domingo, 15 de outubro de 2000

Diante do mar

“Então me mostrou o mar da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro” Apoc. 22:1

Como vinte e cinco mil paulistanos, decidi passar o fim-de-semana no litoral, e me dirigi até a casa de um amigão no Guarujá. Fui na sexta-feira, um dia depois do feriado, para evitar o congestionamento gigantesco, mas confesso que meu coração ansiava pela visão majestosa do mar, sentir o cheiro da maresia, pisar a areia macia, respirar a brisa úmida. Quatro meses sem estar numa praia, longe do clima litorâneo que eu tanto amo e onde cresci... e eis que ele surge diante de mim. Enorme. Com a grandeza realçada pelas rochas altivas que formam a paisagem da serra.
Me senti cada vez menor...meu peito ía apertando à medida que eu chegava mais perto do mar, aquele aperto de “saudade matada” que a gente sente quando dá um abraço em alguém que ama e não vê há muito tempo. Geralmente, praia é encarada como sinônimo de alegria, diversão, agito. Eu porém sempre a encarei como pretexto para reflexão. E agora muito mais, já que aquela paisagem me envolveu numa atmosfera de saudosismo que “encharcou” todos os meus sentidos de água salgada –as minhas lágrimas traduzindo ondas de sentimentos.
Gente entusiasmada em mergulhar nas ondas. Inexplicável estusiasmo aquático. E eu mergulhava cada vez mais fundo em mim. Uma menina passa de biquíni vermelho. Deve ter cinco anos... brinca com a areia, e a simplicidade do que a vida significa para ela, naquele momento, me atrai. Lembrei de quando meu pai levava a mim e as minhas irmãs para a praia da Via Costeira em Natal, e foi lá que eu aprendi a primeira lição sobre perdas.
Certo domingo, depois de muito tempo brincando nas areias grossas e águas exibidas daquela praia, nos dirigimos até o carro para irmos embora. Eu, como a maioria das crianças, corri na frente, zombando das minhas irmãs que vinham atrás reclamando da areia quente. Quando atravessava a rua que me separava do carro, fui surpreendida pela freiada brusca de um outro carro que, lembro bem, ficou com o pára-choque a uns dois centímetros de mim. Meu pai observava tudo do outro lado da rua, e quando o motorista foi embora, ele e mais dois policiais que estavam perto correram , não acreditando que eu pudesse estar intacta, dada a velocidade com que o carro se arremeteu contra mim. Meu pai, nervoso como jamais o vi, me abraçou e chorou compulsivamente. Eu não dizia uma palavra... foi a primeira vez que vi meu pai chorar, e além do susto que passara a pouco, me assustava ainda mais com a dor que ele demonstrava. Depois de algum tempo ele recobrou a calma, entramos no carro e fomos embora. Ele foi o caminho inteiro brigando comigo, predizendo mil castigos, e de vez em quando olhava para trás, bem nos meus olhos, como que certificando-se de que eu realmente estava ali.
Até então eu nunca havia parado para pensar que algo poderia me separar do meu pai. E que caso isso acontecesse, ele iria sentir tamanha dor. Em minha mente, tudo era para sempre, e a coisa mais próxima que eu sentia de perda era a saudade quando ele demorava a chegar do trabalho... mas eu esperava com a certeza de que sempre haveria mais um abraço. Até aquele momento, eu nunca havia parado para pensar que talvez eu não pudesse voltar a vê-lo, e que meu abraço ficaria inerte nos braços, cada vez mais frios. Eu não me preocupava em ficar de mal dele, pois para mim sempre haveria o momento depois de dizer que eu o amava. E quando eu ficava com medo de morrer porque minha avó falou que o mundo ia se acabar, ou meu cérebro ia derreter porque a febre estava muito alta, eu não tinha dúvidas que tudo ficaria bem quando ele sentasse do meu lado, pusesse a mão sobre a minha cabeça e orasse por mim, me dando seu carinho e voz suaves até que eu dormisse. A partir daquele momento na praia, eu cresci um pouco mais na ciência do bem e do mal...
Depois vieram outras perdas.
Meu sagui, chamado Mikimo, meu cachorro Max, minha cadelinha Funny. Até que este ano eu perdi duas pessoas bem próximas, dois amigos que me deram a noção exata do que a morte significa para o coração humano. O primeiro foi o Jairo, e logo em seguida o Felipe Veras. Entendi, sem jamais aceitar, como dói a falta de alguém que amamos e como demoramos a valorizar com exatidão a importância da sua simples presença. O primeiro impulso é pensar que acabou, e que você também fracassou. A solidão atordoa como se a morte gargalhasse em nossos ouvidos. Aí, tudo fica mutilado, incompleto, impotente, tudo tem sabor de nunca mais, cheiro de desesperança, há tantas dúvidas que até o nosso caminho parece incrivelmente torto e desfigurado.
Minhas reflexões à beira-mar não foram em vão. Ao chegar em casa, recebo a notícia que o pai de uma grande amiga minha faleceu. Ele era meu vizinho, sempre silencioso e quase sempre incompreendido. Mas desde o primeiro momento surgiu uma empatia entre nós, uma cumplicidade que às vezes se traduzia em profundas conversas que tivemos umas três vezes, outras, apenas no respeito amigo em demonstrações mútuas. Meu coração ficou angustiado e resolvi ligar para casa... recebo a notícia que uma tia muito querida de toda a família faleceu esta manhã. Ela tinha lupus, mas por ser Testemunha de Jeová, se recusou a tomar sangue e teve assim seu sofrimento intensificado até descansar, com uma serenidade solene de quem se sente fiel e em paz com sua consciência. Eu parei alguns momentos para tentar digerir tantas perdas ao mesmo tempo e lancei novamente meu olhar ao mar, não mais o mar do litoral paulista, mas ao Mar da Galiléia.
Lá, um homem também vislumbra o mesmo horizonte. Há poucos dias, sofreu a perda irreparável de alguém que ama e sentiu todo o desespero típico de quem fica com a saudade de quem a morte leva. Sentiu-se impotente por não poder salvá-lo, e terrivelmente frustrado por não ter tido tempo de afirmar que o amava. Muito, muito mais que Ele pudesse imaginar. Ficou deprimido, sem saber qual rumo tomar, pois percebeu o quanto sua vida estava envolvida a daquEle Ser... como poderia continuar com aquela solidão? Que saudade enorme, que sensação de fracasso! Ele chegou que os planos foram por água abaixo, e que tudo acabou. E tudo ficou mutilado, incompleto, impotente, com sabor de nunca mais, cheiro de desesperança, e dúvidas deixando o caminho incrivelmente torto e desfigurado.
Mas sabe, Pedro olhava o Mar e sorria. Ele também estava diante de lembranças fortes... fora ali que Jesus acalmara a tempestade e seus corações cheios de terror, caminhando por cima das ondas para os livrar. “Ali fora a tempestade acalmada à Sua voz. Ao alcance da vista estava a praia em que mais de dez mil pessoas foram alimentadas com alguns pães e uns peixinhos. Não muito distante estava Cafarnaum, testemunha de tantos milagres. E ao espraiarem os discípulos o olhar por todo esse cenário, enchia-se-lhes a mente de palavras e atos do Salvador” ( O Desejado de Todas as Nações, pág. 809). Mas que incrível, as recordações não machucavam Pedro.
E ele também tinha que tocar a vida. Ele e os discípulos estavam necessitando de comida e roupa, tinham de trabalhar e continuar o labor apesar da grande perda. Pedro lançou-se ao Mar com seu barquinho e alguns discípulos e passou a noite jogando a rede em busca de peixes... com aquele semblante sorridente no rosto. E além de ainda nem ter se recuperado bem do desgaste emocional que sofrera, seu trabalho não rendia. Mas Pedro manteve o mesmo ânimo até o raiar do sol.
De longe, na praia, um Observador atento preparava pães e peixes. Era Jesus, e assim que os discípulos se deram conta disso, correram em Sua direção, Pedro com o sorriso explodindo em alegria transbordante. Seguindo a ordem do Mestre de lançar a rede do lado direito – o lado da fé nEle – trouxeram também a rede cheia de peixes, para que lembrassem que, mesmo que eles sentissem solidão ou medo, ainda que fragilizados pelo sentimento de perda, não deveriam jamais esquecer que o Salvador ressuscitado cuidaria deles ainda, provendo-lhes todas as necessidades desde que combinassem seus esforços aos de Jesus ao jogarem a rede.
E sabe o que fazia Pedro resistir tão bravamente à perda? É porque ele cria da ressurreição do Ser a quem esperava. Ele sabia que Jesus apenas foi e voltou como uma onda do mar, mas que chegaria o tempo em que Ele voltaria para nunca mais ir embora. E Pedro poderia reafirmar que O amava, não apenas três vezes, mas dez, cem, um milhão, sempre que sentisse vontade, pois o amado amigo estaria eternamente ao seu lado. Esta esperança viva fazia-o entender que “tragada foi a morte pela vitória” e nada mais poderia o abalar. (I Coríntios 15:54)
Hoje eu só tenho mais motivos para dizer que creio que Jesus vive, e porque Ele vive nós também viveremos. E como Pedro, eu espero por amigos a quem será dada a vitória sobre a morte. “Como Jesus ressurgiu dos mortos, assim hão de ressuscitar os que nEle dormem. Reconheceremos os nossos amigos, da mesma maneira que os discípulos de Jesus. Talvez hajam sido deformados, doentes, desfigurados nesta vida mortal, ressurgindo em plena saúde e formosura; no entanto no corpo glorificado, será perfeitamente mantida a identidade. Então conheceremos assim como também somos conhecidos. No rosto, glorioso da luz que irradia da face de Cristo, reconheceremos os traços daqueles que amamos.” (DTN, p. 804)
Sim, eu creio e espero ansiosa o breve dia em que, numa Terra sem dor nem morte, Jesus, eu e nossos amigos uniremos olhares e reflexões alegres ao horizonte de um mar eterno... o mar de cristal da água da vida, na Jerusalém Celeste.
Uma semana feliz e iluminada.

Lux Lunae

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