segunda-feira, 24 de março de 2003

Viva la revolución!

Aos sete anos eu sabia exatamente como seria minha vida no futuro: primeiro eu seria professora (para conseguir as coisas mais simples como um apartamento e um carro), depois construiria uma grande escola que também serviria como base de uma entidade social filantrópica (a idéia era essa, mas sem o nome complicado). Tal iniciativa geraria outros núcleos de ajuda humanitária dirigidos à educação e integração social dos mais pobres e enfim, eu conseguiria salvar o Brasil da fome e da miséria. Aí eu já estaria bem velha, com uns vinte e três anos, e poderia dar uma pausa para casar, ter um filho e adotar outro, antes de partir para nova empreitada salvadorística em nível mundial.

Recordei estes meus planos durante esta semana, depois de conhecer uma garota de treze anos que também é voluntária numa ONG da qual participo (www.natalvoluntarios.org.br). Enquanto ouvia ela falar com ardor dos planos que tem para implantar definitivamente a bondade e a solidariedade no mundo, lembrava de mim mesma, com a idade dela, fazendo redações de protesto contra a política capitalista e discursos inflamados por melhores condições de vida para os trabalhadores, durante apresentações de trabalhos escolares. Tudo me parecia tão fácil e óbvio! Alguém só precisava dizer como as coisas deveriam ser feitas! Então eu romantizava os movimentos estudantis da época da ditadura militar e acreditava que a solução viria quando os jovens fizessem uma grande revolução e tomassem o poder.

Mas eu fui crescendo e vi que a maioria dos jovens tinham sonhos mais imediatos e superficiais. Foram ensinados a lutar para conseguir apenas a primeira parte do meu sonho aos sete anos: um emprego, um teto e um carrinho, se der. Percebi eu mesma que, só isso, já era bastante difícil. E quando entrei na faculdade veio o confronto definitivo com minhas utopias por um mundo melhor. Certo ditado americano diz que nós nunca deveríamos ver como são feitas as salsichas e as leis. E eu, que acreditava no poder da lei do amor para mudar o mundo, descobri que o que prevalece é a lei humana, a qual sempre tende a favorecer os mais forte e excluir os mais fracos. Que o Direito, ao invés de servir à Justiça como pregam bem os teóricos, acabou por se transformar em justificativa no discurso de uma classe que mantém a injustiça e a opressão no poder. O que mais me decepcionou é que grande parte dos que estavam comigo queriam apenas aprender as regras do jogo para se adaptarem bem e lucrarem com isso. E me disseram que isso era o normal: sobreviver e crescer profissionalmente, sem maiores comprometimentos com outros seres humanos. Antes, todos pareciam festejar o privilégio de ser elite intelectual, lamentando os demais intimamente (ou publicamente, dependendo da finalidade do discurso). Para escurecer o restinho de esperanças, percebi que a mentira se reveza no poder. E Bush foi eleito.

Quando chegamos nesse ponto nos sentimos maduros: não podemos mudar nada. Cuidar da nossa própria sobrevivência já é desgastante demais, e resta apenas nos fecharmos sobre nosso próprio mundinho, esquecer que ainda há coisas erradas e pessoas precisando de ajuda: quer nos lembremos, quer não. Somente quando acontecem grandes comoções, como desastres ou guerras, é que a humanidade se dá conta da fragilidade de sua condição. Acompanhamos atentos o desenrolar de estratégias militares onde dezenas de pessoas inocentes perdem a vida, mas quotidianamente ignoramos centenas , que morrem vítima do nosso descaso, bem ao nosso lado. E não sabemos nada da criança que acabou de morrer desnutrida, do adolescente que por falta de educação entrou no crime: o subúrbio não tem cobertura com flashes ao vivo na programação da Globo. A guerra nos faz pensar que há outros além de nós mesmos, mas é só quando a dor deles também nos ameaça que ficamos bem atentos com medo de sermos atingidos.

Hoje eu já não sonho com grandes revoluções para mudar o mundo. Sei um pouco do quanto é difícil resolver tudo política e juridicamente (muito mais que eu sabem os poucos homens honrados que estão lutando por esses caminhos). Não aposto na boa vontade da maioria para oferecer solução às necessidades alheias. Mas vou contar um segredo, pois afinal escrevo para amigos: eu ainda sonho em ver as pessoas vivendo melhor. Tenho convicção que cristianismo é muito mais que orar pelas vítimas da guerra e desejar um mundo melhor só na eternidade.

Embora biblicamente o que se profetize para nossos dias não seja nada animador, ainda devemos fazer nossa parte pelo nosso mundo aqui, pelas pessoas que deveríamos chamar de irmãos, mas que muitas vezes passam necessidade financeira e emocional ao nosso lado na igreja. O fato do mundo hoje estar se corrompendo mais rapidamente, não deve significar que nos resta ficar parados aguardando que tudo isso termine bem rápido, mas significa que nossa tarefa é cada dia maior, e a responsabilidade de tudo aquilo que podemos partilhar com nosso irmão é mais urgente.

A saída, entanto, não está nos grandes empreendimentos, nas doações milionárias ou nas entidades organizadas de ajuda ao próximo. Adventista: a missão de ajudar não está na ADRA ou no Departamento do Dorcas. Todo esforço bem sucedido em ajudar pessoas tem por base algo muito mais simples: uma pessoa amando outra pessoa e, por isso, conseguindo mudar sua vida para melhor. Foi assim que pessoas como a Madre Tereza ou o Betinho e até Jesus conseguiram grandes coisas. Amar no sentido bíblico, um amor com braços e pernas, com ação e não apenas com palavra (I Jo 3:18). Portanto antes de protestarmos contra a política mundial ou brasileira, antes de tecermos nosso discursos contra o capitalismo, a corrupção da lei e dos que a manejam, e gastarmos nossas forças tentando empreender vultosas mobilizações missões grandiosas, pensemos: somos capazes de amar? Porque se há algo que ajudar pessoas nos ensina, é que amar é nossa única e maior missão neste mundo. Se nosso empreendimento em favor das pessoas não vier de um coração que sabe amar em particular, cairemos fatidicamente no poema de Bertold Brecht: “Ai, nós que queríamos amainar o terreno para a amabilidade: não podíamos nós mesmos ser amáveis.” O que sustentará nossas ações?

Eu não perdi a fé num mundo melhor porque depois de conhecer a maldade e a pobreza espiritual humana, conheci um Deus que, dentre todos os caminhos que o homem forjou para fazer o bem, se mostrou Ele mesmo como o próprio Caminho. Jesus já fez a revolução necessária para mudar o mundo: ele transformou a vida de todos a quem se dirigia pessoalmente, fez isso comigo e continuará fazendo a outros também. Dele vem o amor, dEle vem a Salvação para bilhões de pessoas. A mim cabe começar amando ao menos uma pessoa de forma pura e verdadeira. Isso não será pouco, apesar de ainda restarem outras tantas precisando ser amadas.

Que a descoberta da injustiça não nos encha de revolta e ódio a ponto de desfigurar a essência do que pregamos. Que o choque com a indiferença pelo mais fraco não nos endureça a ponto de nos tornamos apenas mais uma pedra entre tantas. Que a maldade não nos faça desistir de lutar para dar ao nosso semelhante um pouco de alívio e esperança neste mundo, porque se não conhecerem o amor aqui, não poderão desejar um mundo de amor depois. Que nesta semana encaremos com comprometimento a nossa parte, olhando cada ser humano que precisa de nós como único, e merecedor de nossa mais profunda dedicação. Um a um, acolhamos cada qual, a começar pelos que estão ao lado, com nossa mais completa capacidade de amar.

Uma semana iluminada!

Luciana Dantas Teixeira

Ps.: dedico este texto a Débora, coordenadora do Núcleo de Crianças de Campinas, da ADRA.

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