segunda-feira, 20 de outubro de 2003

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Geralmente os homens tem pior memória para datas. Mas ela só lembrou porque ouviu aquela música indelével: “everybody knows we live in a world where they give bad names to beautiful things”. Há exatamente um ano ela olhava a lua e não estava só. Conhecia entusiasmada a face de uma beleza desejada intimamente por muitos anos, aquele tipo de anseio que nem sabemos ter até que ele se manifesta satisfeito diante dos nossos olhos e pensamos: “pronto, encontrei o que queria.” Tinha a companhia da beleza e não estava só. No céu, a lua alta e cheia.

Agora olhava o rádio meio assombrada, ouvindo quase à força: “Heaven only knows we live in a world where (...) the [people] fragile and the sensitive are given no chance”. Um ano? Reparando no cardinal parece pouco, mas tanta coisa aconteceu desde aquela noite de lua. Algumas boas, outra ruins, outras que ela não sabe ao certo porque os sentimentos sempre confundem a precisão da memória. Emoções teimam em criar fatos ou dar-lhes cores escolhidas arbitrariamente (há que se perdoar emoções que não tiveram tempo de se acostumar à perda da beleza). E desviando os olhos do rádio, para tentar inconscientemente arrastar para longe os outros sentidos, ela hoje encontrou só o céu escuro, sem companhia, sem beleza e sem lua. Não fosse a música, até sem lembrança.

Como era mesmo que dizia Salomão? “Tudo quanto desejaram meus olhos não lhes neguei, nem privei o coração de alegria alguma... e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento...” (Eclesiastes 1: 10,11). Vento, lua, companhia: tudo a mesma natureza mutável. Há quem também cite a vida, mas não: a vida é justamente o que permanece clamando por mais. A vida fica enquanto desfilam nossas tristezas, sorrisos, conquistas e perdas, começos e também os desconhecidos começos que às vezes chamamos fim. Se é a vida ou eu quem passa, é pergunta filosófica demais para ser respondida em noite sem lua. Mas a transitoriedade é patente. E nos acena no momento seguinte da satisfação, no balanço anual dos sonhos, na percepção crescente de ausências, na coleção de descrenças, nas responsabilidades que tornam o riso adulto, na imagem que teima em refletir no espelho um ser que a nossa infância não sonhou. Eu falaria muito ainda da transitoriedade. Mas é assunto tão delicado, que melhor é deixá-lo como está em cada um, porque há gente que se esforça demais para esquecê-lo. E a vida já é inconveniente o bastante para lembrá-lo vez em quando.

Ah, a música que agora diz: “And the leaves turn green to red to brown fall to the ground and get kicked around”. A velha segunda lei da termodinâmica: tudo tende à degradação. Mas você pode encontrar outra explicação, descobrir uma lei melhor. Essas estranhas manias humanas... tantas explicações não resolvem, não preenchem. São, as próprias explicações, mutáveis e variáveis. E como folhas caindo ao sabor do vento, somos envoltos no que Milan Kundera chamaria de “a insustentável leveza do ser”. Toda a liberdade, aí incluídos os meios para satisfazer os anseios da liberdade, não proporciona senão uma pálida visão da felicidade, porque tangidos pelo vento não temos solidez para pousar em definitivo na condição de seres felizes. Ao vento, vamos perdendo as cores e deixando de ser folhas, vamos deixando de saber o que queremos. O que queremos? Sabemos apenas que mais. Livres, ao vento, apenas tocamos acidentalmente a felicidade, em momentos, pessoas ou coisas ideais que nos fogem (no referencial deles, somos nós que fugimos na corrente de ar). Qual o destino das folhas carregadas pelo vento?

Mas a música já está acabando. E agora pergunta contundente: “You wild enough to remain beautiful?”. Ela também se pergunta o quê mais, além da vida, permanece. Felizmente desviou-se da tristeza quando parou de ver apenas a evidente transitoriedade, para procurar em tudo a eternidade. Que dádiva abençoada, foi Deus colocar dentro de sua criação, imagem e semelhança, um reflexo de Sua própria Eternidade (“What are you so afraid of?
Show us what you're made of”, ela ainda ouve no rádio). As folhas não precisam voar para sentir o vento. Elas não precisam cair, mudar de cor e morrer. “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós” (João 15:4). A única forma de suportarmos o vazio permanente da transitoriedade deste mundo, é permancermos ligados ao Eterno, aquele que é, e jamais passará. NEle, e conseqüentemente na Sua vontade, encontramos o tipo de segurança que não existe na satisfação de nenhum dos nossos desejos. Em Deus nem reparamos nos nossos desejos. Somos folhas que decidiram permanecer bebendo da Sua seiva, para que nunca deixemos de ser aquilo que realmente somos; esta é a satisfação intransponível (você é rebelde o suficiente para isso?). “Be yourself and be beautiful”, a música termina. Ela também dá por concluídas suas divagações. Passa a mão nos olhos, passa aquele apertozinho no coração. A lua já vai passando mais uma fase. “E agora permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior deste é o amor.” (I Cor. 13:13)

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