terça-feira, 14 de outubro de 2003

Amor que olha para onde anda

Eu estava naquele estado de paixão em que você não está convencido de que aquela é a pessoa certa, mas não pode evitar sentir-se atraído por ela. E eu, que sempre disfarcei muito mal meus sentimentos, ficava inquieta, um pouco trêmula, com as mãos geladas quando ele chegava. Quanto mais me esforçava para ser discreta, mais meu olhar o procurava involuntariamente, quanto mais eu tentava manter a compostura e a sobriedade, mais eu parecia nervosa e abobalhada, mais eu falava besteiras, mais eu seguia cega e leda atrás do seu olhar.

Até que um dia ele perguntou se poderia ir me deixar em casa. “Claro!”, eu respondi tentando indiferença apesar da minha cara de sol-de-leite-ninho. Estávamos a apenas uns quinze minutos da minha casa, e ele foi andando comigo, fazendo companhia. Conversávamos sobre música, meu assunto preferido, e eu tagarelava entusiasmada sem, no entanto, tirar meus olhos dos olhos dele. Queria medir seu entusiasmo também, e a visão daqueles olhos, ah... eu já nem sabia o que falava, apenas olhava fixamente para suas pupilas magnéticas. Foi quando, no melhor da conversa, puft! Tão absorta eu estava em seu olhar que não vi o buraco na calçada em que caí: ralei o joelho, torci o pé e quase não levanto mais de tanta vergonha. Ele, tadinho, me socorreu imediatamente, e não consigo esquecer sua expressão cômica, entre desesperado para me ajudar a levantar e morrendo de vontade de dar uma gargalhada.

Lembrei desse episódio pitoresco da minha infinita lista de gafes e desastres, enquanto lia um livrinho delicioso sobre a vida de Clara de Assis. Em dado momento o autor grifa uma frase que me impressionou deveras: “Amar não é olhar um para o outro, mas, os dois, na mesma direção.” Simples, mas não é que é mesmo? Olhando um para o outro, nós centramos tal pessoa no centro de nosso mundo de tal forma a não vermos nada além dela e do nosso próprio reflexo em sua íris. Amor, no entanto, olhar por onde anda.

Não parece muito saudável uma relação que existe para si mesma, sem a consciência de um mundo inteiro ao redor. Não há como existir crescimento e amadurecimento do amor que é semeado no egoísmo e se estreita no alheamento dos dois. O amor não pode ser assim estático, necessita expandir-se, e para tanto os dois devem olhar ao lado e escolher uma direção. Olhando um para o outro, serão sempre dois. Olhando na mesma direção alcançarão a mais perfeição da unidade. Amor direcionado tem planos em comum, projetos pelos quais lutar, valores a preservar, sonhos para perseguir, esperanças e batalhas para partilhar. E por isso é forte; não se limita à contemplação de si e do outro, mas procura o que há de ambos no universo. Numa relação de amor há um e muito mais que dois; há um sem fim de paisagens para conquistar.

Compreendendo isso, fica mais fácil de sentir o amor de Deus. Quantas vezes tive me consolar com o olhar da fé... É este olhar de que fala João quando diz “Ninguém jamais viu a Deus; se nos amamos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor é em nós aperfeiçoado.” (I João 4:12). Não podemos (ainda) olhar nos olhos de Deus, mas se O amamos, olhamos na mesma direção que Ele. “...mas qualquer que guarda a Sua Palavra, nEle realmente se tem aperfeiçoado o amor de Deus. E nisto sabemos que estamos nele” (I João 2:5). Meu relacionamento com Deus nasce entre nós dois, mas vai crescer lá fora, quando minhas escolhas e atitudes demonstrarem que nosso olhar procura o mesmo lugar. E nisso está a segurança do amor: olhando os dois numa mesma direção, não há perigo de ninguém se machucar.

Nesta semana, muitos começos de semana iluminados,

Luciana D. Teixeira

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