sexta-feira, 5 de dezembro de 2003

Para um cartao de natal

Ontem à noite resolvi dar uma boa olhada no céu antes de dormir. Contemplar cenários grandiosos como o céu ou o mar, me tranqüiliza o espírito porque lhe dão uma noção mais acertada da dimensão dele, e conseqüentemente, dos problemas que o afligem, os quais vão minguando... minguando... até misturar-se num ponto do infinito. Diante da beleza grandiosa do céu, é impossível enxergar as aflições com o mesmo assombro. E era essa certeza que eu queria apreender no meu coração para aceitar que já é findo o ano.

Tentei passar de largo as lojas enfeitadas com luzes, papais noéis (cada vez mais moderninhos, dançantes e em trajes esquisitos), penduricalhos multicoloridos. Tentei não prestar atenção nas propagandas apelando para o décimo terceiro salário. Mas ontem recebi um cartão de natal, e o que era intimamente ignorado ficou patente: é findo o ano! E agora me ataca a velha frustração, repetida antes de todos os natais, de que o ano vai embora sem que eu tenha conseguido realizar tudo que queria. O tempo passou mais rapidamente que no ano passado (e nesse, mais rápido que no anterior), de modo que boa parte dos meus planos continuaram presas ao mundo das idéias... e será que eu fiz tudo que deveria ter feito? Será que dei tudo de mim mesmo? Será que não poderia, nesse breve intervalo que nos separa do ano novo, correr atrás daquilo que protelei por tantos meses? Enche-me então uma repentina coragem, mas logo desvanece: hora de ir trabalhar...

Melancolia de quem queria ter certeza de que viveu do jeito certo. E olha que foi apenas o primeiro cartão de natal. Eu mesma tomarei tempo para fazer alguns, que ainda é um dos meus prazeres preferidos, mesmo que a modernidade o tenha incluído em sua ampla lista dos costumes obsoletos (portanto faço cartões como quem ama: sem esperar resposta). E saltando a praticidade dos computadores, dos cartões pré-pagos, dos telefonemas cordiais, eu gosto de fazer – ao menos para alguns, e os outros ficarão par ao próximo ano – cartões personalizados, com tesoura, cola, fitas, papéis e mensagens escolhidos por mim. Afinal são as mensagens a parte que mais toca ou mais perturba, o que não pode é uma mensagem natalina causar indiferença. Há que se atentar bem no que ela diz e para quem diz. Portanto pense duas vezes antes de escrever a velha frase: “que neste no ano que se inicia, todos os seus sonhos se realizem”, que tal desejo pode ser o que de pior podemos desejar a alguém querido.

Nós temos uma mania feia de enxergar a vida de forma muito pontual: deu certo, não deu certo e ponto final. Mas quando parece que um sonho não deu certo, pode ser que esteja se iniciando o começo de um sonho mais perfeito, mais acertado, com maiores chances de nos conduzir a um bom lugar, e que no entanto, nós ainda não sonhamos, e só iremos reconhecê-lo (que se reconheça, ora pois!) muito adiante, quando o futuro nos colocar num patamar privilegiado para ver todas as coisas passadas com seu fim alcançado. E então compreenderemos que o ser humano precisa aprender a sonhar, não com os olhos fixos no presente e suas dádivas imediatas, mas perceber nos sonhos algo de atemporal, que por vezes escapará à nossa posse, à nossa auto-suficiência, ao nosso entendimento míope e limitado, que teima em se apegar ao agora, ao aqui e em caso contrário, ao lamentar ignorante.

É possível que eu não consiga, embora quisesse muito, fazer um cartão de natal para cada pessoa que receberá este texto. Além de anacrônica, eu tenho pouca prática com as artes manuais... mas desde já deixo com todos a minha mensagem preferida, que a todos serve em qualquer ocasião: no ano que há de se iniciar em breve, desejo que todos os sonhos de Deus para você se realizem. Até lá desejo fé para chegar ao fim do ano sem fardos de frustrações ou lamentos, sem a sensação pesarosa de que poderia ter feito ou deixado de fazer. “Porque agora vemos como em espelho, obscuramente; mas [quando vier o que é perfeito] veremos face a face. Agora, conheço em parte; mas [quando vier o que é perfeito] conhecerei como também sou conhecido” (I Cor. 13:12). Desejo, sobretudo, que aprendamos a olhar a vida como quem olha o céu ou o mar: sem assombro, sem uma visão pontual, com uma noção mais acertada das nossas perspectivas.

Um sábado iluminado,

Luciana Dantas Teixeira

domingo, 30 de novembro de 2003

Aos amigos dos noivos

Ele pensou em tudo, pois haveria de ser algo bem romântico. E não bastava ser romântico (como era difícil namorar alguém especial!), tinha que ser o romantismo certo, a expressão que tocasse o coração dela com singeleza mas profundidade. Providenciadas as alianças ele arquitetou o melhor momento de fazer o pedido. Caminhou de um lado para outro na casa e acabou parando na cozinha. Ele sabia cozinhar, e fazê-lo para ela era sempre um prazer. Pensou num cardápio e comprou pratos novos, com tulipinhas desenhadas na borda porque são as flores preferidas dela. O fundo musical também já estava planejado. Restavam as flores e no meio delas, aquele sorriso que o fazia suspirar.

Tudo pronto, preparava-se para ir à floricultura quando recebeu a ligação dela: “Não há passagens para hoje... então só vou poder ir amanhã cedo, tudo bem?”. Ele disse “tudo bem” mas o chão fugiu sob seus pés. É claro que não estava tudo bem. Ele entendia a situação mas custou a aceitá-la. Voltou para casa, olhou os pratos...sentiu mais fortemente a frustração de não tê-la ali (e sempre se surpreendia ao constatar que essa sensação podia ser mais forte).

Há exatos setes meses eles deram seu primeiro beijo. Encontraram-se quase acidentalmente: ele trocara o carro e de última hora resolveu viajar até Natal. Lá chegando foi ver uns amigos, que não via há algum tempo. Aquelas decisões que se tomam sem planejar, sem pensar muito. E ela estava lá num vestidinho preto, o olhar meio triste mesmo embaixo daquele sorriso (ahhh...), como que carregando uma dor secreta. Trocaram umas poucas palavras e ele se foi. Os amigos porém, que conheciam bem a ambos, insistiram que eles combinavam direitinho, que dariam um par perfeito. Mesmos gostos, valores, mesma forma de encarar a vida, mesmo padrão na busca da companhia ideal. A partir daí os amigos tiveram uma importância fundamental: como conselheiros, secretários (e-mails, telefones), relatores da vida alheia (e tinham que repetir mil vezes com todos os detalhes possíveis e inimagináveis as características um do outro), incentivadores (como é dura a timidez!) e torcedores exaltados (com mil coisas afins que não caberiam em dez mil parênteses). De tanto investirem propaganda, empenho e paciência, acabaram por testemunhar o dia em que, finalmente, eles começaram a namorar. E tudo que ele queria – se aquele ônibus importuno tivesse deixado - era dizer-lhes que não eram mais amigos de um casal de namorados; eram amigos dos noivos!

Por certo eles se sentiriam felizes e privilegiados. Talvez até dissessem como João Batista: “o amigo do noivo, que está presente e o ouve, alegra-se muito com a voz do noivo. Assim esta alegria já se cumpriu em mim.” (João 3:29). Interessante perceber que a figura do amigo do noivo já existia há muito tempo, porém num contexto mais específico. À época de Jesus, a maior missão da vida de um pai hebreu era casar seu filho. Para tanto, ele escolhia o servo de maior confiança de sua casa para essa missão: encontrar uma noiva ideal para o herdeiro de todos os bens da família, transformando-se, portanto, em seu depositário. O servo encarregado dessa delicada missão era chamado “o amigo do noivo”, e a partir de então deixava todos os seus afazeres ordinários, domésticos ou rurais, para dedicar-se tão somente a sua missão: achar uma jovem adequada, “apaixoná-la” por alguém que na maioria das vezes ela nunca tinha visto em sua vida, e obter seu consentimento e o da sua família para levá-la até a casa ou o país onde morava o filho do seu senhor.

No texto do evangelho, flagramos João Batista num momento de crise de popularidade. Pouco tempo antes, pessoas dos lugares mais distantes, dos mais altos cargos políoticos ou religiosos, do mais rico ao mais pobre procuravam-no para ouvir sua pregação e serem batizados por ele. Até que um dia apareceu Jesus e “roubou o foco da câmera”, transformando-se na principal figura do cenário religioso de Israel. Os seguidores de João, chateados com aquele repentino fracasso, foram até ele dizendo que Jesus, aquele a quem João havia batizado (e frisaram bem essa parte para deixar subentendido que Jesus devia submissão à João Batista), estava atraindo a atenção de todos os seguidores que antes “pertenciam” a João, e batizando-os, sendo que isso não era justo, pois aos seus olhos, João era o Mestre. Mas João respondeu usando a figura de linguagem que todos à época entederam muito bem: “Quem tem a noiva é o noivo, eu sou simplesmente o amigo do noivo, e minha alegria é cumprir minha missão”. Com isso João queria dizer que, justamente naquele momento de aparente fracasso, é que ele estava mais feliz, pois tinha conseguido conduzir a noiva, Israel, ao noivo, Cristo. Portanto chegado era o tempo em que o amigo do noivo diminuiria, e Cristo apareceria cada vez mais.

Um dos amigos do noivo mais famosos e importantes da história de Israel, tem sua missão relatada em Gênesis 24. A forma como Eliezer conduziu Rebeca a Isaque tem muito a nos ensinar; cada pequeno detalhe aponta para uma missão que nós mesmos temos, ao passo em que nos colocamos como amigos de Jesus. Reconhecendo a Cristo como o noivo e a humanidade como sua amada pretendida, entendemos que ele nos confiou esta missão porque somos considerados por Ele servos de sua maior confiança e competência. E se olharmos para o modo como Eliezer se portou, notaremos que ele saiu da casa de Abraão com tudo de melhor que havia ali – ouro, prata,. Marfim, seda, alabastro – mas não confiando só na riqueza que carregava, pediu ajuda a Deus. A Bíblia diz que estando ainda em oração, Deus lhe respondeu enviando Rebeca cumprindo o sinal que Eliezer havia pedido. Portanto observemos que ao falar de Jesus para as pessoas, devemos mostrar o que de melhor conhecemos em sua casa. Levar para o mundo paz, alegria, fé, coragem, esperança, amor, todo esse rico tesouro que está à disposição para impressionar a noiva, e quando as pessoas disserem: “quanta coisa boa você transpira!”, que nós possamos arrematar: “você não viu nada: na casa do meu Senhor, que é a minha fonte, há muito mais! E Ele próprio é a maior riqueza, que nenhuma expressão humana é capaz de descrever”. Depois lembremos que trabalhamos para o Senhor e com o Senhor: a Sua ajuda é imprescindível a cada passo. Aprendamos também com a história de Eliezer, que esse amigo do noivo elaborou um rito pausado, sem pressa, sem fórmulas prontas ou palavras mágicas. Eliezer estudou com carinho o caminho para chegar ao coração de Rebeca, e uma vez tendo-o encontrado, foi tão feliz que ela não pensou duas vezes em deixar a família, a pátria e tudo o mais para ir ao encontro da felicidade. Assim como aconteceu com Rebeca e Isaque, há um final feliz garantido para o noivo Jesus e sua noiva, a humanidade. Basta usar o que há de melhor em nós para dizer isso às pessoas, e elas naturalmente se apaixonarão por Cristo, sem temor de deixar pra trás as coisas pequenas que as prendem a este mundo.

Mas ainda há uma história para retomar! Como terminou a historio do noivo cheio de expectativa que mencionei no primeiro parágrafo? Não terminou. Se a vontade e bênção divinas permitirem, não haverá fim para essa história. Necessário apenas dizer que dois dias depois eles foram jantar num restaurante japonês e lá ele descobriu duas coisas muito significativas: a primeira é que ela detestou sushi; a segunda, que eles ficam muito bem de aliança.

Uma semana iluminada!

Luciana Dantas Teixeira

domingo, 16 de novembro de 2003

Porque ele disse que vai ficar tudo bem

Lucas pôs em mim aqueles olhinhos ternos e segredou-me:

- Tô com medo...

Eu me inclinei para ele, segurei suas mãos pequeninas e disse que eu entendia que ele estivesse com medo, mas que ele agüentasse firme pois eu estava ali e não ia deixar ninguém lhe fazer mal. Ele sorriu e aconchegou-se junto a mim. Quando eu pensei que estava tudo bem ele tornou a me encarar:

- E você, tem medo?

- Eu tenho. Um monte deles: tenho medo de escuro, de lugares pequenos fechados, de lugares grandes cheios de gente, tenho medo de bonecas de porcelana...

-Ha ha!

- É! Quando eu era do seu tamanho – eu já fui do seu tamanzinho – eu achava que as bonecas de porcelana iriam me pegar quando eu dormisse e dar nós nos meus cabelos.

- Que medo bobo!

- Ah, quase todo medo é bobo para quem não sente aquele medo. Por exemplo, você gosta de galinhas, né? Eu tenho medo de galinhas. Minha irmã mais nova corria com a cabeça de uma galinha morta atrás de mim e eu quase fazia xixi de tanto medo. Mas você deve achar isso muito bobo! Tem outros medos que não são tão bobos. Como o seu agora. Fazer uma cirurgia não é um medo bobo, é mede de gente grande!

- É? Falou estufando o peito.

- É! Mas como eu te disse, estou aqui e não vou deixar que te façam nenhum mal.

- E você não está com medo?

- Hmm... é.... bem, Lucas, eu também estou.

- Então como sabe que não vão me fazer nenhum mal?

- É que seu pai está ali, está vendo? E ele me disse que te ama muito, e me ama muito, e não vai deixar que ninguém faça mal pra nós dois. Porque se fizerem mal pra você, estarão fazendo mal pra mim também.

- E o papai não está com medo?

-...

- Está?

- Está, Luquinhas.

- E como ele sabe que não vão fazer mal pra mim e para você?

- É que... Você viu quando o seu papai estava de olhos fechados? Ele estava orando para o Papai do Céu, dizendo a ele que tem muito medo de ver seu filhinho numa operação delicada, que não quer que nada dê errado com você, e Deus garantiu que vai ficar tudo bem, que ele não precisa ter medo, porque Deus ama muito o papai, você e eu, e não vai deixar que nada aconteça para o nosso mal, pois seria como se fizessem mal para Ele.

- E Deus...

- Não, Lucas, Deus não sente medo.

- Eu acho que Ele sente sim! Acho que Deus tem medo que a gente tenha medo.

- É mesmo, né?

- É “óbivo”! Se o papai ficar com medo, você também vai ficar com medo e eu também vou ficar com medo, daí eu não vou fazer a cirurgia e Deus não vai poder curar meu olhinho doente, né? E Ele tem medo de que a gente não deixe Ele me curar...

- (nó na garganta) – é...

- Mas... e quando Deus fica com medo quem é que diz para Ele que vai ficar tudo bem?

- Ora, é você, Luquinhas! E não acabou de dizer? Quando você acredita que não precisa mais sentir medo, porque tem muita gente que te ama protegendo e cuidando de você, aí Deus não fica mais com medo e pode fazer o trabalho dele sossegado porque Ele sabe que a gente acredita que vai ficar tudo bem, então não vamos atrapalhá-lO. Vou contar um segredo. Eu e o papai não queremos que você se machuque, não queremos que nada de mal lhe aconteça, mas só temos uma vaga idéia do que é realmente bom ou ruim para você. O papai por exemplo não gosta da idéia do médico cortar seu olhinho, mas o médico vai fazer isso apenas para te fazer um bem maior, e você ficar curado. Se o papai pudesse não te largaria nunca, porque ele acha que bom pra você é você ficar sempre perto dele, ele acha que sabe tudo sobre te proteger. E eu então? Você acha que uma pessoa que tem medo de galinha sabe o que é bom para Luquinhas? Mas a gente não sabe, só pode acreditar para deixar Deus fazer o trabalho dEle em você. Se Ele te trouxe até aqui para você ter o que precisa para ser feliz, eu e o papai vamos ter que deixar você ir e sem medo, pra que dÊ tudo certo como a gente quer.

Os médicos vieram, e começaram a levar Lucas para fora da sala numa maca. Seu pai ainda o segurou um instante (como assusta o desconhecido!), mas Lucas sorriu para o pai e disse:

- Papai, deixa eu ir! Pode acreditar em Deus que já falei para Ele que vai ficar tudo bem...

Uma semana iluminada, amigos!

Luciana Dantas Teixeira

ps.: Dedico este texto a Anderson. Meu amado amigo, siga tranqüilo. Nada de mal vai acontecer com você. E a essa altura você já sabe porquê...

terça-feira, 11 de novembro de 2003

Tratamento natural

Meu frágil limiar para a dor me fez ser, durante muito tempo, uma entusiasta assumida da praticidade alopática. Qualquer dor, febre, cólica ou machucado, eu corria para um remédio rápido, local, eficiente e se possível sem gosto ruim nem ardência. “Ora”, eu raciocinava, “se Deus nos permitiu ter a ciência de ir direto ao ponto com uma aspirina, nada como agradecer-Lhe fazendo uso da dádiva.” E que parto humanizado que nada! Desde que, aos doze anos, eu compreendi exatamente como os bebês vinham ao mundo, decidi: “quero um parto com drogas, muitas drogas, dopping absoluto”.

Mas tive a chance de convier algum tempo com um casal muito amável que me fez ver o processo doença/cura por outra ótica. Enquanto as estadas na casa deles se resumiam a degustar deliciosas refeições vegetarianas, estava tudo às mil maravilhas. Até um dia em que, logo após o almoço, me atacou uma das minhas insuportáveis enxaquecas. “Como assim não tem aspirina?”, eu perguntei incrédula à senhora sorridente. E ela me explicou mais uma vez que não tinha, que eles não faziam uso de nenhum tipo de tratamento alopático, não gastavam um só centavo na farmácia. Na minha bolsa, dezenas de cartelas vazias de anador aumentavam meu desespero. Ela, percebendo-o, recomendou que eu tomasse um banho frio, depois fizesse um escalda-pés, e por fim me faria uma massagem nas têmporas. Fiquei ainda uns minutos olhando boquiaberta para aquela gente que, em pleno século XXI, não possuía uma aspirinazinha salvadora em casa. Como eles conseguiam sobreviver? “E quando está no trabalho, oq eu a senhora faz? Pede licença pra ir em casa tomar banho e fazer escalda-pés?”. Ela respondeu, mais sorridente, que eles não tinha dor de cabeça. “Ah, tá”, eu murmurei ainda boquiaberta, me dirigindo para o banho.
Já com os pés numa bacia de água quente, ela massageando minhas têmporas, me ocorreu uma vaga lembrança que foi ficando mais e mais viva na medida em que eu me concentrava nela. Lembrei que quando eu tinha por volta de sete anos, já tinha crises fortíssimas de enxaqueca que não diminuíam com nenhum tipo de analgésico. Eram tão violentas que eu gritava, chorava desesperada e por fim quedava-me semiconsciente. Mas havia um tratamento infalível: era quando minha mãe ou meu pai deitava minha cabeça em seu colo, colocava as mãos em minha testa, e enquanto oravam ou cantavam alguma prece, acariciavam-na ternamente. Então eu dormia tranqüila, e ao acordar já não sentia nada.

Como quando ela parou de massagear minhas têmporas. Eu estava bem. E refletindo sobre o episódio apreendi algumas coisas do tratamento natural, que listo abaixo sem intenção terapêutica, mas – acredite – com um interessante fundo teológico:

1 – Somos todo, devemos ser tratados como todo – “De maneira que, se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele.”(I Cor 12:26). A alopatia é objetiva, vai direto ao ponto se concentra lá, crendo que tratando o mal no local em que ele se manifesta, resolverá o problema. O tratamento natural considera o universo. Não vê uma cabeça com vasos dilatados e doendo, mas uma criança que chora com dor, medo e desespero. Vai tratar da segunda. Acalmá-la, acariciá-la, falar ao seu corpo e espírito por entendê-la completa. Não somos pedacinhos. Desde o mito das almas gêmeas de Aristófanes, muitos insistem em acreditar que são metade, parte quebrada que dói. Mas somos como Deus nos vê: um todo (embora nem sempre bem concatenado). Por isso Ele não acabou com o mal pontualmente quando esse se manifestou. Bastaria uma palavra e o lugar onde o mal primeiro apareceu seria fulminado. Mas isso traria efeitos colaterais profundos para a história da humanidade atingida pela chaga, e o homem jamais teria certeza da justiça de Deus, tal como, no início, não tinha certeza da natureza do mal. Por isso Ele foi além para resolver o problema no todo, na humanidade, mesmo que essa nem sempre O entenda e às vezes O culpe pelo mal que Ele está derrotando (só os olhos da fé podem ver vitória iminente entre tantas feridas). Enquanto isso, no todo de cada homem, nas histórias que formam a História, Deus vai prescrevendo a cura, manifestando Seu amor de forma ao mesmo tempo pessoal e universal.

2 – Os semelhantes foram feitos para os semelhantes – o lema da homeopatia, um dos tratamentos naturais mais difundidos, é “os semelhantes são curados pelos semelhantes”. A alopatia introduz elementos contrários ao mal, com o fim de forçar o órgão a encontrar sua solução. O tratamento natural emprega elementos comuns ao meio em que o homem vive para envolvê-lo a partir daquilo que seu organismo conhece, mas sente falta. Tal como Deus que, para resolver o problema da humanidade, desceu até ela com tudo em comum. “Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si” (Isaías 53:4). Resolver as coisas lá de cima, objetivamente, como Deus, seria fácil, rápido mas impessoal. Então ele veio aqui, assemelhar-se. E, inocente, sofrer num corpo frágil as dores e tentações da humanidade inteira... foi difícil. Mas necessário, tanto quanto a cura para nós.

3 – Os semelhantes se unem - Um médico alopata, quando vai tratar do doente de estômago, olha o estômago. Examina o órgão por dentro, por fora, dos lados e dá seu parecer. Médico e paciente continuam a uma distância segura. No tratamento natural, o olhar examina inteiro e comedido, sem pressa e com curiosidade. Há contato (nosso século tem medo disso!) para que haja unidade, e na justa inteireza, a cura. As mãos espalham o ungüento, tocam a pele, os pés tocam a água, os sentidos tocam cheiros, gostos verdadeiros, até o som da voz materna, de uma oração ou música (como eu que hoje administro Mozart para minhas enxaquecas). Os semelhantes se abraçam, sem medo. Tocam-se; no toque se reconhecem. E ao se conhecerem de novo se unem. Tal como eu, que depois de conhecer o amor de Cristo revelado em Seu sacrifício e na intercessão cotidiana do seu sangue purificador, não posso seguir em outra direção que não seja Seus braços, Seu olhar, Sua resposta às minhas dores.

Não pretendo defender a superioridade absoluta do tratamento natural sobre o alopático. Nem que eu tivesse condições técnicas para isso, poderia deixar de admitir que esse último também é importante para solucionar nossos males. Mas ainda que tenha de amadurecer a idéia do parto humanizado, sigo divagando uma vez mais, que este meu frágil limiar para a dor me conduz incontinenti a pensar sobre como Deus revela de tantas formas Seus mistérios de salvação.

Uma semana iluminada,
Luciana Dantas Teixeira

segunda-feira, 3 de novembro de 2003

Uma dor

Ontem, quando entrei no ônibus de Recife para Natal, imaginava que aquela seria apenas mais uma viagem cansativa e melancólica de mais de quatro horas para longe de alguém que amo. Comprei a última passagem que sobrara, bem no fim do corredor direito, e a encontrei ao lado de um homem simpático que se ofereceu para guardar minha bolsa no compartimento de cima. Agradeci, e como sempre faço a fim de evitar a possibilidade da viagem ser ainda pior, abri logo um livro e fiz cara de leitora compenetrada para não dar margem à grandes diálogos. Chatice minha, provavelmente, mas conversar em ônibus me dá enjôo, especialmente considerando o tipo de conversa que quase sempre se inicia. Mas se tenho percebido algo nas minha ponte rodoviária Natal-Recife, é que os ônibus deixam as pessoas mais sensíveis e abertas. O fato de ter ao lado um interlocutor que possivelmente não se verá nunca mais desarma as travas da língua. E assim, depois que a luz apagou e eu acordei sobressaltada de um pequeno cochilo, o homem ao lado perguntou sobre as partituras que eu estava lendo e começamos a conversar.

Ao contrário do que eu imaginava, a conversa fluiu agradavelmente. Falamos de música, índios, aviões (ele é piloto da aeronáutica), peixes, e lá pelas tantas tentávamos identificar constelações pela janela do ônibus. Foi quando falei de Deus (na se pode olhar as estrelas sem pensar nEle). E Romeno mudou a entonação da voz. Falou que há algum tempo ele era um religioso dedicado, um cristão convicto, que não perdia um reunião na igreja, onde ia com sua esposa e duas filhas. Mas um dia, tendo saído da igreja com sua família em direção a casa, um caminhão desgovernado chocou-se contra seu carro, esmagando todo o lado esquerdo de sua mulher, passando por cima de sua filha mais nova e arrancando as duas pernas de sua filha mais velha.

- Se eu não tivesse ido à igreja naquela noite, isso não teria acontecido.

E Romeno começou a chorar. Poucas lágrimas já me afligiram tanto quanto as daquele homem, um militar treinado para ser forte e resistir a situações limite, mas que não resistia à própria dor, que carregava há doze anos com uma mágoa profunda. Seu semblante e conversa denunciavam um homem bom, honesto, sensível. Mas a ferida sangrava lá dentro, e agora ele não fazia força para esconder. Em meio às lágrimas ele me falou que sua filha, Catarine, foi o único bem que lhe sobrou. E para tentar fazê-lo parar de chorar, eu pedi que ele me dissesse como ela é, o que gosta de fazer. Enquanto ele a descrevia, sua face ficou mais alegre: ela vai fazer o vestibular próxima ano, adora estudar o céu e as estrelas, sabe o nome de cada constelação, é uma menina organizada, batalhadora, gosta muito de animais (a ponto de criar carinhosamente três gambás), e apesar dele não dizer expressamente, ficou patente que é uma garota feliz.

Mas ainda restava Romeno, ali, com aquele buraco no peito, e eu sem saber como estancar. E eu poderia? O que dizer a um homem que perdeu seu ideal de felicidade de uma forma tão violenta? Como responder às mesmas velhas dúvidas, cujas respostas eu mesma nunca encontrei, tais como: “o que fiz de errado para receber esse castigo?”, “por que Ele não impediu que isso acontecesse?”, “elas ainda estariam vivas se eu não fosse um cristão?”. Por alguns minutos calamo-nos. Romeno olhava as luzes de Natal se aproximando e eu orava pedindo que Deus falasse algo para ele através de mim. E pouco antes de ver Romeno partir eu lhe disse que precisava dizer-lhe algo:

- Não culpe sua fé pelo que aconteceu. Sua fé garantiu a salvação de sua pequena filha, e fez a sua esposa, orgulhosa, levar de você a imagem do marido que ela sempre quis ter. Deus não está indiferente à tua dor, Ele, que também viu morrer o Filho sem poder fazer nada, sabe exatamente como você se sente. A dor dEle teve uma finalidade, que você sabe, é a causa de toda a humanidade poder ter vida. A sua dor, Romeno, também tem. Um dia você vai saber, mas até lá considere que perder esposa e filha já é demais para um homem; não perca também sua fé. Ainda é preciso ter fé para garantir que você e sua filha Catarine cumpram o plano que Deus preparou para vocês aqui, e um dia, possam saber as respostas das suas perguntas. Deus ama você. Muito. E independentemente da sua dor, o amor dEle vai te continuar lhe acompanhando.

O ônibus parou. Romeno pediu licença, pegou sua bolsa, apertou minha mão e disse que foi um prazer conversar comigo.

- Sei que foi Deus quem te mandou aqui. Você é um anjo dEle. Pois então mande-lhe um recado: diga que valeu a tentativa.

Anjo, Romeno? Não... sou muito menor. Não posso sequer suportar a dúvida de que, talvez, não tenha te falado o suficiente, não tenha te dito as palavras certas. Como sou impotente, meu amigo viajante. Não consegui, antes que você saísse, nem mesmo lhe dizer que, se Ele tentou, é porque você é muito importante para Ele.

Uma semana mais iluminada,

Luciana Dantas Teixeira.

segunda-feira, 27 de outubro de 2003

Que poderia ir em branco

Vocês não entenderiam se eu hoje lhes mandasse um e-mail em branco. E essa é uma das desvantagens da internet: na virtualidade nosso silêncio não faz sentido. Se calamos, anulamos a nossa existência, ao menos em relação a todos os nossos contatos virtuais. Eu mesma receio ter morrido para alguns amigos cujos e-mails repousam em meu Outlook como que deitados eternamente em berço esplêndido, sem que eu tenha tempo para respondê-los com o devido carinho, como gosto de fazer. Mania de quem ama as palavras, a ponto de não querer jogá-las de qualquer forma, mas dar-lhes o conteúdo mais formidável. Mania que em nada me enobrece, posto que continuo em falta com meus amigos. Resta meu silêncio inútil.

Ao começar este parágrafo quis pensar que, no “mundo real”, este mesmo silêncio fosse mais bem compreendido, mas já nesta segunda linha temo que não. Basta pensar na crescente objetividade do nosso tempo, onde parece que os sentidos vão perdendo algo de sua função: as pessoas comem em função das calorias, procuram eliminar ou disfarçar todos os cheiros, escutam apenas aquilo que não é preciso parar para ouvir, não tocam, seja por medo de estragar, de se contaminar ou simplesmente para não serem acusadas de assédio sexual, olham para os textos que dizem como está lá fora, lugar onde a vista não chega mais. E para tanto, comunicam-se. Meu Deus, como comunicam-se as pessoas de nosso tempo! Quantos recursos, tantos meios de exibir fala, imagem, texto, signo, o mundo fervilha em informações cada vez mais velozes, sinópticas, para nos poupar tempo a fim de darmos lugar à informação seguinte. Os sentidos numa tensão de atender a este ritmo, enquanto esquecemos de contemplar.

Saber silenciar; deixar todos os sentidos passivos e livres de qualquer responsabilidade para conosco. Um bom exercício é conviver com mulheres. Bem, vou tentar não generalizar só desta vez e falar apenas de mim, para quem a condição mais próxima de felicidade num relacionamento, é o reconhecimento de ouvir e ser ouvida. Presentes, gestos bonitos, a própria beleza em si são importantes, mas não superam o momento transcendente de contemplar exatamente aquilo que eu queria ouvir. Na hora certinha, sem dicas. E quanto tormento se evitaria se na hora de eu falar – naquela premente hora em que tudo que quero é ouvir nada – encontrasse um par de ouvidos pacientes. Mas o homem treinado para reconhecer problemas e necessariamente solucioná-los não desarma o ouvido analítico, e se desespera tentando achar uma solução, uma saída, uma explicação, o telefone da emergência, qualquer coisa que acabe com o problema, e quanto mais se desespera, mais a mulher suspira a falta do silêncio (ah, sim, eu tentava não generalizar). Não que seus problemas sejam o que há de mais lindo na natureza para contemplar. Mas certos momentos não pedem solução, apenas compreensão, e em se tratando das mulheres... digo, de mim, posso afirmar que nem isso, posto que totalmente inexigível, mas há momentos em que o não agir, não falar e não solucionar é a maior dádiva que se pode dar a uma mulher. De torná-la a criatura mais feliz do universo.

A verdade é que todos nós precisamos do silêncio, da contemplação, abrir a alma sem reservas a uma linguagem mais apurada, que nem sempre nossa mente finita consegue entender (não me refiro mais somente a ouvir as mulheres). Imediatamente antes de Jesus começar seu Ministério, ele não foi fazer um curso de oratória, nem conversar com os grandes sábios de seu tempo, nem praticar sua capacidade de fazer milagres. A Bíblia diz que Jesus foi para o deserto. E lá, com os sentidos desligados de todo o mundo exterior, na contemplação absoluta do humano e de Deus, Ele encontrou o que sua natureza humana precisava para enfrentar e vencer sua missão.

Nesta semana, tente dar uma folga para seus sentidos, deixá-los livres, abertos. Eles são o canal pelo qual o Espírito Santo nos fala, e se estiverem sempre ocupados em fazer, sem nunca receber, não poderão conhecer uma realidade mais elevada que a que os cerca (“...porque eles, vendo, não vêem; e ouvindo, não ouvem nem entendem” Mateus 13:13). Deixemos a vida correr um pouco mais passivamente, sem reservas, sem criar tantas imposições para limitar-nos e comprimir-nos: que venham gostos, cheiros, vistas, toques, sons, que venha o silêncio compreendido em toda extensão de sua expressividade, que venha a falta, o vazio, até mesmo a solidão, mas que nisto venha a linguagem sutil do Senhor a aguçar um pouco mais nossa frágil existência.

Boa semana,

Luciana D. Teixeira

segunda-feira, 20 de outubro de 2003

Mais

Geralmente os homens tem pior memória para datas. Mas ela só lembrou porque ouviu aquela música indelével: “everybody knows we live in a world where they give bad names to beautiful things”. Há exatamente um ano ela olhava a lua e não estava só. Conhecia entusiasmada a face de uma beleza desejada intimamente por muitos anos, aquele tipo de anseio que nem sabemos ter até que ele se manifesta satisfeito diante dos nossos olhos e pensamos: “pronto, encontrei o que queria.” Tinha a companhia da beleza e não estava só. No céu, a lua alta e cheia.

Agora olhava o rádio meio assombrada, ouvindo quase à força: “Heaven only knows we live in a world where (...) the [people] fragile and the sensitive are given no chance”. Um ano? Reparando no cardinal parece pouco, mas tanta coisa aconteceu desde aquela noite de lua. Algumas boas, outra ruins, outras que ela não sabe ao certo porque os sentimentos sempre confundem a precisão da memória. Emoções teimam em criar fatos ou dar-lhes cores escolhidas arbitrariamente (há que se perdoar emoções que não tiveram tempo de se acostumar à perda da beleza). E desviando os olhos do rádio, para tentar inconscientemente arrastar para longe os outros sentidos, ela hoje encontrou só o céu escuro, sem companhia, sem beleza e sem lua. Não fosse a música, até sem lembrança.

Como era mesmo que dizia Salomão? “Tudo quanto desejaram meus olhos não lhes neguei, nem privei o coração de alegria alguma... e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento...” (Eclesiastes 1: 10,11). Vento, lua, companhia: tudo a mesma natureza mutável. Há quem também cite a vida, mas não: a vida é justamente o que permanece clamando por mais. A vida fica enquanto desfilam nossas tristezas, sorrisos, conquistas e perdas, começos e também os desconhecidos começos que às vezes chamamos fim. Se é a vida ou eu quem passa, é pergunta filosófica demais para ser respondida em noite sem lua. Mas a transitoriedade é patente. E nos acena no momento seguinte da satisfação, no balanço anual dos sonhos, na percepção crescente de ausências, na coleção de descrenças, nas responsabilidades que tornam o riso adulto, na imagem que teima em refletir no espelho um ser que a nossa infância não sonhou. Eu falaria muito ainda da transitoriedade. Mas é assunto tão delicado, que melhor é deixá-lo como está em cada um, porque há gente que se esforça demais para esquecê-lo. E a vida já é inconveniente o bastante para lembrá-lo vez em quando.

Ah, a música que agora diz: “And the leaves turn green to red to brown fall to the ground and get kicked around”. A velha segunda lei da termodinâmica: tudo tende à degradação. Mas você pode encontrar outra explicação, descobrir uma lei melhor. Essas estranhas manias humanas... tantas explicações não resolvem, não preenchem. São, as próprias explicações, mutáveis e variáveis. E como folhas caindo ao sabor do vento, somos envoltos no que Milan Kundera chamaria de “a insustentável leveza do ser”. Toda a liberdade, aí incluídos os meios para satisfazer os anseios da liberdade, não proporciona senão uma pálida visão da felicidade, porque tangidos pelo vento não temos solidez para pousar em definitivo na condição de seres felizes. Ao vento, vamos perdendo as cores e deixando de ser folhas, vamos deixando de saber o que queremos. O que queremos? Sabemos apenas que mais. Livres, ao vento, apenas tocamos acidentalmente a felicidade, em momentos, pessoas ou coisas ideais que nos fogem (no referencial deles, somos nós que fugimos na corrente de ar). Qual o destino das folhas carregadas pelo vento?

Mas a música já está acabando. E agora pergunta contundente: “You wild enough to remain beautiful?”. Ela também se pergunta o quê mais, além da vida, permanece. Felizmente desviou-se da tristeza quando parou de ver apenas a evidente transitoriedade, para procurar em tudo a eternidade. Que dádiva abençoada, foi Deus colocar dentro de sua criação, imagem e semelhança, um reflexo de Sua própria Eternidade (“What are you so afraid of?
Show us what you're made of”, ela ainda ouve no rádio). As folhas não precisam voar para sentir o vento. Elas não precisam cair, mudar de cor e morrer. “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós” (João 15:4). A única forma de suportarmos o vazio permanente da transitoriedade deste mundo, é permancermos ligados ao Eterno, aquele que é, e jamais passará. NEle, e conseqüentemente na Sua vontade, encontramos o tipo de segurança que não existe na satisfação de nenhum dos nossos desejos. Em Deus nem reparamos nos nossos desejos. Somos folhas que decidiram permanecer bebendo da Sua seiva, para que nunca deixemos de ser aquilo que realmente somos; esta é a satisfação intransponível (você é rebelde o suficiente para isso?). “Be yourself and be beautiful”, a música termina. Ela também dá por concluídas suas divagações. Passa a mão nos olhos, passa aquele apertozinho no coração. A lua já vai passando mais uma fase. “E agora permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior deste é o amor.” (I Cor. 13:13)

terça-feira, 14 de outubro de 2003

Amor que olha para onde anda

Eu estava naquele estado de paixão em que você não está convencido de que aquela é a pessoa certa, mas não pode evitar sentir-se atraído por ela. E eu, que sempre disfarcei muito mal meus sentimentos, ficava inquieta, um pouco trêmula, com as mãos geladas quando ele chegava. Quanto mais me esforçava para ser discreta, mais meu olhar o procurava involuntariamente, quanto mais eu tentava manter a compostura e a sobriedade, mais eu parecia nervosa e abobalhada, mais eu falava besteiras, mais eu seguia cega e leda atrás do seu olhar.

Até que um dia ele perguntou se poderia ir me deixar em casa. “Claro!”, eu respondi tentando indiferença apesar da minha cara de sol-de-leite-ninho. Estávamos a apenas uns quinze minutos da minha casa, e ele foi andando comigo, fazendo companhia. Conversávamos sobre música, meu assunto preferido, e eu tagarelava entusiasmada sem, no entanto, tirar meus olhos dos olhos dele. Queria medir seu entusiasmo também, e a visão daqueles olhos, ah... eu já nem sabia o que falava, apenas olhava fixamente para suas pupilas magnéticas. Foi quando, no melhor da conversa, puft! Tão absorta eu estava em seu olhar que não vi o buraco na calçada em que caí: ralei o joelho, torci o pé e quase não levanto mais de tanta vergonha. Ele, tadinho, me socorreu imediatamente, e não consigo esquecer sua expressão cômica, entre desesperado para me ajudar a levantar e morrendo de vontade de dar uma gargalhada.

Lembrei desse episódio pitoresco da minha infinita lista de gafes e desastres, enquanto lia um livrinho delicioso sobre a vida de Clara de Assis. Em dado momento o autor grifa uma frase que me impressionou deveras: “Amar não é olhar um para o outro, mas, os dois, na mesma direção.” Simples, mas não é que é mesmo? Olhando um para o outro, nós centramos tal pessoa no centro de nosso mundo de tal forma a não vermos nada além dela e do nosso próprio reflexo em sua íris. Amor, no entanto, olhar por onde anda.

Não parece muito saudável uma relação que existe para si mesma, sem a consciência de um mundo inteiro ao redor. Não há como existir crescimento e amadurecimento do amor que é semeado no egoísmo e se estreita no alheamento dos dois. O amor não pode ser assim estático, necessita expandir-se, e para tanto os dois devem olhar ao lado e escolher uma direção. Olhando um para o outro, serão sempre dois. Olhando na mesma direção alcançarão a mais perfeição da unidade. Amor direcionado tem planos em comum, projetos pelos quais lutar, valores a preservar, sonhos para perseguir, esperanças e batalhas para partilhar. E por isso é forte; não se limita à contemplação de si e do outro, mas procura o que há de ambos no universo. Numa relação de amor há um e muito mais que dois; há um sem fim de paisagens para conquistar.

Compreendendo isso, fica mais fácil de sentir o amor de Deus. Quantas vezes tive me consolar com o olhar da fé... É este olhar de que fala João quando diz “Ninguém jamais viu a Deus; se nos amamos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor é em nós aperfeiçoado.” (I João 4:12). Não podemos (ainda) olhar nos olhos de Deus, mas se O amamos, olhamos na mesma direção que Ele. “...mas qualquer que guarda a Sua Palavra, nEle realmente se tem aperfeiçoado o amor de Deus. E nisto sabemos que estamos nele” (I João 2:5). Meu relacionamento com Deus nasce entre nós dois, mas vai crescer lá fora, quando minhas escolhas e atitudes demonstrarem que nosso olhar procura o mesmo lugar. E nisso está a segurança do amor: olhando os dois numa mesma direção, não há perigo de ninguém se machucar.

Nesta semana, muitos começos de semana iluminados,

Luciana D. Teixeira

segunda-feira, 29 de setembro de 2003

"Oh, pedaço de mim..."

- Bateram em mim!

Quando ele me falou isso, cedo da manhã, eu passei algum tempo sem conseguir raciocinar. Tudo que me ocorria eram as cenas de todos os filmes policiais e de artes marciais que já vi, com imagens de gangues mal-encaradas cercando um pobre cidadão e partindo pra cima dele sem dó nem piedade. Depois ainda visualizei o mesmo cidadão arrastando-se na sarjeta, todo rasgado e cheio de hematomas, cinco dentes a menos, sangue cobrindo sua face deformada, até que, vencido pela agressão, tombava desfalecido, vindo a acordar somente no hospital enquanto uma mulher aos prantos, descabelada, acompanhava sua maca até o pronto-socorro. E naquele momento a mulher descabelada era eu.

- Quê?!

Eu já tinha uma bateria de perguntas posteriores, do tipo: quantos caras foram? Onde te bateram? Quantas fraturas expostas? Mas ele resolveu me explicar melhor.

- Bateram em mim. A porta lateral tá toda amassada.

Foi só então que eu entendi. Bateram no carro dele. Graças a Deus, ele não sofreu nenhum arranhão, mas sua ligação com o carro é tanta a ponto de ter falado dele como uma extensão de si próprio. Tamanha foi sua dor emocional ao ver a porta esquerda amassada, que eu poderia jurar que ele andaria mancando até o carro sair da oficina.

O episódio me fez pensar sobre as coisas externas que agregamos a nós mesmos, a ponto de sentí-las como um membro a mais. Todo mundo já ouviu que, para muito, o bolso é a parte mais sensível do corpo humano. E há quem sinta que é seu trabalho, seu cargo na igreja, sua casa, seus livros, seus filhos, sua coleção de sapatos ou CDs. Aquilo de que não concebemos nos separar. Aquilo que nos faz suar frio só de imaginar perder. E não é que até mesmo Deus, completo em si mesmo, escolheu algo fora dEle para tomar como parte de Si? “Eu sou a videira; vós sois os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.” (João 15:5).

Qualquer dano que um dos ramos sofra é sentido por toda a videira. E o vigor do ramo é a alegria da videira. Jesus continua: “Se alguém não permanece em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará...”(v. 6). Não adianta estar ligado à videira e querer dar uva. “Pelos frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros?” (Mateus 7:16). E embora a videira de Cristo esteja sempre aberta a enxertos, os ramos são partes inteiramente dependentes e coerentes com a natureza da videira “Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes e vos será feito” (v. 7). Não se trata de um favor que Deus nos concede. Ele fará o que quisermos porque, sendo membros unidos a Ele, o nosso querer será a Sua vontade. Não haverá mais desejos separados; ramo e videira têm o mesmo interesse, que é frutificar no bem em abundância.

Que nesta nova semana saibamos escolher agregar coisas mais elevadas ao nosso ser. Se nos apegarmos a coisas materiais, finitas e perecíveis, nada estaremos acrescentando de melhor à nossa natureza. Se buscarmos permanecer unidos à Videira Verdadeira, porém, beberemos da seiva de Sua bela nobreza e eternidade.

quarta-feira, 10 de setembro de 2003

À segunda vista

Acabo de chegar de uma pequena e agradável viagem à Recife, e na volta vinha pensando sobre ela no ônibus - afinal não resta mesmo muita coisa para eu fazer pois não consigo dormir nem ler. E refletia: a primeira impressão que tive de Recife não foi das melhores. Há cerca de dez anos eu a visitei pela primeira vez para fazer um exames médicos. E lembro com nitidez de andar com meus pais por umas ruas feias e tristes, entre calçadas estreitas apinhadas de gente apressada. A única coisa que me chamou atenção então foi o metrô, que eu não conhecia, mas acabei achando meio besta.

Voltei ainda algumas vezes a Recife, mas em nenhuma dessas me permiti livrar da primeira visão que tive da cidade. Restringia-me a ficar no lugar da hospedaria e esperar a hora de ir embora, porque para mim não havia nada que ver de interessante naquele lugar. Uma vez apenas passeei rapidamente em Olinda, e julguei que a fama turística de Recife fosse devida totalmente à primeira.

Só de uns três meses para cá é que tenho começado a descobrir a verdadeira Recife. E não tenho pudores de me confessar cada vez mais apaixonada. À medida que me permitir livrar da primeira e falsa impressão que tive da cidade, fui descobrindo sua beleza pulsante. E também sua história garbosa, corajosa, rica em detalhes que por vezes se escondem em prédios e igrejas fora do roteiro turístico, em teatros e construções sobranceiras, ou na alma forte e bonita de seu povo. Um olhar apenas não basta para captar o valor de Recife, é preciso a contemplação detida de todos os sentidos para não deixar passar sua essência. E talvez uma vida inteira para descobrí-la em seus magnéticos segredos.

A "lente" sensorial que forma nossas impressões nem sempre está ajustada para um bom foco. Por isso deveríamos permitir sempre uma segunda, terceira ou quarta impressão. Sobre as pessoas, lugares, livros, comidas (por que não?), fatos passados e presentes, fotografias, sobre nossa vida e tudo que a cerca, sobre as outras vidas e a forma como as cercamos. Deixar-se estar numa primeira impressão perenemente pode nos privar de uma descoberta mais profunda e acertada sobre a natureza das coisas. Isso engessa nosso conhecimento de mundo, e não raro, de Deus também. "...Transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus." (Romanos 12:2).

Se as misericóridas de Deus renovam-se a cada manhã (Lamentações 3:22,23), nós também devemos fazer renovar nosso ser perante Ele. E uma mudança eficaz de si mesmo compreende antes uma mudança na forma de olhar o mundo, as maneiras de encarar a vida e os problemas, nossa postura como cristãos e seres humanos relacionais. A renovação pode vir de percepções simples, como entender que quase tudo que sugere dor, implica verdadeiramente em crescimento, e o que parece um fim, tende sempre a criar novas oportunidades. Saber aproveitar a dádiva da vida com fé, é a força motriz de uma tranformação necessária para ver o mundo sob excitantes perspectivas.

Ainda que nos reste um longo caminho para alcançar a visão perfeita, temos auxílio garantido para não estacionarmos em nossa caminhada. Seja qual for a impressão que te impede de descobrir a real beleza da vida, "O Senhor teu Deus está no meio de ti, poderoso para te salvar; ele se deleitará em ti com alegria; renovar-te-á no seu amor, regozijar-se-á em ti com júbilo." (Sofonias 3:17).

Um restante de semana iluminado!

Luciana Dantas Teixeira

segunda-feira, 1 de setembro de 2003

As coisas que carregamos

Esta semana li num blog que gosto muito, a confissão inusitada de uma garota que perdeu sua tartaruga quando criança. Nada de muito diferente, não fosse a tragicidade grega do desfecho. Certo dia, quando ela procurou a caixa de areia onde guardava sua tartaruguinha, encontrou no lugar dela uma pedra. A mãe, com toda a sabedoria inquestionável que as mães têm, explicou para ela que uma fada tinha transformado a tartaruga em pedra, isso para não dizer que havia largado a tartaruga por aí, porque soube que o bichinho podia transmitir doenças. A garota, conformada, guardou a pedra carinhosamente por anos. Conseguia até ver as pernas e braços da tartaruga numas marquinhas que a pedra tinha. E só com vinte e poucos anos é que ela, revoltada, jogou a pedra fora depois de entender que fora enganada. Como pôde guardar tanto tempo uma pedra no lugar de sua amada tartaruga sem se dar conta da própria ilusão?

Isso me fez lembrar outro episódio ocorrido aqui em casa com minha irmã mais velha. Quando ela e namorado comemoravam alguns meses juntos, ele trouxe de presente uma enorme caixa de papelão para empregar o velho truque de uma caixa dentro da outra. Encheu-a de caixinhas menores até que, lá no fundo, minha irmã encontrou uma boneca bem pequena. Ela adorou. Tanto que guardou, além da boneca, um grande tijolo que ele colocara na caixa para tornar a coisa toda mais verossímil. E eu sempre dava risada quando, entrando no quarto dela, via o dito tijolo colocado em lugar de honra numa estante, entre ursinhos e bonecas. Até que o tijolo sumiu por alguma razão desconhecida.

Como podem ser estranhas as coisas que carregamos! Esquisitas mesmo! Coisas que podemos trazer na intenção ilusória de substituir algo que perdemos no caminho, que ao menos lembrem, ao longe, aquilo que já não temos. Ou coisas totalmente dispensáveis que nos dispomos a levar na tentativa vã de aumentar o valor daquilo que já temos.

Aquilo que perdemos está perdido, e nada ocupará satisfatoriamente o seu vão, a menos que o que estava perdido volte a seu lugar. Deus sabia disso quando enviou Seu Filho para “buscar e salvar o que se havia perdido” (Lucas 19:10). Talvez fosse mais fácil criar outro mundo, com uma nova espécie mais obediente e menos egoísta que o homem, mas era o homem que Deus havia perdido, era o homem que Deus tinha que buscar. E veio. E continua vindo, porque sabe que perto dEle, também nós podemos encontrar aquilo que temos perdido. O próprio Jesus utilizou-se de várias parábolas para afirmar isso: “Alegrai-vos comigo, porque achei a minha ovelha que se havia perdido.” (Lucas 15:6); “Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu havia perdido.” (Lucas 15:9); “porque este meu filho estava morto, e reviveu; tinha-se perdido, e foi achado.” (Lucas 15:24). Tais versículos não demonstram apenas que cada ser é objeto do amor particular do Pai, como também nos diz que o coração humano não achará alegria verdadeira sem antes reencontrar aquilo de que sente falta. Artifícios, os mais bem elaborados não vão substituir a sensação de completude pela qual a alma anseia. As pedras colhidas no caminho não aliviarão, antes pesarão, sobre o espírito onde habita um vazio do tamanho de Deus.

E o que dizer de nossa pouca habilidade para receber as dádivas divinas? Quantas vezes nosso Deus nos presenteia com exatamente aquilo que precisamos para ser feliz, mas nós achamos pouco. Encarregamo-nos, nós mesmos, de arranjar inúteis pedras que dêem a sensação de que nossa dádiva “pesa” mais. Tão poucas vezes nos contentamos com a plenitude que há nas coisas e pessoas que Deus põe em nosso caminho, e tratamos de elaborar rápida e avidamente um plano de obter mais, e mais, e mais, até que estejamos fartos daquilo que, julgamos, satisfará nosso desejo. Pena que a satisfação não é garantia de felicidade. E o que fazemos, normalmente, é tomar o presente divino e acumular pedras sobre ele – honrando muitas vezes mais as próprias pedras que o presente, cumulando-nos de coisas por vezes inúteis, quase sempre prejudiciais. Pois a medida de Deus completa, enquanto a nossa medida não sabe sopesar felicidade duradoura.

O único peso que somos chamados a carregar é nossa própria cruz (Lucas 9:23). Não precisamos carregar conosco pedras de nenhum valor, como a culpa, a solidão, a tristeza, a soberba, a mágoa, a desesperança ou qualquer outra forma de sublimação da nossa dor. “Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte.” (Romanos 8:2). Não devemos enterrar as bênçãos de Deus sob as pedras do nosso egoísmo tão limitado e míope. Aprendamos com Cristo que nos convida a enfrentar nossos problemas e anseios com fé na cruz para a qual ele carregou todo motivo de sofrimento, para a qual Ele mesmo nos carrega ternamente enquanto diz: “...o meu jugo é suave, e o meu fardo e leve.” (Mateus 11:30).

Uma semana iluminada,

Luciana Dantas Teixeira

segunda-feira, 14 de julho de 2003

A pressa é inimiga da refeição

A pergunta aconteceu por volta das onze e quinze num contexto pouco favorável a respostas coerentes. O culto começara com vinte minutos de atraso por causa da leitura da ata de uma reunião onde se discutira a compra de novas cadeiras para a igreja, e depois de uma explicação pormenorizada dos modelos, quantidade e outros quesitos técnicos, as pessoas não conseguiam mais disfarçar o tédio. Um pai olhava com curiosidade seus filhos que desenhavam a arca de Noé, morrendo de vontade de pegar os lápis de cor deles. O calor fazia os mais inquietos se abanarem, levantando aquele incômodo barulhinho de papéis balançando. Dona Henriqueta, que já cochilava há algum tempo, abria agora a boca displicentemente, enquanto uma das crianças deixava os lápis de cor e colocava vagarosamente uma bolinha de papel dentro da boca da velhinha.

- Quantos aqui querem participar da ceia das aves que a Bíblia mencionam? – perguntou enfaticamente a pregadora.

Dois terços da igreja levantou o braço. Na pior das hipóteses era uma chance de alongar os músculos. Dona Henriqueta acordou assustada e disse, “Amém!”, cuspindo, confusa, a bolinha de papel.

- Todos vocês? - Sorriu a pregadora.

Os membros da igreja entreolharam-se confusos. Aquele sorriso denunciara que algo estava errado, e todos buscavam na memória o quê. Manhã quente de sábado, todos um pouco enfadados da leitura interminável da ata, o estômago já despedindo-se do café-da-manhã, e a atenção querendo despedir-se do culto, fez algumas pessoas interpretarem a ceia das aves, à primeira vista, como um banquete celestial cheio de frango assado para todo mundo. “Ih, mas no céu a gente vai comer frango?”, pensou consigo Dona Henriqueta.

A pregadora pediu que todos abrissem as Bíblias em Apocalipse 19: 17 e 18: “E vi um anjo em pé no sol; e clamou com grande voz, dizendo a todas as aves que voavam pelo meio do céu: Vinde, ajuntai-vos para a grande ceia de Deus, para comerdes carnes de reis, carnes de comandantes, carnes de poderosos, carnes de cavalos e dos que neles montavam, sim, carnes de todos os homens, livres e escravos, pequenos e grandes.”

Nesse ponto, a pregadora, que já notara o constrangimento na face da igreja agora toda atenta, tornou a perguntar:

- E quantos querem participar da Ceia das Bodas do Cordeiro?

Agora todos levantaram o braço, compondo um curioso quadro de leques improvisados. O Cordeiro era Jesus, claro. E se era a Ceia de Jesus, devia ser algo bom... não era?

- Acho que alguns de nós precisa decidir em que ceia quer estar, concluiu a pregadora, abrindo a Bíblia em Apocalipse 19: 7 – 9: “Regozijemo-nos, e exultemos, e demos-lhe a glória; porque são chegadas as bodas do Cordeiro, e já a sua noiva se preparou, e foi-lhe permitido vestir-se de linho fino, resplandecente e puro; pois o linho fino são as obras justas dos santos. E disse-me: Escreve: Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordeiro...”

Depois a pregadora explicou o que quase todos já havia desconfiado. A Ceia das aves era aquela destinada aos ímpios, assim julgados porque em sua vida decidiram não fazer a vontade de Deus, mas seguir apenas os próprios impulsos humanos, e experimentar alegrias tão passageiras quanto esse mundo, encontrando, com o mundo, a própria destruição. Os dois versículos bastam para compor um cenário digno de filme de terror. Embora as aves sejam o símbolo de uma destruição completa e definitiva, não é, por isso, nada animador de imaginar. Os ímpios da ceia das aves são pecadores como todos nós, mas pessoas que escolheram o erro, simplesmente porque não queriam fazer o que era certo, mesmo sabendo que isso era o que deveriam ter feito. No contexto de Apocalipse, essas pessoas são aquelas que não se arrependeram de sua maldade, e escolheram uma vez mais atentar contra tudo que é justo, bom e contra o próprio Deus. Digamos que é o tipo de jantar para o qual ninguém gostaria de ser convidado. Especialmente quando se está destinado a ser o prato principal.

A Ceia das bodas do Cordeiro é aquela destinada ao grupo exatamente oposto ao anterior: os justos. Entenda-se justos não como pessoas perfeitas, que seguem todos os mandamentos com maestria ou viviam num pedestal de santidade. Os justos que Apocalipse mostra na Ceia das Bodas do Cordeiro são pecadores também, como aqueles mencionados anteriormente. Pessoas com falhas, egoísmos, muitas vezes injustas e às vezes até maus. Mas antes de tudo, pessoas que escolheram fazer o que era certo, a vontade de Deus, e mesmo sem conseguir sempre, se esforçam por isso sinceramente. Nos versículos citados, eles estão exultantes por que o Cordeiro, Jesus Cristo, está vindo tomar sua esposa, que representa a Sua Igreja, que como o texto diz, já está preparada e ornada com atos de justiça, decorrentes do amor que sente pelo seu Marido.

A diferença entre ser convidado para uma dessas duas ceias, está na atenção que damos às pequeninas coisas que dizem respeito à nossa vida espiritual, todos os dias. A coisa é muito mais sutil do que possamos nos aperceber a princípio. Basta baixar a guarda e ficar desatento por alguns instantes, e você pode escolher estar na ceia na errada... Nem sempre o ambiente aqui será favorável para vivermos nosso cristianismo de maneira plena. Às vezes nos sentiremos cansados, entediados, incomodados pelo calor das pressões e provações, tentados a tirar um “cochilo”, caindo numa religião letárgica, mas é nesse exato instante que Deus pode estar chamando nossos nomes na lista de convidados para a Ceia das bodas do Cordeiro. Se não reconhecermos a voz do Pastor, como poderemos tomar parte com Ele? (João 10:27; Mateus 25:33-46)

Assim, antes de decidir sobre nosso futuro espiritual, não nos apressemos a responder segundo nossos impulsos. Que possamos parar, pensar, ponderar na vontade de Deus, e só então escolher o melhor lugar onde estar. E que Deus nos abençoe...

- Amém! - Se empolga a irmã Henriqueta, e conclui – Eu sabia que no céu não se come frango!

Uma semana iluminada,

Luciana Dantas Teixeira

segunda-feira, 7 de julho de 2003

Insígnias

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Outro dia alguém me perguntou porque costumo assinar "Luciana Teixeira", ao invés de "Luciana Dantas", já que é por esse último sobrenome que a maioria das pessoas me distingue das dezenas de Lucianas de que vivo cercada. A resposta é: "por pura vaidade". Certa vez fui a uma exposição de brasões, e lá estavam meus dois sobrenomes com significado e origem. Teixeira provinha de um nobre guerreiro que havia lutado na tomada da Bastilha. E Dantas... bem, Dantas vinha da Região das Antas, em Portugal. Nada contra as antas, mas isso me soou pouco vultoso.

O fato é que brasões de sobrenomes hoje ganharam um significado meramente estético, mas eles já foram o orgulho de uma família. Na Idade Média eles eram exibidos pelos cavaleiros em seus escudos para mostrar que os mesmos procediam de uma linhagem nobre, portanto, se alguém quisesse o matar teria que ser tão ou mais "importante" quanto ele. Não se concebia gastar o fio da espada com um plebeu metido a Jaspion (Pokemón par aos mais modernos); os cavaleiros nobres só se dignavam de derramar sangue aristocrático. Daí a importância de empunhar sua insígnia.

E hoje, qual é nosso brasão? Quem é nosso Inimigo? Nesses tempos onde a guerra diária ganha contornos muito mais sutis, as lutas são contra armadilhas cada vez mais capciosas e o Mal toma formas muitas vezes quase indistinguíveis, importante é discernimos de que lado nós estamos e erguer a bandeira do que professamos ser. Sun Tzu, o mais célebre dos estrategistas de guerra, escreveu em seu pequeno tratado "A Arte da Guerra": "Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas."

Para quem crê na Bíblia como Santa, Verdadeira e Inspirada Palavra de Deus, não é difícil saber quem é o Arqui-Inimigo, Aquele que anda rugindo ao redor, como um leão, procurando a quem devorar (I Pedro 5:8). Aquele que nem sempre é tão explícito, e não nos ataca com espadas, mas está pronto a nos atingir com dardos inflamados, e contra quem só a armadura feita nos moldes de Cristo pode resistir (Efésios 6:10-18).

E quem somos nós? Será que nas batalhas do cotidiano temos nos preocupado em empunhar o brasão de Filhos de Deus, mostrar que nossa linhagem procede do Senhor dos Exércitos, que o nosso sangue é do mesmo tipo daquele que foi derramado na cruz pelo Príncipe da Paz (Isaías 9:6)? Será que nosso Inimigo consegue ver que temos orgulho de pertencer a Deus? E a nossa vida é uma prova disso?

No Salmo 74, vemos uma preocupação que bem poderia ser transportada para os nossos dias: "Não vemos mais as nossas insígnias, não há mais profeta; nem há entre nós alguém que saiba até quando isto durará. (verso 9)". O salmista via, perplexo, os inimigos avançarem sobre a assembléia dos justos, derrubarem os seus estandartes e altearem em seus lugar as próprias insígnias. Profanavam o santuário dos hebreus e destruíam os lugares santos. E hoje não é diferente a preocupação dos cristãos, porque temos visto Satanás com o mesmo interesse em derrubar as verdades cristãs, profanar a santidade nos templos e nos lares, destruir os santuários com as mais sutis e perspicazes mentiras, de modo a erguer no meio do cristianismo, as bandeiras da mentira, do egoísmo, da nossa doente vontade própria, entre tantas outras que envergonham a procedência Real dos cristãos, e descaracterizam aquilo que deveria ser o acampamento dos justos.

Por isso o apelo do salmista ainda é válido para nós: "Os teus inimigos bramam no meio da tua assembléia; põem nela as suas insígnias por sinais." (Verso 4). Nas batalhas diárias por fazer o bem segundo a vontade dEle, que possamos lembrar de erguer sobre cada palavra, atitude ou pensamento, o brasão com a imagem do Cordeiro de Deus.

Uma semana iluminada,

Luciana D. Teixeira

segunda-feira, 30 de junho de 2003

Uma tela

Sempre tive paixão pela pintura, mas nunca me aventurei a ir além da mera contemplação. Até já tinha arriscado alguns rabiscos e pinceladas bem amadores e despretensiosos na minha adolescência, mas que ficaram muito bem escondidos do olhar do mundo em algum caderno esquecido. Foi só quando conversava com uma colega minha que também tem a mesma paixão que senti nova vontade de pintar. Dessa vez algo mais ambicioso que tinta guache em papel ofício: decidi pintar uma tela. Durante algum tempo resisti pensando: “Puxa, mas pintar em tela?! Tem que se ter técnica, boas noções de desenho e pintura, dedicação profunda, esmero meticuloso!”, mas Nicole, uma garotinha de dez anos, me provou que só boa vontade já é suficiente. Na verdade, depois de ver o quadrinho de Nicole concluí com meus botões que com um quarto de século de idade, pra pintar uma tela você só precisa de tinta e pincéis, oras.

Para não arriscar demais escolhi um motivo simples: tulipas. Mais precisamente um detalhe de tulipas, bem aproximado, de modo a me livrar ao máximo dos detalhes dificultosos. Seis tulipas com um fundo verde não devia ser algo que demorasse mais que uma tarde pra fazer. Com dois pincéis um tanto gastos e alguns potes de tinta acrílica comecei bem animada. No fim da tarde ainda não tinha pintado metade da tela. Dois dias depois tentava definir os contornos. Duas semanas depois testava dezenas de texturas para aplicar ao fundo verde, e já tinha uma coleção inteira de camisetas super fashion, manchadas de verde, marrom e vermelho. Um mês e oito pincéis depois, eu escolhia a assinatura. Enfim, hoje eu o terminei! Se ficou bonito? Não sei. Minha mãe e meu namorado jurariam que sim, mas não creio que eu vá fundar um novo movimento na arte plástica. Na verdade acho provável que minha tela de tulipas não saia nunca do seguro recôndito de meu quarto.

Mas além de desenvolver técnicas de pintura e conhecer o sentido mais profundo da palavra paciência, refleti bastante sobre a arte de criar. Acho que todo cristão deveria tentar pintar uma tela em sua vida para saber exatamente o significado do versículo: “No princípio criou Deus os céus e a terra.” (Gen. 1:1) (ter um filho também é outra alternativa, mas muito mais cara). Não se trata de saber como Deus se sentiu porque, em sua infinita sabedoria e perfeição, Ele certamente não teve dificuldades diante do ato de criar. Mas podemos avaliar ao menos palidamente o cuidado, dedicação e carinho que o Criador dedica à criação. E com isso reconhecermos que privilégio é sermos feitura de Suas mãos (Efésios 2:10), saber que Ele nos fez perfeitos, escolheu nossos dons e tons, e ao final assinou Seu maravilhoso nome em nosso coração dizendo: “Tu és meu”. Não se imagina a tela voltando-se contra o pintor e dizendo: “não acredito em você, sou obra de milênios de evolução e ciência e estou aqui por acaso.” Tampouco pode a tela, uma vez criada, deixar de ser amada pelo pintor, ainda que ele permita que ela leve sua beleza a outros olhos. O fato de existirmos demonstra que Deus nos ama. Tudo que somos deve ser valorizado porque Ele não erraria com a sua mais querida criação: somos nós que muitas vezes escapamos por um ponto de fuga e não deixamos que ele termine a obra que começou em nós.

“Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas.” (Romanos 1:20). Mesmo aquilo que temos, os pequenos e grandes atributos, bens, alegrias, livramentos e desafios que formam nossa vida, expressam a existência de um Criador que nos ama. Ele não só nos fez, mas nos refaz todos os dias: somos recriados à Sua semelhança cada vez que O buscamos, é Ele quem nos mantém seguros na batalha entre a sombra e a luz. E nesse deixar que Suas mãos de Criador tracem contornos e cores em todos os detalhes de nossa vida, vamos nos tornando uma admirável obra de arte.

segunda-feira, 19 de maio de 2003

O Caminho

Um dos passatempos preferidos de certo amigo meu é ver onde o caminho vai dar. Assim mesmo: ir andando, notar uma rua qualquer, lembrar que nunca entrou ali antes e então entrar, só para descobrir onde a rua acaba, por onde ela passa, que caminho é aquele ali. Certa vez enquanto eu o acompanhava num desses passatempos insólitos, ele me contava que já há muitos anos colocava a filha em sua moto e a levava para passeios cujo rumo era descobrir o rumo. Nunca lembrei de perguntá-lo se alguma vez entrou em algum lugar de que se arrependera, mas acredito que qualquer imprevisto valeria o seu prazer de desvendar o desconhecido.

Muitos hão de concordar que há uma graça muito sutil em sair por aí para lugar nenhum, só pelo prazer de descobrir onde se pode chegar. E hoje em dia, ele há de recomendar que sua filha não saia por aí fazendo o mesmo, porque, especialmente em certos lugares do nosso país tropical, caminhos desconhecidos podem levar a problemas funestos com o tráfego. E com o tráfico também.

Mas há na estranha mania do meu amigo, algo análogo a nossa própria vida. Agora mesmo eu e você estamos tomando rumos que não fazemos idéia de onde vão acabar. Mesmo tomando o cuidado de planejar, conhecer, estruturar, seguir os sinais de quem já passou por ali, nem sempre podemos ter certeza do lugar onde vamos chegar, muito menos se esse lugar é exatamente onde queremos estar no fim do caminho. Na nossa vida aqui temos poucas certezas quanto a isso. O máximo que podemos fazer é, como meu amigo, tentar abstrair algum prazer da novidade do caminho, e abstrair descobertas onde só vemos incertezas.

O que vai ser logo ali adiante? Para onde exatamente nossas escolhas estão nos levando? O que garante que não nos perderemos? Não há resposta muito precisas. Apenas uma é verdadeiramente certa: os caminhos desta vida são quase todos de mão única, e os retornos são quase tão impossíveis de se achar quanto os de São Paulo. Mesmo quando achamos que vamos voltar, o que estamos fazendo na verdade é seguir em frente. Nenhum caminho aqui é verdadeiramente seguro, e jamais permaneceremos nele o suficiente para o conhecermos totalmente. Que dirá prever o seu fim. E quando saber que chegamos ao fim?

Há apenas uma maneira de garantir que o rumo que escolhemos não vai nos decepcionar: seguindo Aquele que já andou pelos mesmos caminhos que nós. E o único que o fez sem tropeçar nem entrar por lugares errados foi Jesus Cristo. Mas alguém pode perguntar: "Senhor, nós não sabemos para onde vais; e como podemos saber o caminho?" (Jo. 14:5). Afinal, onde vai dar exatamente esse caminho para o qual Cristo aponta agora, olha para você e diz: "Siga"? Repare bem, se você tem certeza que esse é o caminho que Deus escolheu para você, simplesmente vá, sem medo. E se você não sabe ao certo que caminho tomar, olhe para Cristo uma vez mais. Na dúvida escolha sempre a direção que o levará para mais perto dEle. Porque Cristo é ao mesmo tempo o Caminho e o melhor Lugar onde podemos chegar.

Uma semana iluminada!

Luciana Dantas Teixeira

segunda-feira, 12 de maio de 2003

Morrendo de saudade

O problema era explicar a Daniela o porquê dos peixinhos terem morrido. Ela comprara um aquário novo, comidinha saborosa (devia ter gosto de minhoca, mas acho que ninguém sabia ao certo), enfeites lindos de plástico para tornar o aquário o mais agradável e bonito possível. Mas ela não queria qualquer peixe, tinha que ser os peixinhos da lagoa de Muriú. Então ela foi à lagoa, e junto com uma prima, pegou um lençol, colocou comida no meio e atraiu dezenas daqueles peixinhos brilhantes. Em segundos ela pegou cinco deles com a mão e os colocou dentro do lindo aquário que esperava do lado de fora da lagoa. Segurou-o firme entre as mãozinhas e esperou sentada até a hora de entrar no carro para ir embora. Feliz, acompanhava os movimentos daqueles peixinhos que ela agora escolhera por melhores amigos. Mas todos os cinco morreram antes que o carro chegasse na casa de Daniela. Por que?

Eu nunca soube ao certo. A água era a mesma da lagoa, e tinha oxigenação suficiente para os peixes sobreviverem alguns dias. O aquário não foi exposto ao sol, ou qualquer outra intempérie que justificasse a morte tão rápida dos peixinhos. Por isso a explicação mais convincente que encontrei para dar a Daniela foi: “Querida, seu aquário é lindo. Tenho certeza que você daria comida, cuidado e amor para eles, até eu gostaria de morar ali. Mas seu aquário não é a casa deles, e é bem provável que eles tenham morrido de saudade.”

Demorou até ela aceitar. Em sua mente, os peixinhos deveriam estar felizes com sua casa nova, aparentemente muito mais bonita e cheia de regalias que a antiga. Era apenas menor, mas eles não teriam mais que ir atrás de comida, ou se esconder de outros peixes predadores, e escapariam até à escola dos peixes para brincar o dia inteiro (Daniela sabia bem o que uma oportunidade dessa significava). Mesmo assim os peixinhos brilhantes não se adaptaram, e depois de pensar bem, Daniela concluiu que eles morreram chorando a falta da lagoa de Muriú.

Felizmente somos seres mais adaptáveis que os peixes da lagoa de Muriú. A maioria das mudanças físicas, psicológicas e materiais não são apenas possíveis, mas necessárias em nossa vida a fim de crescermos. Isso, no entanto, não as torna sempre fáceis, pelo menos para mim. Como os peixinhos de Daniela, eu também já mudei de casa, não só uma mas duas vezes. Para muitas pessoas essa mudança pode ser algo festivo, empolgante, estimulante. Para mim, que me apego profundamente à minha realidade, mudar é sempre um processo desgastante. Na primeira vez que mudei de casa, passava horas inconformada, olhando para tudo com tristeza e saudade, e só depois de muitos meses consegui me adaptar. Há porém uma saudade que teima em permanecer inexorável e reclama cada parte de minha alma com uma força irresistível: a saudade do lar celestial.

E faz só pouco tempo que reconheci em mim essa saudade, enquanto pensava na fidelidade dos peixinhos de Muriú à sua lagoa. Porque costumamos pensar na Nova Terra de que João fala em Apocalipse, como um lugar quase mágico, surreal, o que soa, por vezes, até fantasioso. Mas Jesus Cristo falou dele como um lugar bem real. E embora nos dirijamos a esse lugar, muitas vezes, como nosso “Novo Lar”, na verdade esse foi o primeiro Lar na humanidade, o lugar de onde saímos e para onde – mesmo que sem consciência disso – ansiamos voltar. É por ele que nossas almas clamam. Todo esse vazio que acompanha a existência humana, é causado por uma íntima inconformidade com nossa condição neste mundo.

Há quem passe a vida inteira enfeitando o “aquário” de sua vida, tentando torná-lo bonito, confortável, prazeroso, e quanto mais investem no aquário, mais sente que está faltando alguma coisa. Esquecem que Deus está preparando um lugar cuja beleza nenhuma pena humana seria capaz de descrever. Alguns acham que a satisfação virá de tornar o aquário um lugar mais justo, e tentam consertar tudo aquilo no que, segundo julgam, o criador do aquário falhou. E vão sempre encontrar novas falhas, descobrir que não têm poder para consertá-las todas. Esquecem que não faz sentido Deus consertar um aquário velho e corrompido, se Ele já providenciou um lugar infinitamente melhor para abrigar Sua criação. Outros simplesmente decidem “desencanar” e aproveitar a vida no aquário como se tudo que houvesse ali já fosse o suficiente: isso não significa que se adaptaram, mas que aprenderam a mentir bem para si mesmos. Esquecem que nenhuma mentira pode abafar a sede do espírito humano.

Uma nova semana se inicia, e não faço idéia das mudanças pelas quais teremos de passar. Sei que Deus nos concedeu sabedoria e inteligência para nos adaptarmos às condições mais difíceis, aos lugares mais inóspitos, às situações mais desgastantes. Podemos ultrapassar qualquer desafio com Sua força e nosso empenho, e vencer até mesmo a saudade lacerante de lugares e pessoas que já fazem parte de nós. O único fato com que não temos como vencer é que nossos espíritos não se saciarão da vontade de voltar para seu verdadeiro lugar. E para que eles não morram de saudade, o ideal é respirarmos já a atmosfera do Lar celestial. Considere que nosso tempo aqui é curto, e investí-lo só no aquário é uma atitude pequena. Permaneça fiel à sua origem e viva como alguém que sabe que sua verdadeira casa é onde Jesus está (João 17:24).

Uma semana iluminada,

Luciana Dantas Teixeira

segunda-feira, 28 de abril de 2003

Onde pôr o olhar

Quando eu tinha por volta de sete anos se instalou na minha cidade uma moda curiosa: a dos pôsteres fotográficos. Estúdios fotográficos distribuíam cupons que davam direito a um pôster grátis, depois tiravam uma dúzia de fotos e acabavam convencendo os pais corujas a comprarem todos os pôsteres, mais um monte de fotos três por quatro. Toda mãe que se prezasse tinha que ter quadrinhos com moldura de cerejeira e pôsteres dos filhos com chapeis, sombrinhas e todo um aparato de gosto duvidoso enfeitando-os em poses clássicas “que cute-cute”.

Eu fui mais uma que não escapei. Mesmo tendo perdido um dente incisivo, minha mãe me obrigou a colocar meu conjuntinho amarelo, pentear a franja pra frente e ir ao estúdio tirar as benditas fotos. Eu estava muito chateada, primeiro porque achava tudo aquilo uma besteira (filhos às vezes são bem insensíveis quanto aos caprichos maternais), e segundo porque não queria meu quarto enfeitado com um quadro me mostrando banguela para toda a minha família. Mas você sabe como é mãe: acha linda até a gengiva do filho. E a fotógrafa, propositadamente, tirou a foto de um ângulo que a falta do meu incisivo ficava bem evidente, num sorriso desconcertante do tipo “eu mato essa fotógrafa!”. A vergonha da banguelinha, junto com a chateação por estar me expondo àquele ritual ao meu ver ridículo, me deu uma expressão bem peculiar na foto. E foi justamente essa foto que eles ampliaram ao máximo e colocaram numa linda moldura, que foi parar no meu quarto.

Durante muito tempo esse quadro foi o tormento de minha existência. Não bastasse o contexto da fotografia, comecei a sentir medo da minha própria foto. Parecia que os olhos da fotografia me acompanhavam aonde quer que eu fosse. De qualquer ângulo aquele olhar meio maquiavélico me seguia, com um sorriso que parecia cada vez mais escarnecedor. E quanto mais eu olhava para a foto, mais assustadora ela ficava. À noite passei a dormir os pés virados para a cabeceira da cama, só para não ter que contemplar a expressão medonha da minha própria fotografia, me vigiando e ameaçando algo indescritível com o olhar. Jamais ficava sozinha no meu quarto, e quando passava pelo quadro podia jurar que a foto ia pular em cima de mim. Essa fixação chegou ao ponto em que tive de pedir para minha mãe retirar o quadro do meu quarto.

Outro dia reencontrei o tal quadro e curiosamente não consegui encontrar nenhum resquício daquela expressão que me parecia tão assustadora. O problema não era o olhar da fotografia, era o meu olhar. De tanto olhar para o quadro, as impressões que eu tinha cresceram e cresceram a ponto de ficarem irreais e distorcerem completamente a realidade. Você já se sentiu assim com relação a alguma coisa em sua vida?

Faça uma experiência. Vá ao dicionário e procure uma palavra que você desconheça. Depois perceba como, de uma hora pra outra, parece que todo mundo decidiu usar a palavra nova que você acabou de descobrir. Na verdade todo mundo já usava essa palavra antes, a questão é que só agora você presta atenção nela, por isso parece que ela está em todo lugar.

Esse princípio se aplica a várias faces da vida. Muitas vezes nos detemos a olhar tão fixamente para algum problema, que o que a princípio nos parecia apenas incômodo, vai crescendo, crescendo, tomando proporções gigantescas e ameaçando de forma terrível a nossa paz. Tudo que acontece ao nosso redor parece ter a ver ou dizer respeito a essa situação. Da mesma forma, quando percebemos algo de errado conosco, um pecado em particular, um defeito de caráter, ficar olhando detidamente para ele só vai nos fazer desesperar. Nem tudo aquilo que aos nossos olhos parece grande é, na realidade, tão grande assim. Aquilo para que olhamos é que se torna grande diante dos nossos olhos. As coisas têm a importância que lhes dedicamos: se passamos muito tempo dando atenção a algo, é lógico que esse algo irá ganhar uma importância cada vez maior, chegando a ter seu real valor distorcido ou superestimado.

Uma nova semana se inicia, e temos diante de nós muitos desafios. Se ficarmos olhando para nossos problemas, nossa incapacidade, nossas limitações, nossa situação desfavorável, a tendência será apenas tudo isso ficar grande e assustador diante dos nossos olhos. Mas podemos desviar os olhos dos problemas para a solução. E qualquer que seja o desafio, o melhor lugar para manter os olhos é em Jesus. Não há riscos em contemplá-lO, e Sua grandeza amorosa não cabe no limite de nosso olhar. Se em toda as situações da nossa vida olharmos “firmemente para o Autor e Consumado da fé, Jesus” (Hebreus 12:2), essa Presença animadora crescerá diante de nós e trará equilíbrio, acerto e paz em todas as nossas decisões. Se há algo que deve se tornar grande e importante aos nossos olhos, é a certeza que temos Cristo por nós e em nós.

Uma semana iluminada,

Luciana Dantas Teixeira

Ps.: este texto é carinhosamente dedicado à Aninha (http://abussola.weblogger.terra.com.br/ ), responsável pelo insight que gerou essa meditação.

quarta-feira, 23 de abril de 2003

A cura

"Queres ser curado?" (João 5: 1 - 9)

A pergunta chega a soar absurda tamanha a obviedade da resposta. Há trinta e oito anos aquele homem paralítico chegara ao tanque de Betesda. Há trinta e oito anos ele estudava a posição das nuvens e dos astros tentando encontrar um momento mais propício para se atirar no tanque. Há trinta e oito anos ele sentia o coração agitado quando o vento ficava mais forte, e gritava por alguém que o levasse até a água. Há trinta e oito anos ele se arrastava com sofreguidão até a beira do tanque, só para ver os outros chegarem primeiro e tirarem a oportunidade dele alcançar a cura.

Até que um dia, ele deita no seu leito pobre e fecha os olhos. Olhando-o assim, de passagem, muitos creriam que ele se cansara, que desistira afinal. Outros, sem saber da sua história, achariam que ele apenas dormia, e no sonho andava com vigor pelas ruas da Galiléia. Alguns poucos que chegassem mais perto poderiam tentar desvendar a expressão no rosto do homem que durante trinta e oito anos utilizara todos os seus esforços para alcançar a cura, gastara toda a sua esperança olhando para as águas calmas do tanque de Betesda. Mas apenas um pôde vê-lo na inteireza de seus desejos, fracassos, sonhos e frustrações. Jesus dirigiu-se a ele e perguntou:

"Queres ser curado?"

O que você pensaria no lugar do paralítico? A frase poderia soar como um gracejo se não viesse de um Homem cujo olhar penetrava-lhe o espírito. E diante desse olhar, não havia nada que se pudesse esconder.

"Senhor, não tenho ninguém que me ponha no tanque quando a água é agitada: pois, enquanto eu vou, desce outro antes de mim". As coisas nunca saíam exatamente como ele planejava.

Ele, como eu e você, também foi ensinado desde muito cedo a esconder suas fraquezas. A tentar resolver tudo sozinho para demonstrar auto-suficiência e independência. A parecer invulnerável diante das dificuldades da vida, e forte para poder ser respeitado. Também o ensinaram que só se conquista as coisas com muito esforço e melhor ainda se for sem a ajuda de ninguém. Também o disseram que ele só seria feliz e realizado se aprendesse a fazer tudo por si próprio, escolher com a sua própria vontade, fazer com as próprias mãos, andar com os próprios pés. Mas então ele já não podia andar. E nenhum dos que disseram para ele conseguir tudo com a própria força estava ali para ajudá-lo a chegar na sua última esperança: as águas de Betesda. Reconhecer a necessidade de cura agora, era também expor na totalidade sua fraqueza e fracasso.

Todos nós temos um tanque de Betesda particular, onde almejamos chegar para encontrar a paz, a felicidade, a sensação de completude ao invés do vazio perseguidor de uma existência maculada pela imperfeição e inconstância. Todos queremos chegar lá, onde nos acena a possibilidade de sermos aquele ser ideal que estamos longe de ser. E em busca disso nos arrastamos por anos, colocando toda a nossa esperança em pessoas, lugares, ritos ou coisas que além da breve sensação de refrigério, nos dê também a cura permanente para essa ânsia de transcender.

O mesmo olhar ainda nos procura: "queres ser curado?"

A pergunta já não soa tão absurda quando dirigida a nós. Soa perturbadora. Mas nós não precisamos passar tanto tempo nos arrastando em volta de uma ilusão para respondermos a esse olhar. Nem demorar anos e anos para reconhecer nossa impotência, fragilidade e necessidade de ajuda. Não seremos fracos quando decidirmos depender dEle, e confessarmos que apesar de nossa obstinação, nossa vontade não basta, nossos esforços precisam do toque divino. Não perderemos nada em deixar que Ele faça ao Seu modo, e transforme nossa história de repetidas frustrações num encontro definitivo com a cura. Precisamos apenas querer. Talvez reparar na pele áspera e calejada de pernas que, sob nosso comando, nada fazem além de se arrastar de um lugar par ao outro, ou encarar o leito feio onde costumamos depor nosso cansaço. Talvez só tirar os olhos de Betesda. E encontrar Aquele cuja voz dirá: "Levanta-te, toma o teu leito e anda."

Uma semana iluminada.

Luciana Dantas Teixeira

Ps.: texto carinhosamente dedicado a Moab Mariano, com quem ouvi um sermão bastante singular sobre esse mesmo trecho bíblico.

segunda-feira, 7 de abril de 2003

Pedi e dar-se-vos-á

- Dá-me mais fé!

Certa vez uma amiga me procurou angustiada, e expôs aquilo que julgava ser um grave problema: “eu acho que estou grávida!”, ela disse. Embora casada há dois anos, ela não sentia que tinha estrutura material para receber um filho naquele momento, e quando começaram os sintomas da gravidez, ela se desesperou em pensar nas conseqüências para sua vida profissional e financeira. Conversamos um pouco antes dela criar coragem para ir ao médico, e nessa conversa concluímos que ela precisava ter fé que Deus proveria o necessário para que sua família não passasse necessidades. Que se Ele havia permitido essa gravidez, é porque aquele filho seria uma grande bênção na hora certa. Foi então que decidimos orar, e ela fez um pedido que muitos de nós costumamos fazer nos momentos difíceis: “Senhor, sei que queres me ensinar a depender de Ti inteiramente, mas sou tão fraca! Por isso te peço: dá-me mais fé!”. No outro dia ela me ligou com a notícia que, embora inesperada, era uma resposta clara ao seu pedido: ela não estava grávida de um bebê, mas de dois!
Muitas vezes achamos que bastará pedir mais fé a Deus e um anjo descerá do Céu com uma varinha de condão, tocará nosso peito e seremos transformados numa versão moderna de Abraão, o pai da fé. Mas Deus costuma fazer nossa fé aumentar por um meio mais eficaz em longo prazo, e esse meio é justamente a provação. Quanto maior a dificuldade que atravessamos pela fé, tanto maior esta ficará após a batalha, porque o poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza (II Cor. 12:9).
Então dê uma nova olhada sobre seus problemas por esse ângulo: pode ser que Deus esteja apenas respondendo sua súplica por fé, e Ele estará ao seu lado até que o seu pedido se realize.

- Dá-me mais tempo!

Havia um ancião muito dedicado à Igreja, cujo maior objetivo de vida era servir a Deus com toda a sua alma. Por isso ele separava mais e mais tempo para os afazeres na igreja, dando tudo de si. Mas chegou um tempo em que ficou difícil administrar todas as suas tarefas e ainda a vida familiar, profissional, social... Muitas de suas noites eram passadas em claro elaborando projetos para aproveitar melhor o tempo, e mesmo quando parava para comer sua oração era pra lá de objetiva: “Senhor, abençoa a mão que fez e a boca que vai comer, amém!”.
Um dia, sem saber mais de onde tirar tempo para dar conta de todos os cargos e afazeres, ele decidiu procurar o pastor: “Pastor, como eu faço para o dia render mais? Parece que vinte e quatro horas apenas não bastam!”, ao que o pastor respondeu: “Filho, apenas ore e peça isso a Deus”. “Mas eu já oro”, respondeu o ancião, “todos os dias dedico meia hora à oração.”. E o pastor lhe disse: “Então ore durante uma hora!”. “Uma hora!!”, reclamou o ancião, “se eu gastar uma hora orando não vou conseguir terminar todas as minhas tarefas!”. O pastor concluiu: “Então ore duas horas!”.
O que aquele ancião e muitos de nós também precisamos aprender é que o tempo dedicado à oração não é gasto, mas investido. Vivemos num século que mede nossa produtividade pela quantidade de coisas que fazemos, mas um cristão bem-sucedido é aquele que mede sua produtividade pela quantidade de coisas que Deus faz por ele. Na oração abrimos um canal para permitir que Deus realize em nós o Seu querer e efetuar. E se fazemos Sua vontade, todas as outras coisas ficarão em seu devido lugar. Há tempo para tudo (Ecl. 3), porém quanto mais tempo houver para Deus, mais proveitoso tudo será.

- Dá-me sabedoria!

Conheci um rapaz bastante religioso, desde criança dedicado a aprender a doutrina bíblica e freqüentador das rodas intelectuais de várias denominações. Com vinte e cinco anos, já havia lido a Bíblia dez vezes, sabia respostas para os mais intricados problemas teológicos e era consultor em se tratando de profecia. Ele me contou que certa vez um professor na sua faculdade o desafiou dizendo: “quero que você me responda apenas uma pergunta e eu saberei se você é mesmo cristão.” O rapaz, acostumado a argumentar com ateus, deístas, protestantes e católicos, aceitou o desafio e disse sorrindo: “pode perguntar!”. O professor aproximou-se, olhou bem em seus olhos e inquiriu: “qual o nome do filho da zeladora de sua igreja?”. O rapaz calou-se.
Quando Deus concedeu sabedoria a Salomão, não o fez somente um homem inteligente, um político hábil ou um literato excepcional. Salomão foi dotado com a sabedoria divina, que nada mais é que o conhecimento de Deus. O mero conhecimento humano, que se adquire em livros e rodas intelectuais, não faz o homem grande diante de Deus. Mas aquele conhecimento que é sorvido convivendo diária e intimamente com o Senhor, é a sabedoria que deveríamos ter por alvo no nosso viver cristão. A sabedoria verdadeira não é aprendida, é revelada pelo Espírito Santo (I Cor. 2:10). Ela é pura, pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem fingimento. Não é facciosa, mas promove a paz (Tiago 3:13-18). Ela cresce até à Eternidade, enquanto a sabedoria humana, que é o simples conhecimento do bem e do mal, tem por fruto, desde sempre, o perecimento.
O conhecimento deste mundo traz tristeza e enfado (Ecl.1:18), afoga o homem em sua própria empáfia. Mas o conhecimento de Deus torna o homem humilde, alegre, e o guia pela forma mais eficaz de conhecer a Deus: o amor. Pois todo aquele que ama, conhece a Deus. (I Jo.4:7).

- Dá-me porção dobrada do Teu Espírito!

Quando Eliseu fez esse pedido a Elias, este lhe respondeu: “Dura coisa pediste!” (II Reis 2:10). Receber o Espírito de Deus exige mais que boa vontade da parte dEle; exige muito de nós em nos deixarmos usar segundo Sua vontade.
Alguém cheio do Espírito Santo produz os frutos mencionados em Gálatas 5:22-23, os quais, examinados de perto, se traduzem em várias faces de um só verbo: amar. Vejamos: a alegria é o amor sorrindo. Paz é o amor serenando. Longanimidade é o amor sofrendo. Benignidade é o amor compassivo. Bondade é o amor agindo. Fé é o amor confiando. Mansidão é o amor suportando e temperança é o amor controlando. Se amamos, o Espírito de Deus habita em nós (I Jo 4:12-13).
Mas como tem sido dado o nosso amor? O ser humano, de uma forma geral, possui uma enorme vontade de amar; a quem o ama, o aceita, nunca lhe fez mal algum e concorda com todos os seus pensamentos. Mas Jesus foi claro em dizer: “Se amardes os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem os publicanos o mesmo?” (Mateus 5:46). Portanto se queremos porção dobrada do Espírito Santo, devemos também nos esforçar para amar em dobro, ir além do que é conveniente, ir onde o amor transcenda a dor e o egoísmo, como Cristo fez. Se tentarmos amar como pede o Pai (Oh, Senhor, dura coisa nos pediste!), e não como permite o nosso pobre coração humano, receberemos o Espírito Santo em Sua plenitude e poder.

Ps.: Dedido este texto à Igreja Central de Recife e a Tibério, que me pediu um textinho objetivo, me obrigando, portanto, a arranjar uma nova forma de ser prolixa: fazer quatros textinhos objetivos:-))

segunda-feira, 31 de março de 2003

Vai um pãozinho?

Não tenho olho azul, nem cabelo loiro, nem acompanhei a última novela das oito*, mas acredito que há algum italiano pendurado na minha árvore enealógica. Nada mais justificaria minha mania de cantar árias de ópera no banheiro, a vontade tresloucada de conhecer a Itália e o gosto incontrolável por massas. Ah, as massas! Tão condenadas e tão gostosas! Impossível ara mim sobreviver um dia sem comer alguma massa. Nem que seja um ãozinho no café-da-manhã.

Mas de vez em quando a coisa aperta e se a gente aqui bobear fica sem pão. Nenhuma tragédia financeira: é que quando minha mãe viaja, suas filhinhas perdem completamente o controle sobre coisas menores como comer e lavar e louça. Numa dessas ausências sentidas, me deparei várias vezes com a necessidade de usar a criatividade para amainar os apelos do estômago: pão com queijo, pão com leite condensado, pão com feijão, pão com rapadura... um menu extenso! Mas um dia ninguém comprou o pão. E tudo que encontrei foi um pacote muito suspeito com dois blocos de concreto disfarçados de pães. Eu, na minha ânsia por massas – mesmo num caso desse, em que elas deveriam estar num laboratório de engenharia civil – acabei fazendo torradinhas amanteigadas, com um gostinho... hmmmm.... horrível! Não reparei que os pães estavam com bolor. Você já comeu pão mofado? Não aconselho. O gosto mais próximo que poderia descrever essa experiência é sabor de sabão em pó com terra de xaxim. Digo, imagino que seja isso...

Mas meus amigos, curiosamente muitas pessoas hoje não só comem pão com bolor como o oferecem a outras pessoas, como se esse fosse o único alimento disponível. E não é culpa de outras mães viajantes: falo aqui do pão espiritual. E o que é esse pão? “Porque o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá a vida ao mundo” (Jo 6:33). Segundo a Bíblia, Cristo é o alimento que veio do Céu para nos dar vida em abundância. Deus, sabendo que nossas necessidades espirituais precisam ser supridas diariamente, concedeu o próprio Cristo com sua presença animadora, restauradora e fortalecedora para todo aquele que abre seu coração ao Pão que desce do céu.

Isso não nos faz lembrar o antigo Israel também? Quando atravessavam o deserto, um lugar tão inóspito para a vida quanto este mundo o é para nossa fé, eles recebiam diretamente do céu o seu alimento, o maná. Com eles faziam pão e recebiam a nutrição necessária para continuar a caminhada. A única coisa que eles tinham que fazer era pegar suas tigelinhas todos os dias, exceto no sábado, ir até fora da tenda e pegar o maná que caía do céu. Mas algum espertinho pensou: “Ai que preguiça!... vou pegar maná para hoje e amanhã, então poderei dormir um bocadinho mais amanhã”. E o que aconteceu? O maná que era guardado de um dia para o outro, irremediavelmente apodrecia, mofava e criava vermes. Um negócio horroroso, que não descia nem com manteiga.

Eu penso que Deus tem uma mensagem bem clara aqui: “Ei, seus dorminhocos, não se acomodem. Todos os dias vocês sentem fome, então todos os dias vocês têm que ir buscar comida. Ela está à disposição para quem quer pegá-la, mas todos os dias vocês devem lembrar que a dá para vocês.”

Consegue associar? “Disse-lhes, pois, Jesus: Na verdade, na verdade vos digo: Moisés não vos deu o pão do céu; mas meu Pai vos dá o verdadeiro pão do céu.” (Jo 6:32). Jesus, o Pão da Vida está disponível para alimentar os nossos espíritos, nossa fé, nossa religião, com a vantagem adicional de que, ao contrário do que acontecia em Israel, temos o sábado inteirinho para nos empaturrar desse alimento divino. Mas algumas pessoas tomam esse pão, enchem os bolsos e vão embora, como se isso desse para sustentar todo o resto da caminhada. A mensagem é: você precisa voltar para pegar mais pão todos os dias. Se está sentindo-se fraco espiritualmente, pergunte-se: com que regularidade você ergue a tigela do seu coração aos céus no contato com a Bíblia e a oração? “Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede.” (Jo 6:35) Guardar o pão é uma péssima idéia: ele vai mofar e sua religião vai ficar com gosto de sabão em pó com terra de xaxim. Se quiser passar o resto da vida comendo seu pão mofado, é uma escolha sua, embora o pão diário dado na comunhão com Cristo seja infinitamente mais apetitoso. Mas, por favor, não vá pegar esse pão mofado e duro e dar às pessoas dizendo que isso é o que Deus tem a oferecer.

Pessoas que vivem uma religião ritual e aparente, que estão mais preocupadas em mostrar aos outros seus cargos, títulos e listas de regras para ser considerado um bom cristão, estão comendo e oferecendo pão com bolor. Pessoas que vivem a real felicidade de andar com Cristo, voltam todos os dias para se alimentar , e não apontam para o pão que receberam dizendo: "vejam que pão lindo e maravilhoso o meu!”. Cristãos que conhecem a paz de estar sempre satisfeitos com sua fé e religião, são aqueles que não se acomodaram em guardam o que receberam ontem, mas estão sempre buscando mais. E, depois de alimentados, saem para convidar outras pessoas famintas para a ceia.

Uma semana iluminada e bon apetit!

Luciana Dantas Teixeira

* Na época era uma novela sobre italianos imigrantes.

segunda-feira, 24 de março de 2003

Viva la revolución!

Aos sete anos eu sabia exatamente como seria minha vida no futuro: primeiro eu seria professora (para conseguir as coisas mais simples como um apartamento e um carro), depois construiria uma grande escola que também serviria como base de uma entidade social filantrópica (a idéia era essa, mas sem o nome complicado). Tal iniciativa geraria outros núcleos de ajuda humanitária dirigidos à educação e integração social dos mais pobres e enfim, eu conseguiria salvar o Brasil da fome e da miséria. Aí eu já estaria bem velha, com uns vinte e três anos, e poderia dar uma pausa para casar, ter um filho e adotar outro, antes de partir para nova empreitada salvadorística em nível mundial.

Recordei estes meus planos durante esta semana, depois de conhecer uma garota de treze anos que também é voluntária numa ONG da qual participo (www.natalvoluntarios.org.br). Enquanto ouvia ela falar com ardor dos planos que tem para implantar definitivamente a bondade e a solidariedade no mundo, lembrava de mim mesma, com a idade dela, fazendo redações de protesto contra a política capitalista e discursos inflamados por melhores condições de vida para os trabalhadores, durante apresentações de trabalhos escolares. Tudo me parecia tão fácil e óbvio! Alguém só precisava dizer como as coisas deveriam ser feitas! Então eu romantizava os movimentos estudantis da época da ditadura militar e acreditava que a solução viria quando os jovens fizessem uma grande revolução e tomassem o poder.

Mas eu fui crescendo e vi que a maioria dos jovens tinham sonhos mais imediatos e superficiais. Foram ensinados a lutar para conseguir apenas a primeira parte do meu sonho aos sete anos: um emprego, um teto e um carrinho, se der. Percebi eu mesma que, só isso, já era bastante difícil. E quando entrei na faculdade veio o confronto definitivo com minhas utopias por um mundo melhor. Certo ditado americano diz que nós nunca deveríamos ver como são feitas as salsichas e as leis. E eu, que acreditava no poder da lei do amor para mudar o mundo, descobri que o que prevalece é a lei humana, a qual sempre tende a favorecer os mais forte e excluir os mais fracos. Que o Direito, ao invés de servir à Justiça como pregam bem os teóricos, acabou por se transformar em justificativa no discurso de uma classe que mantém a injustiça e a opressão no poder. O que mais me decepcionou é que grande parte dos que estavam comigo queriam apenas aprender as regras do jogo para se adaptarem bem e lucrarem com isso. E me disseram que isso era o normal: sobreviver e crescer profissionalmente, sem maiores comprometimentos com outros seres humanos. Antes, todos pareciam festejar o privilégio de ser elite intelectual, lamentando os demais intimamente (ou publicamente, dependendo da finalidade do discurso). Para escurecer o restinho de esperanças, percebi que a mentira se reveza no poder. E Bush foi eleito.

Quando chegamos nesse ponto nos sentimos maduros: não podemos mudar nada. Cuidar da nossa própria sobrevivência já é desgastante demais, e resta apenas nos fecharmos sobre nosso próprio mundinho, esquecer que ainda há coisas erradas e pessoas precisando de ajuda: quer nos lembremos, quer não. Somente quando acontecem grandes comoções, como desastres ou guerras, é que a humanidade se dá conta da fragilidade de sua condição. Acompanhamos atentos o desenrolar de estratégias militares onde dezenas de pessoas inocentes perdem a vida, mas quotidianamente ignoramos centenas , que morrem vítima do nosso descaso, bem ao nosso lado. E não sabemos nada da criança que acabou de morrer desnutrida, do adolescente que por falta de educação entrou no crime: o subúrbio não tem cobertura com flashes ao vivo na programação da Globo. A guerra nos faz pensar que há outros além de nós mesmos, mas é só quando a dor deles também nos ameaça que ficamos bem atentos com medo de sermos atingidos.

Hoje eu já não sonho com grandes revoluções para mudar o mundo. Sei um pouco do quanto é difícil resolver tudo política e juridicamente (muito mais que eu sabem os poucos homens honrados que estão lutando por esses caminhos). Não aposto na boa vontade da maioria para oferecer solução às necessidades alheias. Mas vou contar um segredo, pois afinal escrevo para amigos: eu ainda sonho em ver as pessoas vivendo melhor. Tenho convicção que cristianismo é muito mais que orar pelas vítimas da guerra e desejar um mundo melhor só na eternidade.

Embora biblicamente o que se profetize para nossos dias não seja nada animador, ainda devemos fazer nossa parte pelo nosso mundo aqui, pelas pessoas que deveríamos chamar de irmãos, mas que muitas vezes passam necessidade financeira e emocional ao nosso lado na igreja. O fato do mundo hoje estar se corrompendo mais rapidamente, não deve significar que nos resta ficar parados aguardando que tudo isso termine bem rápido, mas significa que nossa tarefa é cada dia maior, e a responsabilidade de tudo aquilo que podemos partilhar com nosso irmão é mais urgente.

A saída, entanto, não está nos grandes empreendimentos, nas doações milionárias ou nas entidades organizadas de ajuda ao próximo. Adventista: a missão de ajudar não está na ADRA ou no Departamento do Dorcas. Todo esforço bem sucedido em ajudar pessoas tem por base algo muito mais simples: uma pessoa amando outra pessoa e, por isso, conseguindo mudar sua vida para melhor. Foi assim que pessoas como a Madre Tereza ou o Betinho e até Jesus conseguiram grandes coisas. Amar no sentido bíblico, um amor com braços e pernas, com ação e não apenas com palavra (I Jo 3:18). Portanto antes de protestarmos contra a política mundial ou brasileira, antes de tecermos nosso discursos contra o capitalismo, a corrupção da lei e dos que a manejam, e gastarmos nossas forças tentando empreender vultosas mobilizações missões grandiosas, pensemos: somos capazes de amar? Porque se há algo que ajudar pessoas nos ensina, é que amar é nossa única e maior missão neste mundo. Se nosso empreendimento em favor das pessoas não vier de um coração que sabe amar em particular, cairemos fatidicamente no poema de Bertold Brecht: “Ai, nós que queríamos amainar o terreno para a amabilidade: não podíamos nós mesmos ser amáveis.” O que sustentará nossas ações?

Eu não perdi a fé num mundo melhor porque depois de conhecer a maldade e a pobreza espiritual humana, conheci um Deus que, dentre todos os caminhos que o homem forjou para fazer o bem, se mostrou Ele mesmo como o próprio Caminho. Jesus já fez a revolução necessária para mudar o mundo: ele transformou a vida de todos a quem se dirigia pessoalmente, fez isso comigo e continuará fazendo a outros também. Dele vem o amor, dEle vem a Salvação para bilhões de pessoas. A mim cabe começar amando ao menos uma pessoa de forma pura e verdadeira. Isso não será pouco, apesar de ainda restarem outras tantas precisando ser amadas.

Que a descoberta da injustiça não nos encha de revolta e ódio a ponto de desfigurar a essência do que pregamos. Que o choque com a indiferença pelo mais fraco não nos endureça a ponto de nos tornamos apenas mais uma pedra entre tantas. Que a maldade não nos faça desistir de lutar para dar ao nosso semelhante um pouco de alívio e esperança neste mundo, porque se não conhecerem o amor aqui, não poderão desejar um mundo de amor depois. Que nesta semana encaremos com comprometimento a nossa parte, olhando cada ser humano que precisa de nós como único, e merecedor de nossa mais profunda dedicação. Um a um, acolhamos cada qual, a começar pelos que estão ao lado, com nossa mais completa capacidade de amar.

Uma semana iluminada!

Luciana Dantas Teixeira

Ps.: dedico este texto a Débora, coordenadora do Núcleo de Crianças de Campinas, da ADRA.