quarta-feira, 23 de abril de 2003

A cura

"Queres ser curado?" (João 5: 1 - 9)

A pergunta chega a soar absurda tamanha a obviedade da resposta. Há trinta e oito anos aquele homem paralítico chegara ao tanque de Betesda. Há trinta e oito anos ele estudava a posição das nuvens e dos astros tentando encontrar um momento mais propício para se atirar no tanque. Há trinta e oito anos ele sentia o coração agitado quando o vento ficava mais forte, e gritava por alguém que o levasse até a água. Há trinta e oito anos ele se arrastava com sofreguidão até a beira do tanque, só para ver os outros chegarem primeiro e tirarem a oportunidade dele alcançar a cura.

Até que um dia, ele deita no seu leito pobre e fecha os olhos. Olhando-o assim, de passagem, muitos creriam que ele se cansara, que desistira afinal. Outros, sem saber da sua história, achariam que ele apenas dormia, e no sonho andava com vigor pelas ruas da Galiléia. Alguns poucos que chegassem mais perto poderiam tentar desvendar a expressão no rosto do homem que durante trinta e oito anos utilizara todos os seus esforços para alcançar a cura, gastara toda a sua esperança olhando para as águas calmas do tanque de Betesda. Mas apenas um pôde vê-lo na inteireza de seus desejos, fracassos, sonhos e frustrações. Jesus dirigiu-se a ele e perguntou:

"Queres ser curado?"

O que você pensaria no lugar do paralítico? A frase poderia soar como um gracejo se não viesse de um Homem cujo olhar penetrava-lhe o espírito. E diante desse olhar, não havia nada que se pudesse esconder.

"Senhor, não tenho ninguém que me ponha no tanque quando a água é agitada: pois, enquanto eu vou, desce outro antes de mim". As coisas nunca saíam exatamente como ele planejava.

Ele, como eu e você, também foi ensinado desde muito cedo a esconder suas fraquezas. A tentar resolver tudo sozinho para demonstrar auto-suficiência e independência. A parecer invulnerável diante das dificuldades da vida, e forte para poder ser respeitado. Também o ensinaram que só se conquista as coisas com muito esforço e melhor ainda se for sem a ajuda de ninguém. Também o disseram que ele só seria feliz e realizado se aprendesse a fazer tudo por si próprio, escolher com a sua própria vontade, fazer com as próprias mãos, andar com os próprios pés. Mas então ele já não podia andar. E nenhum dos que disseram para ele conseguir tudo com a própria força estava ali para ajudá-lo a chegar na sua última esperança: as águas de Betesda. Reconhecer a necessidade de cura agora, era também expor na totalidade sua fraqueza e fracasso.

Todos nós temos um tanque de Betesda particular, onde almejamos chegar para encontrar a paz, a felicidade, a sensação de completude ao invés do vazio perseguidor de uma existência maculada pela imperfeição e inconstância. Todos queremos chegar lá, onde nos acena a possibilidade de sermos aquele ser ideal que estamos longe de ser. E em busca disso nos arrastamos por anos, colocando toda a nossa esperança em pessoas, lugares, ritos ou coisas que além da breve sensação de refrigério, nos dê também a cura permanente para essa ânsia de transcender.

O mesmo olhar ainda nos procura: "queres ser curado?"

A pergunta já não soa tão absurda quando dirigida a nós. Soa perturbadora. Mas nós não precisamos passar tanto tempo nos arrastando em volta de uma ilusão para respondermos a esse olhar. Nem demorar anos e anos para reconhecer nossa impotência, fragilidade e necessidade de ajuda. Não seremos fracos quando decidirmos depender dEle, e confessarmos que apesar de nossa obstinação, nossa vontade não basta, nossos esforços precisam do toque divino. Não perderemos nada em deixar que Ele faça ao Seu modo, e transforme nossa história de repetidas frustrações num encontro definitivo com a cura. Precisamos apenas querer. Talvez reparar na pele áspera e calejada de pernas que, sob nosso comando, nada fazem além de se arrastar de um lugar par ao outro, ou encarar o leito feio onde costumamos depor nosso cansaço. Talvez só tirar os olhos de Betesda. E encontrar Aquele cuja voz dirá: "Levanta-te, toma o teu leito e anda."

Uma semana iluminada.

Luciana Dantas Teixeira

Ps.: texto carinhosamente dedicado a Moab Mariano, com quem ouvi um sermão bastante singular sobre esse mesmo trecho bíblico.

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