segunda-feira, 3 de novembro de 2003

Uma dor

Ontem, quando entrei no ônibus de Recife para Natal, imaginava que aquela seria apenas mais uma viagem cansativa e melancólica de mais de quatro horas para longe de alguém que amo. Comprei a última passagem que sobrara, bem no fim do corredor direito, e a encontrei ao lado de um homem simpático que se ofereceu para guardar minha bolsa no compartimento de cima. Agradeci, e como sempre faço a fim de evitar a possibilidade da viagem ser ainda pior, abri logo um livro e fiz cara de leitora compenetrada para não dar margem à grandes diálogos. Chatice minha, provavelmente, mas conversar em ônibus me dá enjôo, especialmente considerando o tipo de conversa que quase sempre se inicia. Mas se tenho percebido algo nas minha ponte rodoviária Natal-Recife, é que os ônibus deixam as pessoas mais sensíveis e abertas. O fato de ter ao lado um interlocutor que possivelmente não se verá nunca mais desarma as travas da língua. E assim, depois que a luz apagou e eu acordei sobressaltada de um pequeno cochilo, o homem ao lado perguntou sobre as partituras que eu estava lendo e começamos a conversar.

Ao contrário do que eu imaginava, a conversa fluiu agradavelmente. Falamos de música, índios, aviões (ele é piloto da aeronáutica), peixes, e lá pelas tantas tentávamos identificar constelações pela janela do ônibus. Foi quando falei de Deus (na se pode olhar as estrelas sem pensar nEle). E Romeno mudou a entonação da voz. Falou que há algum tempo ele era um religioso dedicado, um cristão convicto, que não perdia um reunião na igreja, onde ia com sua esposa e duas filhas. Mas um dia, tendo saído da igreja com sua família em direção a casa, um caminhão desgovernado chocou-se contra seu carro, esmagando todo o lado esquerdo de sua mulher, passando por cima de sua filha mais nova e arrancando as duas pernas de sua filha mais velha.

- Se eu não tivesse ido à igreja naquela noite, isso não teria acontecido.

E Romeno começou a chorar. Poucas lágrimas já me afligiram tanto quanto as daquele homem, um militar treinado para ser forte e resistir a situações limite, mas que não resistia à própria dor, que carregava há doze anos com uma mágoa profunda. Seu semblante e conversa denunciavam um homem bom, honesto, sensível. Mas a ferida sangrava lá dentro, e agora ele não fazia força para esconder. Em meio às lágrimas ele me falou que sua filha, Catarine, foi o único bem que lhe sobrou. E para tentar fazê-lo parar de chorar, eu pedi que ele me dissesse como ela é, o que gosta de fazer. Enquanto ele a descrevia, sua face ficou mais alegre: ela vai fazer o vestibular próxima ano, adora estudar o céu e as estrelas, sabe o nome de cada constelação, é uma menina organizada, batalhadora, gosta muito de animais (a ponto de criar carinhosamente três gambás), e apesar dele não dizer expressamente, ficou patente que é uma garota feliz.

Mas ainda restava Romeno, ali, com aquele buraco no peito, e eu sem saber como estancar. E eu poderia? O que dizer a um homem que perdeu seu ideal de felicidade de uma forma tão violenta? Como responder às mesmas velhas dúvidas, cujas respostas eu mesma nunca encontrei, tais como: “o que fiz de errado para receber esse castigo?”, “por que Ele não impediu que isso acontecesse?”, “elas ainda estariam vivas se eu não fosse um cristão?”. Por alguns minutos calamo-nos. Romeno olhava as luzes de Natal se aproximando e eu orava pedindo que Deus falasse algo para ele através de mim. E pouco antes de ver Romeno partir eu lhe disse que precisava dizer-lhe algo:

- Não culpe sua fé pelo que aconteceu. Sua fé garantiu a salvação de sua pequena filha, e fez a sua esposa, orgulhosa, levar de você a imagem do marido que ela sempre quis ter. Deus não está indiferente à tua dor, Ele, que também viu morrer o Filho sem poder fazer nada, sabe exatamente como você se sente. A dor dEle teve uma finalidade, que você sabe, é a causa de toda a humanidade poder ter vida. A sua dor, Romeno, também tem. Um dia você vai saber, mas até lá considere que perder esposa e filha já é demais para um homem; não perca também sua fé. Ainda é preciso ter fé para garantir que você e sua filha Catarine cumpram o plano que Deus preparou para vocês aqui, e um dia, possam saber as respostas das suas perguntas. Deus ama você. Muito. E independentemente da sua dor, o amor dEle vai te continuar lhe acompanhando.

O ônibus parou. Romeno pediu licença, pegou sua bolsa, apertou minha mão e disse que foi um prazer conversar comigo.

- Sei que foi Deus quem te mandou aqui. Você é um anjo dEle. Pois então mande-lhe um recado: diga que valeu a tentativa.

Anjo, Romeno? Não... sou muito menor. Não posso sequer suportar a dúvida de que, talvez, não tenha te falado o suficiente, não tenha te dito as palavras certas. Como sou impotente, meu amigo viajante. Não consegui, antes que você saísse, nem mesmo lhe dizer que, se Ele tentou, é porque você é muito importante para Ele.

Uma semana mais iluminada,

Luciana Dantas Teixeira.

2 comentários:

Luciana Teixeira disse...

Escrevi essa meditação chorando, e até hoje a lembrança desse episódio me aflige. Volta e meia penso por onde amdarão Romeno e sua filha, penso que gostaria muito de reve-lo. Mas não sei ainda se saberia o que lhe dizer. ?Hoje acho que certas dores nao tewm mesmo causa ou explicação humanamente convincente.

Luciana Araújo disse...

Toda vez que leio esse texto vasculho as redes sociais em busca de Romeno ou sua filha... e amargo a mesma tristeza de não achá-los. Gostaria muito de saber como estão.