segunda-feira, 29 de setembro de 2003

"Oh, pedaço de mim..."

- Bateram em mim!

Quando ele me falou isso, cedo da manhã, eu passei algum tempo sem conseguir raciocinar. Tudo que me ocorria eram as cenas de todos os filmes policiais e de artes marciais que já vi, com imagens de gangues mal-encaradas cercando um pobre cidadão e partindo pra cima dele sem dó nem piedade. Depois ainda visualizei o mesmo cidadão arrastando-se na sarjeta, todo rasgado e cheio de hematomas, cinco dentes a menos, sangue cobrindo sua face deformada, até que, vencido pela agressão, tombava desfalecido, vindo a acordar somente no hospital enquanto uma mulher aos prantos, descabelada, acompanhava sua maca até o pronto-socorro. E naquele momento a mulher descabelada era eu.

- Quê?!

Eu já tinha uma bateria de perguntas posteriores, do tipo: quantos caras foram? Onde te bateram? Quantas fraturas expostas? Mas ele resolveu me explicar melhor.

- Bateram em mim. A porta lateral tá toda amassada.

Foi só então que eu entendi. Bateram no carro dele. Graças a Deus, ele não sofreu nenhum arranhão, mas sua ligação com o carro é tanta a ponto de ter falado dele como uma extensão de si próprio. Tamanha foi sua dor emocional ao ver a porta esquerda amassada, que eu poderia jurar que ele andaria mancando até o carro sair da oficina.

O episódio me fez pensar sobre as coisas externas que agregamos a nós mesmos, a ponto de sentí-las como um membro a mais. Todo mundo já ouviu que, para muito, o bolso é a parte mais sensível do corpo humano. E há quem sinta que é seu trabalho, seu cargo na igreja, sua casa, seus livros, seus filhos, sua coleção de sapatos ou CDs. Aquilo de que não concebemos nos separar. Aquilo que nos faz suar frio só de imaginar perder. E não é que até mesmo Deus, completo em si mesmo, escolheu algo fora dEle para tomar como parte de Si? “Eu sou a videira; vós sois os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.” (João 15:5).

Qualquer dano que um dos ramos sofra é sentido por toda a videira. E o vigor do ramo é a alegria da videira. Jesus continua: “Se alguém não permanece em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará...”(v. 6). Não adianta estar ligado à videira e querer dar uva. “Pelos frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros?” (Mateus 7:16). E embora a videira de Cristo esteja sempre aberta a enxertos, os ramos são partes inteiramente dependentes e coerentes com a natureza da videira “Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes e vos será feito” (v. 7). Não se trata de um favor que Deus nos concede. Ele fará o que quisermos porque, sendo membros unidos a Ele, o nosso querer será a Sua vontade. Não haverá mais desejos separados; ramo e videira têm o mesmo interesse, que é frutificar no bem em abundância.

Que nesta nova semana saibamos escolher agregar coisas mais elevadas ao nosso ser. Se nos apegarmos a coisas materiais, finitas e perecíveis, nada estaremos acrescentando de melhor à nossa natureza. Se buscarmos permanecer unidos à Videira Verdadeira, porém, beberemos da seiva de Sua bela nobreza e eternidade.

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