diversas, mas todos estava unânimes numa coisa: o urubu era feio. Asqueroso. Tinha um olho torto e uma pata manca que o fazia ainda mais medonho, e seu bico parecia ter sido fabricado por um produtor de filme de terror trash. De alguma forma se afeiçoou ao nosso alpendre e insistia em passear por lá, assombrando os cachorros e traseuntes mais desavisados. Minha irmã mais nova, que a princípio morria de repugnância por ele, passou a lhe dar restos de comida, sobre os quais Tiazinha avançava com avidez, dando um nó no estômago dos que presenciavam o espetáculo.

Certo dia, um primo nosso levou o urubu para a Beira da Lagoa, e ninguém nunca mais o viu. Alguns desconfiam que ele foi morto, outros, como eu, preferem achar que agora Tiazinha voa pelos prados e campinas, com aquele vôo sublime que só os urubus têm. Quando em terra esses animais assustam, parecem-nos horríveis, nojentos, monstros comedores de carniça. Mas não há como ficar pasmo diante do belíssimo vôo deles, quando planam num balé majestoso pelos ares. Nisso eles são tão bons e bonitos quanto qualquer águia americana. Chego a achar até que os urubus deveriam viver sempre planando, lá em cima parece ser o lugar ideal para eles ficarem, não acha? Não é a opinião da minha irmã mais nova, que agora anseia a oportunidade de ter de novo um urubu de estimação.

Pois se afirmam que somos parente do macaco, e temos um tiquinho mais de genes que os vermes, eu lanço essa: nós temos algo em comum com os urubus.

Deus nos criou para as alturas. Quando os anjos nos vêem aqui na terra, acho que custam a acreditar que foi por essa raça medonha, horrível, desfigurada, que o Filho de Deus deu a vida. E se nós nos acostumarmos as coisas desse mundo, tranquilos em passear pela vida terrestre nos alimentando dos restos de prazer que ela tem a nos oferecer, não passaremos nunca de feios comedores de carniça espiritual. Porque tudo que há de bom aqui, é resto degradado por seis mil anos de pecado. Se nos conformarmos só com a felicidade que a humanidade busca na satisfação carnal, intelectual, social, financeira, espiritualmente seremos sempre a mais rasteira e repugnante criatura.

Mas experimente planar sobre tudo isso. Decida ir até o céu e você encontrará seu verdadeiro lugar. É buscando os objetivos mais elevados, os padrões celestiais, que nos transformaremos em lindo espetáculo a todo o universo. Alçaremos vôo belíssimo, que nos levará além de toda a pequenez dos limites humanos. Descobriremos nossa vocação para seres celestes, e mergulhando na atmosfera desse céu, ficaremos cada vez mais lindos, à medida em que chegarmos mais perto de Deus.

Nenhum comentário: