domingo, 8 de outubro de 2000

Percebendo a semelhança

“Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança...” Gênesis 1:26

Há algo de realmente curioso nos buscadores da internet, aqueles trocinhos que a gente usa quando não faz a mínima idéia de onde achar uma informação: das duas mil opções que eles nos mostram, 80% não tem nada a ver com o que pedimos para ele procurar. Semana passada, durante as eleições, eu recorri a um para saber quais os locais onde eu poderia justificar o meu voto e acabei indo parar num site de contos e histórias reais (surpreendente isso na net, não?), de um certo escritor que não lembrei de gravar o nome. Atentei a uma história em especial, muito engraçada, que desejo partilhar com vocês. Assim conta ele:
“Minha mãe sempre que fazia um pernil assado, tirava uma pequena lasca de cada lado do mesmo, antes de pô-lo para assar.
E ela um dia me contou que quando uma vez lhe perguntaram porque fazia isto, não soube responder. Apenas fazia a mesma coisa que a mãe dela fazia, pois foi quem a ensinara. Teve a curiosidade de perguntar para a mãe dela qual a razão de tirar as tais lascas do pernil, ao que esta respondeu que assim procedia pois sua mãe fazia e ela também. Porquê, não sabia. Resolveu , certo dia, fazer uma visita a sua avó, que morava em uma cidade do interior, praticamente somente para saber a razão daquilo, pois já eram 3 gerações que faziam o pernil daquele jeito.
Dito e feito! Viajou, achou a avó já velhinha e, depois das novidades contadas e presentinhos trocados, lascou a pergunta sobre o pernil ao que a vó lhe respondeu tranquila:
- A FORMA QUE EU TINHA NÃO CABIA O PERNIL.”
Sabe aquele recurso psicológico de contrastes, que faz você pensar em branco quando vê uma coisa preta? Pois bem, essa historinha engraçada me fez lembrar de uma garota que também queria ser escritora, mas não era exatamente adepta do gênero cômico. E lembrei de um de seus escritos que dizia:
“Não entendo como Deus pode ter me dado uma mãe tão diferente de mim. Não consigo nem imaginar que um dia estive dentro dela, porque somos completamente diferentes e tenho certeza que nunca chegaremos a entender o jeito da outra ser. Somos tão estranhas uma a outra que sinto como se ela não me tivesse como filha, como se ela nunca pudesse vir a me amar...”
Essas palavras estão numa página amarelada de um dos meus diários, escrito no ano de 1993, quando eu tinha catorze anos de idade. É , eu sei, também me parece bem duro, intragável, forte e inflamado, mas na época , em que eu adolescia – e aborrecia – era como eu enxergava a relação com minha mãe. Devido a isso, passei muito tempo projetando tudo que queria ser no meu pai, transformando-o no meu super-herói e acreditando que eu era a cópia xerox autenticada dele. E nesse mesmo ano, de repente, me vi tendo de conviver com minha mãe apenas, e depois de um período difícil fomos nos aproximando como nunca antes, pois a perda do meu pai nos fez alimentar uma necessidade enorme de coesão. Com isso, aprendi a conhecer melhor aquela mulher que me parecia tão distante e estranha, e a respeitá-la, bem como ela a mim.
Mas não parou por aí: eu precisava da ausência completa dela também, para descobrir exatamente o quanto eu estava equivocada. Me lembro que ela sempre dizia quando estava chateada: “eu só desejo que um dia você tenha uma casa para tomar conta e as responsabilidades de uma dona-de-casa para que você entenda o que eu passo.” Ou então apenas murmurava: “um dia você vai ser mãe...”, “um dia você vai ter a sua casa”.
Pois é. Cá estou eu na minha casa, que ainda não abriga uma família, mas já me mostra muito do que a minha mãe passava tendo ainda que aguentar uma “aborrecente” revoltada e anarquista. O mais curioso nisso, é que além de ter idéia do quanto foram importantes e árduas as responsabilidades dela comigo e com minhas irmãs, percebo que na minha forma de lidar com os problemas do dia-a-dia eu reflito a imagem e semelhança dela!
Detalhes que noto no supermercado, no banco, limpando a casa, administrando o dinheiro, cozinhando, lidando com a lavadeira de roupas, cuidando das plantas, tudo me faz crer que sou mesmo “a cara” da minha mãe, e isso não foram coisas que eu busquei aprender dela, simplesmente se insculpiram em mim e foram fazendo parte do meu ser até se manifestarem hoje em dia. E por ter percebido essas semelhanças, me permiti analisar mais profundamente, e ver muitas outras características que nós duas temos em comum. Nunca havia percebido que foi dela que herdei meu gosto pelas artes (embora , infelizmente não vivêssemos numa cultura que apoiasse esse gosto), a mania de estudar e se envolver com o ser humano bem individualmente, sem palcos nem luzes (eu vivia brigando com ela porque ela elaborava sermões lindos e comoventes para as filhas, mas se recusava a os expor em público na igreja, como meu pai fazia... hoje sei qual método é mais eficaz) , até mesmo minhas tendências para a área jurídica são herança da minha mãe, já que ela, definitivamente, tem o dom de argumentar com uma lógica dedutiva impecável e altamente persuasiva (que eu estou longe de ter!).
E tem o gosto pela natureza, pelos animais, pelo humor fino, pela leitura, por estudar a Bíblia com humildade e sentimento, por tirar lições das coisas pequeninas e detalhes humanos. Tem a voz, a barriga “quebrada”, a canela fina, a timidez, a tendência dramática... tantas coisas que ficaria cansativo listar aqui. Coisas que é a figura dela, a da minha mãe, que me trouxeram e que não existiam no meu amado pai, com quem eu queria tanto parecer. Bom descobrir isso! Melhor ainda é ouvi-la dizer ao telefone: “hoje te sinto muito mais minha filha do que quando você estava aqui”. Ou seja, nossa descoberta é mútua!
Há coisas que obedecem à voz do sangue, que nos atam nos laços familiares, que estão marcados lá dentro de nossas células, no DNA, e que, queiramos ou não, nos programam para sermos semelhantes aos nossos antepassados. Para reforçar há o que adquirimos com o convívio e um determinante extremamente forte, embora às vezes desconhecido de nós mesmos: o poder do amor que prende nossa alma ao ser que nos gera.
Refletir sobre isso reacende em mim a esperança no ser humano.
Todos os dias convivo com pessoas que relatam casos tristes: mulheres que são espancadas pelos maridos, bebês morrendo de subnutrição gritante porque o pai se recusa a lhes dar alimentos, pessoas que matam o cônjuge, homens inescrupulosos que se aproveitam da ingenuidade alheia para lhes tirar todo o dinheiro, outros que já pagaram sua pena mas que continuam presos naquele inferno que é a penitenciária estadual, mães pedindo para que seus filhos fiquem na FEBEM para não vê-los mortos, e tantas outras coisas deprimentes. Nos jornais e revistas a violência também está estampada, e ninguém já nem se com notícias como: “Zé-Tinhoso matou mais uma vítima, estrangulando-a e em seguida disparando vinte tiros, desferindo duzentas facadas, arrancando-lhe os olhos, dois dedos, três braços e quatro estômagos.”
No entanto a Bíblia ainda diz que eu, você e Zé-Tinhoso fomos criados à imagem e semelhança de Deus. O amor deste Ser Supremo que nos gerou, continua com a mesma intensidade, embora nós tenhamos nos degradado tanto por causa do pecado. A humanidade, embora doente e corrompida, foi resgatada pelo preço do sangue de Cristo para que tivéssemos direito de continuar vinculados a Deus como filhos dEle. (Romanos 8:15-17 ). Ao olhar para nós, Deus não vê o que o quanto o pecado nos desfigurou, mas acha os traços dos Seu próprio Filho: por que nós não deveríamos fazer o mesmo? E olhando por este olhar do Pai é que devemos ver cada irmão nosso, cada criatura que ferimos ou que nos fere, cada ser miserável que ainda não descobriu que ele pode ser mais semelhante a Jesus.
Concluo com uma pequena citação da escritora Ellen G. White, no livro O desejado de Todas as Nações, página327:
“Uma bela ilustração das relações de Cristo para com Seu povo, encontrava-se nas leis dadas a Israel. Quando, em virtude da pobreza, um hebreu se via forçado a abrir mão do seu patrimônio, e a vender-se como escravo, o dever de resgatá-lo a eles e a sua herança, recaía no parente mais chegado (Levítico 25:25, 47-49). Assim a obra de redimir a nós e a nossa herança, perdida por causa do pecado, recaiu sobre Aquele que nos é “parente chegado”. Foi para resgatar-nos que Ele Se tornou nosso parente. Mais chegado que o pai, mãe, irmão, amigo ou noivo ;e o Senhor nosso Salvador. “Não temas”, diz Ele, “porque Eu te remi; chamei-te pelo teu nome, tu és meu”
Cristo ama os seres celestiais, que Lhe circundam o trono; mas quem explicará o grande amor com que nos tem amado? Não o podemos compreender, mas podemos sabê-lo real em nossa própria vida. E se mantermos para com Ele relações de parentesco, com que ternura devemos olhar os que são irmãos e irmãs de nosso Senhor! Não devemos estar prontos a reconhecer as responsabilidades de nosso divino parentesco? Adotados na família de Deus, não devemos honrar a nosso Pai e nossos parentes?”
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

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