domingo, 1 de dezembro de 2002

Senhor, serei eu? (A Paixão Segundo São Mateus)

Uma das mais belas obras de música sacra chama-se “A Paixão segundo São Mateus”, de Bach. Paixão era como se chamava o relato do sofrimento e crucifixão de Cristo, nos quatro dias que antecedem a páscoa. Cantar a Paixão de Cristo era tradição na liturgia da igreja católica desde o século XIII, que mais tarde foi introduzida na liturgia protestante por Martinho Lutero, e alcançou seu clímax em Bach, que a apresentou na forma de oratórios, com os episódios bíblicos cantados ou recitados por solistas, intercalados de passagens meditativas feitas por dois coros, e passagens instrumentais realizadas por uma pequena orquestra.

A Paixão Segundo São Mateus foi apresentada pela primeira vez em 1729, na igreja de São Tomás em Leipzig. E depois que toda a Europa havia esquecido que um dia existira um compositor chamado Bach (pois é, os gênios quase nunca são reconhecidos em seu tempo), esta obra foi reapresentada em Berlim, exatamente cem anos depois, sob a regência de Mendelssohn. O impacto que esse oratório causou então, foi tão grande, que fez a obra de Bach ser “ressuscitada” para a eternidade, pois vem sendo estudada e reconhecida como um dos cumes da História da Música.

Certo historiador classifica “A Paixão Segundo São Mateus” como uma obra de tão profunda emoção religiosa a ponto de converter um ateu . De fato, ela é de uma mensagem tão poderosa, musicalmente falando, que já se deu a Bach o título de “Quinto evangelista”.

Um dos curiosos recursos de Bach, que transparece perfeitamente nessa obra, é o modo como ele utiliza o coral para conseguir trazer a mensagem bíblica para mais perto dos ouvintes, de modo a fazê-los integrarem-se nela. Em detrimento da orquestra barroca, que era, comparada a de hoje, bem pequena, Bach fazia questão que sobressaísse a voz humana, e para tanto utilizou-se de toda a estrutura que a igreja de São Tomás podia comportar: espaço para dois coros, cantando em oito vozes distintas. Essas vozes, através de simbolismos muito bem explorados pela música dele, leva os ouvintes, de mero espectadores para participantes da cena cantada. A pregação não se limita a uma narração, a exposição de um drama ou sermão distante: o coral permite que Bach transforme a música em prece íntima, e realize a introspeção da mensagem na congregação.

Um exemplo desse magnífico efeito está na primeira parte da Paixão Segundo São Mateus, que expõe o momento em que Jesus anuncia aos discípulos que será traído. “Um de vós me trairá”, canta a voz do baixo. O narrador diz: “E eles, mutíssimo tristes começam a perguntar..” (Mateus 26:22). Então entra o coro dramático dos apóstolos perguntando “Senhor, serei eu?”, pergunta que é repetida onze vezes, o que nos faz lembrar que Judas calou-se. Nesse momento, todos esperam que se siga a narração conforme está na Bíblia, com Jesus indicando os sinais do traidor. Mas isso seria o óbvio, e Bach, cuja maior preocupação está em mostrar Deus em sua música, não poderia se conformar com o óbvio. A pergunta “Senhor, serei eu?” ainda está suspensa por um acorde interrogativo. Que faz Bach então? Quando todos esperam que Jesus diga que Judas é o traidor, entra um novo coro de vozes, que representando as vozes da congregação, anuncia: “Sou eu!”. De repente, os olhares que voltavam-se para Judas, passam a olhar para si mesmos, e cada pessoa presente na igreja passa a se sentir-se pessoalmente culpada pela morte de Cristo. E ao contrário do que poderia se imaginar, esse coro não tem em nenhuma de suas notas um tom acusador, mas contrito, de um pecador que se reconhece mau. Ninguém pode ouvir esse coro sem sentir em seu coração que, em algum momento, também traiu Jesus, e merecia sofrer as penas do pecado no lugar dEle. “Vossos sofrimentos redimiram minha alma”, termina o coro deixando emocionado e surpreso o ouvinte.

Só depois disso é que o relato prossegue. Judas pergunta: “Senhor, serei eu?” e Jesus termina afirmando: “Tu o disseste”. Pronto, Bach conseguiu fazer-nos entender um pouco mais do amor infinito de Cristo. Não um Cristo que chama nossos nomes para acusar, mas um Cristo que por Seu sacrifício de amor nos constrange a reconhecermos nossas culpas. Um Cristo a quem nós, todos os dias, crucificamos mais uma vez, e traímos com a mesma maldade de Judas, quando cedemos ao pecado. E que ainda assim, sofreu para redimir nossas almas. Bach não nos deixa imaginar que, sequer aquele “Tu o disseste”, não tenha sido dito com amor e compaixão.

Cada vez que condescendemos com o mal, traímos nosso amado Salvador. A dor que isso causa nEle é tão forte como uma das marteladas que cravaram os pregos em Suas mãos santas. Mas o mesmo sangue inocente que se derrama dessas mãos, é o sangue que nos limpa e reconcilia uma vez mais com Deus, quando nos arrependemos sinceramente de nossos pecados. A culpa do pecado, que é também a culpa que temos pela morte de Cristo, não nos é imputada somente devido a graça amorável dEle. Que ao começarmos esta semana possamos perguntar: “Senhor, serei eu? Serei eu quem esqueceu de amar-te a Ti e ao meu próximo como devia? Serei eu quem está te traindo através de pensamentos, palavras, ações e omissões?”. E quando nos vir arrependidos de nossa culpa, Jesus chamará o nosso nome, não para nos acusar, mas para nos dizer: “Filho, alegre-se! Perdoados estão os teus pecados” (Mateus 9:2).

Eis, Jesus estende Suas mãos para nos segurar. Vem!
Onde?
Para os braços de Jesus! Procura redenção, procura misericórdia, procura-te!
Onde?
Nos braços de Jesus! Vive, morre, fica aqui, Tu aflito. Fica aqui.
Onde?
Nos braços de Jesus!


Mas isso já é outro coro...

Uma semana iluminada,

Luciana