segunda-feira, 27 de outubro de 2003

Que poderia ir em branco

Vocês não entenderiam se eu hoje lhes mandasse um e-mail em branco. E essa é uma das desvantagens da internet: na virtualidade nosso silêncio não faz sentido. Se calamos, anulamos a nossa existência, ao menos em relação a todos os nossos contatos virtuais. Eu mesma receio ter morrido para alguns amigos cujos e-mails repousam em meu Outlook como que deitados eternamente em berço esplêndido, sem que eu tenha tempo para respondê-los com o devido carinho, como gosto de fazer. Mania de quem ama as palavras, a ponto de não querer jogá-las de qualquer forma, mas dar-lhes o conteúdo mais formidável. Mania que em nada me enobrece, posto que continuo em falta com meus amigos. Resta meu silêncio inútil.

Ao começar este parágrafo quis pensar que, no “mundo real”, este mesmo silêncio fosse mais bem compreendido, mas já nesta segunda linha temo que não. Basta pensar na crescente objetividade do nosso tempo, onde parece que os sentidos vão perdendo algo de sua função: as pessoas comem em função das calorias, procuram eliminar ou disfarçar todos os cheiros, escutam apenas aquilo que não é preciso parar para ouvir, não tocam, seja por medo de estragar, de se contaminar ou simplesmente para não serem acusadas de assédio sexual, olham para os textos que dizem como está lá fora, lugar onde a vista não chega mais. E para tanto, comunicam-se. Meu Deus, como comunicam-se as pessoas de nosso tempo! Quantos recursos, tantos meios de exibir fala, imagem, texto, signo, o mundo fervilha em informações cada vez mais velozes, sinópticas, para nos poupar tempo a fim de darmos lugar à informação seguinte. Os sentidos numa tensão de atender a este ritmo, enquanto esquecemos de contemplar.

Saber silenciar; deixar todos os sentidos passivos e livres de qualquer responsabilidade para conosco. Um bom exercício é conviver com mulheres. Bem, vou tentar não generalizar só desta vez e falar apenas de mim, para quem a condição mais próxima de felicidade num relacionamento, é o reconhecimento de ouvir e ser ouvida. Presentes, gestos bonitos, a própria beleza em si são importantes, mas não superam o momento transcendente de contemplar exatamente aquilo que eu queria ouvir. Na hora certinha, sem dicas. E quanto tormento se evitaria se na hora de eu falar – naquela premente hora em que tudo que quero é ouvir nada – encontrasse um par de ouvidos pacientes. Mas o homem treinado para reconhecer problemas e necessariamente solucioná-los não desarma o ouvido analítico, e se desespera tentando achar uma solução, uma saída, uma explicação, o telefone da emergência, qualquer coisa que acabe com o problema, e quanto mais se desespera, mais a mulher suspira a falta do silêncio (ah, sim, eu tentava não generalizar). Não que seus problemas sejam o que há de mais lindo na natureza para contemplar. Mas certos momentos não pedem solução, apenas compreensão, e em se tratando das mulheres... digo, de mim, posso afirmar que nem isso, posto que totalmente inexigível, mas há momentos em que o não agir, não falar e não solucionar é a maior dádiva que se pode dar a uma mulher. De torná-la a criatura mais feliz do universo.

A verdade é que todos nós precisamos do silêncio, da contemplação, abrir a alma sem reservas a uma linguagem mais apurada, que nem sempre nossa mente finita consegue entender (não me refiro mais somente a ouvir as mulheres). Imediatamente antes de Jesus começar seu Ministério, ele não foi fazer um curso de oratória, nem conversar com os grandes sábios de seu tempo, nem praticar sua capacidade de fazer milagres. A Bíblia diz que Jesus foi para o deserto. E lá, com os sentidos desligados de todo o mundo exterior, na contemplação absoluta do humano e de Deus, Ele encontrou o que sua natureza humana precisava para enfrentar e vencer sua missão.

Nesta semana, tente dar uma folga para seus sentidos, deixá-los livres, abertos. Eles são o canal pelo qual o Espírito Santo nos fala, e se estiverem sempre ocupados em fazer, sem nunca receber, não poderão conhecer uma realidade mais elevada que a que os cerca (“...porque eles, vendo, não vêem; e ouvindo, não ouvem nem entendem” Mateus 13:13). Deixemos a vida correr um pouco mais passivamente, sem reservas, sem criar tantas imposições para limitar-nos e comprimir-nos: que venham gostos, cheiros, vistas, toques, sons, que venha o silêncio compreendido em toda extensão de sua expressividade, que venha a falta, o vazio, até mesmo a solidão, mas que nisto venha a linguagem sutil do Senhor a aguçar um pouco mais nossa frágil existência.

Boa semana,

Luciana D. Teixeira

segunda-feira, 20 de outubro de 2003

Mais

Geralmente os homens tem pior memória para datas. Mas ela só lembrou porque ouviu aquela música indelével: “everybody knows we live in a world where they give bad names to beautiful things”. Há exatamente um ano ela olhava a lua e não estava só. Conhecia entusiasmada a face de uma beleza desejada intimamente por muitos anos, aquele tipo de anseio que nem sabemos ter até que ele se manifesta satisfeito diante dos nossos olhos e pensamos: “pronto, encontrei o que queria.” Tinha a companhia da beleza e não estava só. No céu, a lua alta e cheia.

Agora olhava o rádio meio assombrada, ouvindo quase à força: “Heaven only knows we live in a world where (...) the [people] fragile and the sensitive are given no chance”. Um ano? Reparando no cardinal parece pouco, mas tanta coisa aconteceu desde aquela noite de lua. Algumas boas, outra ruins, outras que ela não sabe ao certo porque os sentimentos sempre confundem a precisão da memória. Emoções teimam em criar fatos ou dar-lhes cores escolhidas arbitrariamente (há que se perdoar emoções que não tiveram tempo de se acostumar à perda da beleza). E desviando os olhos do rádio, para tentar inconscientemente arrastar para longe os outros sentidos, ela hoje encontrou só o céu escuro, sem companhia, sem beleza e sem lua. Não fosse a música, até sem lembrança.

Como era mesmo que dizia Salomão? “Tudo quanto desejaram meus olhos não lhes neguei, nem privei o coração de alegria alguma... e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento...” (Eclesiastes 1: 10,11). Vento, lua, companhia: tudo a mesma natureza mutável. Há quem também cite a vida, mas não: a vida é justamente o que permanece clamando por mais. A vida fica enquanto desfilam nossas tristezas, sorrisos, conquistas e perdas, começos e também os desconhecidos começos que às vezes chamamos fim. Se é a vida ou eu quem passa, é pergunta filosófica demais para ser respondida em noite sem lua. Mas a transitoriedade é patente. E nos acena no momento seguinte da satisfação, no balanço anual dos sonhos, na percepção crescente de ausências, na coleção de descrenças, nas responsabilidades que tornam o riso adulto, na imagem que teima em refletir no espelho um ser que a nossa infância não sonhou. Eu falaria muito ainda da transitoriedade. Mas é assunto tão delicado, que melhor é deixá-lo como está em cada um, porque há gente que se esforça demais para esquecê-lo. E a vida já é inconveniente o bastante para lembrá-lo vez em quando.

Ah, a música que agora diz: “And the leaves turn green to red to brown fall to the ground and get kicked around”. A velha segunda lei da termodinâmica: tudo tende à degradação. Mas você pode encontrar outra explicação, descobrir uma lei melhor. Essas estranhas manias humanas... tantas explicações não resolvem, não preenchem. São, as próprias explicações, mutáveis e variáveis. E como folhas caindo ao sabor do vento, somos envoltos no que Milan Kundera chamaria de “a insustentável leveza do ser”. Toda a liberdade, aí incluídos os meios para satisfazer os anseios da liberdade, não proporciona senão uma pálida visão da felicidade, porque tangidos pelo vento não temos solidez para pousar em definitivo na condição de seres felizes. Ao vento, vamos perdendo as cores e deixando de ser folhas, vamos deixando de saber o que queremos. O que queremos? Sabemos apenas que mais. Livres, ao vento, apenas tocamos acidentalmente a felicidade, em momentos, pessoas ou coisas ideais que nos fogem (no referencial deles, somos nós que fugimos na corrente de ar). Qual o destino das folhas carregadas pelo vento?

Mas a música já está acabando. E agora pergunta contundente: “You wild enough to remain beautiful?”. Ela também se pergunta o quê mais, além da vida, permanece. Felizmente desviou-se da tristeza quando parou de ver apenas a evidente transitoriedade, para procurar em tudo a eternidade. Que dádiva abençoada, foi Deus colocar dentro de sua criação, imagem e semelhança, um reflexo de Sua própria Eternidade (“What are you so afraid of?
Show us what you're made of”, ela ainda ouve no rádio). As folhas não precisam voar para sentir o vento. Elas não precisam cair, mudar de cor e morrer. “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós” (João 15:4). A única forma de suportarmos o vazio permanente da transitoriedade deste mundo, é permancermos ligados ao Eterno, aquele que é, e jamais passará. NEle, e conseqüentemente na Sua vontade, encontramos o tipo de segurança que não existe na satisfação de nenhum dos nossos desejos. Em Deus nem reparamos nos nossos desejos. Somos folhas que decidiram permanecer bebendo da Sua seiva, para que nunca deixemos de ser aquilo que realmente somos; esta é a satisfação intransponível (você é rebelde o suficiente para isso?). “Be yourself and be beautiful”, a música termina. Ela também dá por concluídas suas divagações. Passa a mão nos olhos, passa aquele apertozinho no coração. A lua já vai passando mais uma fase. “E agora permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior deste é o amor.” (I Cor. 13:13)

terça-feira, 14 de outubro de 2003

Amor que olha para onde anda

Eu estava naquele estado de paixão em que você não está convencido de que aquela é a pessoa certa, mas não pode evitar sentir-se atraído por ela. E eu, que sempre disfarcei muito mal meus sentimentos, ficava inquieta, um pouco trêmula, com as mãos geladas quando ele chegava. Quanto mais me esforçava para ser discreta, mais meu olhar o procurava involuntariamente, quanto mais eu tentava manter a compostura e a sobriedade, mais eu parecia nervosa e abobalhada, mais eu falava besteiras, mais eu seguia cega e leda atrás do seu olhar.

Até que um dia ele perguntou se poderia ir me deixar em casa. “Claro!”, eu respondi tentando indiferença apesar da minha cara de sol-de-leite-ninho. Estávamos a apenas uns quinze minutos da minha casa, e ele foi andando comigo, fazendo companhia. Conversávamos sobre música, meu assunto preferido, e eu tagarelava entusiasmada sem, no entanto, tirar meus olhos dos olhos dele. Queria medir seu entusiasmo também, e a visão daqueles olhos, ah... eu já nem sabia o que falava, apenas olhava fixamente para suas pupilas magnéticas. Foi quando, no melhor da conversa, puft! Tão absorta eu estava em seu olhar que não vi o buraco na calçada em que caí: ralei o joelho, torci o pé e quase não levanto mais de tanta vergonha. Ele, tadinho, me socorreu imediatamente, e não consigo esquecer sua expressão cômica, entre desesperado para me ajudar a levantar e morrendo de vontade de dar uma gargalhada.

Lembrei desse episódio pitoresco da minha infinita lista de gafes e desastres, enquanto lia um livrinho delicioso sobre a vida de Clara de Assis. Em dado momento o autor grifa uma frase que me impressionou deveras: “Amar não é olhar um para o outro, mas, os dois, na mesma direção.” Simples, mas não é que é mesmo? Olhando um para o outro, nós centramos tal pessoa no centro de nosso mundo de tal forma a não vermos nada além dela e do nosso próprio reflexo em sua íris. Amor, no entanto, olhar por onde anda.

Não parece muito saudável uma relação que existe para si mesma, sem a consciência de um mundo inteiro ao redor. Não há como existir crescimento e amadurecimento do amor que é semeado no egoísmo e se estreita no alheamento dos dois. O amor não pode ser assim estático, necessita expandir-se, e para tanto os dois devem olhar ao lado e escolher uma direção. Olhando um para o outro, serão sempre dois. Olhando na mesma direção alcançarão a mais perfeição da unidade. Amor direcionado tem planos em comum, projetos pelos quais lutar, valores a preservar, sonhos para perseguir, esperanças e batalhas para partilhar. E por isso é forte; não se limita à contemplação de si e do outro, mas procura o que há de ambos no universo. Numa relação de amor há um e muito mais que dois; há um sem fim de paisagens para conquistar.

Compreendendo isso, fica mais fácil de sentir o amor de Deus. Quantas vezes tive me consolar com o olhar da fé... É este olhar de que fala João quando diz “Ninguém jamais viu a Deus; se nos amamos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor é em nós aperfeiçoado.” (I João 4:12). Não podemos (ainda) olhar nos olhos de Deus, mas se O amamos, olhamos na mesma direção que Ele. “...mas qualquer que guarda a Sua Palavra, nEle realmente se tem aperfeiçoado o amor de Deus. E nisto sabemos que estamos nele” (I João 2:5). Meu relacionamento com Deus nasce entre nós dois, mas vai crescer lá fora, quando minhas escolhas e atitudes demonstrarem que nosso olhar procura o mesmo lugar. E nisso está a segurança do amor: olhando os dois numa mesma direção, não há perigo de ninguém se machucar.

Nesta semana, muitos começos de semana iluminados,

Luciana D. Teixeira