domingo, 29 de outubro de 2000

Deixa ir a ti...

“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu...” João 3:16

Esta semana foi uma das mais duras desde que cheguei em São Paulo. Devido a uma mudança não programada de casa, eu me cansei muito, física e emocionalmente (não tenho grande facilidade em lidar com mudanças bruscas de quaisquer tipos), e resolvi passar numa livraria cristã para procurar um livro interessante que me ocupasse a mente e animasse o coração. Divórcio... como amar seu marido...aprenda a criar seus filhos...o sexo são... testemunhos de sobreviventes de guerra...vícios: como combatê-los... comida assassina...puxa! Mas que deprimente está o nosso mundo! Resolvi recorrer à boa e velha Bíblia que fala de um tema leve e ao mesmo tempo poderoso para dar a solução de todos os problemas: o amor de Deus. E como já há muito escrito sobre como sobreviver ao desamor, eu resolvi escrever sobre coisas mais simples, tentando descobrir como viver o amor.
Decidi falar sobre peixinhos. Mais precisamente os peixinhos da Lagoa de Muriú, lá no RN. Minha família tem um pequeno sítio nesta cidade praiana. À quinze minutos da casa fica a praia mais bonita do mundo, à vinte minutos uma lagoa magnífica entre dunas de beleza estonteante, e à cinco minutos, uma grande lagoa da qual praticamente apenas a família usufrui, por possuir os terrenos da margem. Tive o privilégio de passar bons momentos de minha infância nesse pequeno paraíso, junto com primos, tios e avós.
Na lagoa mais próxima à nossa casa, costumava brincar por horas com os peixinhos, que chamávamos “piabas”. Bastava ficar quieta um pouquinho e eles começavam a se aproximar, às dezenas, centenas, incontáveis, nadando ao redor e de vez em quando arriscando uma mordiscada de leve, como suaves beijinhos. Mas um único movimento na direção deles e... adeus! Todos iam embora em segundos! Algumas vezes fazíamos apostas para ver quem conseguia pegar um deles... no meio daquele cardume imenso parecia fácil, mas nunca ninguém, nem adulto nem criança conseguiu, dada a rapidez e reflexo dos pequeninos. E o jeito era usar truques... pegávamos um pano grande, enchíamos de farinha de mandioca e o afundávamos levemente na água. Os peixinhos avançavam sobre o banquete, e aí era fácil pegá-los; bastava levantar rapidamente o pano, encurralando-os. Na hora a sensação era maravilhosa: “consegui te pegar!! Vou cuidar de você ter sempre seus beijinhos!!”. Depois os colocávamos em um vasilhame com água da lagoa e em poucas horas... estavam todos mortos! Por isso, aprendi bem cedo que era melhor ficar esticada como um jacaré na beira da lagoa, recebendo os beijos dos peixinhos, deixando apenas eles virem até mim, sem nenhuma pretensão de posse, recebendo seus carinhos aquáticos sem fazer absolutamente nada para convencê-los a ficarem sob meu controle.
Foi difícil aprender a ser assim com os peixinhos, e ainda é com os homens e com Deus! Porque somos ensinados a amar com trocas. Para eu merecer o amor de alguém tenho que dar-lhe algo de muito especial, e então a pessoa terá que me dar algo muito especial também! Logo em seguida, estaremos presos pelo laço do amor, o que significa que, para a vida inteira, possuirei o doce favor do meu ser amado. Certo? Errado.
O amor pressupõe trocas, mas resumi-lo apenas a trocas, é torná-lo interesseiro e egoísta, é querer determinar o que e o quanto o outro tem a lhe dar, quando você poderia simplesmente receber e não se preocupar em buscar mais. O amor, sem dúvida é capaz de doar tudo de si, mas jamais irá cobrar que o outro o faça na mesma intensidade, para que possa sentir-se correspondido. É muito mais eficaz, numa relação de amor, dar sem interesse e sem cobrança, parar de querer encaixar o outro nos moldes do teu conceito de “dar amor”, e deixar ir a você o que ele tem para te dar.
Quando a gente aprende a amar, antes de tudo, aceitando, sem toma-lá-dá-cá-assim-do-jeito-que-eu-quero, o amor começa a fazer muito mais sentido. Aproveita-se tudo que se tem ao invés de ficar se lamentando o que não tem. Não se criam expectativas quanto ao futuro porque o presente está sendo construído com o aproveitamento feliz de cada momento. Cada nova conquista é motivo para festa e não para ansiedade. Cada passo em direção ao outro flui naturalmente, as trocas acontecem num ambiente de respeito e sinceridade, e ninguém se fere. Há gente, no entanto, que não concebe amor sem dor, uma dor profunda no peito, uma forma prazerosa de morrer aos poucos, uma ferida que, ao contrário da de Camões, dói e se sente vividamente... isso pode até encontrar apoio em alguma corrente poética ultraromântica, mas não é o conceito bíblico de amor. Outro tanto se especializa em prestar gentis favores para cobrar o preço em seguida: dou uma mãozinha ao amigo e ele me dá três pés, faço um agrado sexual ao namorado e ele será eternamente meu, me torno um cristão "administrativamente-correto" e recebo o respeito ( e outras "cositas más") da liderança e irmãos da Igreja. Isso basta! Pelo menos como substituto made in Paraguay do amor...
Amor abençoado, produtivo e forte é o amor dado de graça. Aquele que tudo sofre, sem amargura; tudo crê, sem precisar ser cego; tudo espera, sem ansiedade; tudo suporta porque se sabe vitorioso. Tal qual o amor de Jesus por mim e você. Amor de tal maneira grande, que se deu, para que todo que nele crê, não pereça, mas tenha a vida eterna...
Por isso, esse conceito de amor-troca não funciona com Deus (e funciona com alguém?). Há quem passe a vida preocupado em “barganhar” com Ele: “Deus, veja como sou bonzinho! Fiz tantas coisas certas, cumpri a Tua Lei e as dos homens à risca, e até as regrinhas mais intrincadas da Igreja, então o Senhor tem que me amar muito, não é mesmo? Sou ou não Seu filho preferido, fala a verdade!?”
Então eu penso nAquele olhar que há dois mil anos atrás buscava com amor infinito os olhos dos pecadores. Penso nEsse olhar poderoso buscando os olhos da prostituta que nesse momento chora, no preso marginalizado que agora clama, no jovem viciado que perdeu a vontade de viver... quanto amor dado de graça! Penso nos olhos de Jesus, buscando os meus olhos, os quais jamais poderiam encará-lO sem se encherem de lágrimas e vergonha. Este Jesus olharia o homem bonzinho, o qual eleva as mãos cheias de obras em Sua direção. O cheiro de justiça-própria incomoda o Filho de Deus, mas Ele se aproxima, abraça o pobre homem e diz: “Filho, você quer trocar isso por meu amor? Desculpe, eu não posso fazê-lo, porque isso é muito pouco, mal vale o meu perdão... meu amor por você é tão grande que a única coisa que você pode fazer para possuí-lo é dar a si mesmo a mim. E isso não é uma troca, é a simples aceitação do que já foi comprado para você...”
Amor divino é assim; se dá e sabe receber. Já aprendeu há muito tempo que o valioso não é possuir, controlar, arrancar, exigir, manobrar, violar para conseguir ser correspondido. E recebe o outro, com seu melhor e pior, com o que tem. O poder transformador do amor virá em seguida imputando a Sua Justiça... com todas as coisas sendo suavemente acrescentadas...
Um sábado feliz e iluminado!!

Lux Lunae

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