domingo, 24 de setembro de 2000

E Deus criou o ódio.

“Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” Gên. 3:15.

Há cerca de um mês recebi, emocionada, uma caixa enorme de uns cem quilos. Bem, talvez menos, mas foi o que me pareceu pesar enquanto eu a levava para dentro do meu quarto. Nela estavam parte dos meus livros amados que eu tinha deixado em Natal quando parti, para não dar problema com excesso de bagagem. Abri a caixa e cada um que eu pegava era um suspiro e um abraço... passei um bom tempo matando a saudade deles quando me dei conta de uma coisa horrível! Dentre os livros que eu deixara separados para que minha mãe me enviasse, estava um, que é o meu preferido, minha relíquia mais preciosa, e foi justamente esse que ela esqueceu de colocar na caixa... meu “O Grande Conflito” de 1978, que pertenceu a duas pessoas antes de mim, uma delas um tio falecido, que não era adventista mas dizia ser esse, seu livro preferido depois da Bíblia.
Desalentada, liguei para minha mãe e mencionei o fato, mas acho que ela nem percebeu. No momento, ela ainda estava sob o impacto do seu próprio grande conflito, que, ansiosa, passou a me relatar.
Meus pais separaram-se há mais ou menos 6 anos, e meu pai passou então a conviver maritalmente com outra mulher. Acontece que, finda a paixão inicial e vindo a primeira filha, o relacionamento deles começou a ter dificuldades, até que meu pai saiu de casa novamente e foi morar sozinho. Mas arranjou uma namorada... uma garota de vinte anos, sem muitos atrativos físicos ou intelectuais, mas com uma característica importante o suficiente para conquistar um homem: carinhosa. Minha pequena irmã, no entanto, passou a apresentar sérios problemas devido à falta dele, e então, vencido pelo instinto paterno e na tentativa de acertar ao menos um pouco as coisas, ele voltou para a casa de sua segunda mulher, para tristeza da sua namorada.
Minha mãe sempre reagiu quase indiferentemente às atitudes de Don Juan do meu velho e amado pai (pelo menos era o que ela expressava). Mas naquele dia, quando preparava-se para sair para a igreja, D. Lindalva teve de reagir e tomar uma posição.
Sabrina, minha irmã mais nova, atendeu à porta uma garota que insistia para falar com minha mãe e foi chamá-la. Vestindo-se apressadamente, D. Lindalva vai até o portão e dá de cara com aquela menininha franzina, morena, minguada, com o olhar inseguro pelo nervosismo reforçando seus traços infantis. Era a namorada de meu pai. Depois de se apresentar e dizer que viera falar com minha mãe porque lhe disseram que ela era uma pessoa boa, e teve esperança que seria entendida, não controlou-se e começou a chorar.
Minha mãe a conduziu até a sala e lá chegando a garota se descontrolou ainda mais. Chorando convulsivamente, ela dizia:
- Por que a senhora deixou ele voltar pra a outra, por quê??? Ela vai acabar com a vida dele, ela quer se vingar dele e disse pra todo mundo que vai deixá-lo na pior! Eu o amo e quero vê-lo feliz, mas com ela ele nunca vai ser! Ele me falou que quer ficar comigo mesmo assim, mas eu disse a ele que não aceito porque ele voltou para aquela (...). Se ele tivesse voltado pra senhora eu não diria nada, porque a senhora é boa e é a esposa dele, mas para aquelazinha...
Minha mãe estava quase catatônica. Ela estava ali, na sala da sua casa, com a amante do homem que, para todos os efeitos, foi e é seu marido. E mais. Estava ouvindo da pequena que se ele tivesse voltado para a sua legítima esposa estaria tudo bem, porque poderia continuar exercendo sua função de amante numa boa, sabendo que não estaria concorrendo com outra amante, seria apenas o “complemento” da esposa. O pior? O pranto daquela garota era tão sincero, tão verdadeiro que comoveu minha mãe. E agora ela estava ali, na sala de sua casa, consolando a amante de seu marido. Dando-lhe conselhos e olhando-a como a uma filha, mesmo abominando as coisas más que aquela criatura tinha o potencial de fazer. Teve até vontade de abraçá-la, tamanha compaixão teve dela, mas limitou-se a falar-lhe longamente sobre o amor de Deus até que a garota parou de chorar e a olhava compenetrada.
- Bem, eu já vou embora – disse a namorada de meu pai – desculpa ter vindo aqui...
- Você não tem o que se desculpar. Esta conversa serviu para alguma coisa? Perguntou minha mãe.
- Sim, sim, com certeza! Eu estava muito angustiada quando cheguei aqui, agora estou em paz...
E minha mãe sorria aquele riso confuso ao telefone, falando para mim que não entendia porquê entre tantos seres humanos, justamente ela tinha que ser o instrumento para mostrar o amor de Deus àquela menina. Justamente ela, D. Lindalva (que detesta o tratamento de Dona), tinha que passar por aquela situação constragedora.. ela, que tem motivos de sobra para odiar o adultério, naquele momento teve um sincero amor maternal pela amante de seu marido.
E eu me emocionei com as coisas que essa atitude dela revelou: primeiramente que ela é um ser especial e um instrumento abençoado para transmitir o amor do Pai, acima de suas próprias vontades, egoísmos, mágoas, com uma sublime capacidade de perdoar – que talvez até então ela mesma desconhecesse. Segundo, que aquela menina não teria descoberto o amor de Deus de maneira mais eficaz em sua vida por outra pessoa, pois a atitude de minha mãe talvez tenha lhe revelado a força de um amor que até então ela desconhecia. E terceiro, com a atitude de minha mãe, eu enfim descobri um sentido forte, pessoal e até então desconhecido para aquela velha frase de púlpito: “Deus odeia o pecado mas ama o pecador”, mostrando que não só Deus, mas também nós somos capazes de fazê-lo.
Depois do homem e da mulher, houve ainda uma coisa que Deus criou no Éden: o ódio. Tendo o pecado atingido de forma fatal a raça humana, Deus providenciou que este sentimento brotasse no ser humano com uma direção bem definida: o próprio pecado.
Voltei esta semana ao Grande Conflito (mais uma vantagem da internet, que me deu o livro sem, infelizmente, me dar as páginas amareladas, sublinhadas e roídas de traça do meu exemplar) e notei uma parte em que a escritora Ellen G. White, comentando sobre o momento em que Deus pôs a inimizade na raça humana, escreve, inspirada pelo Espírito Santo:
“Deus declara: “Porei inimizade.” Esta inimizade não é entretida naturalmente. Quando o homem transgrediu a lei divina, sua natureza se tornou má, e ele ficou em harmonia com Satanás, e não em desacordo com ele. Não existe, por natureza, nenhuma inimizade entre o homem pecador e o originador do pecado. Ambos se tornaram malignos pela apostasia. O apóstata nunca está em sossego, exceto quando obtém simpatia e apoio, induzindo outros a lhe seguir o exemplo. Por este motivo os anjos decaídos e os homens ímpios se unem em desesperada união. Se Deus não Se houvesse interposto de maneira especial, Satanás e o homem teriam entrado em aliança contra o Céu; e, ao invés de alimentar inimizade contra Satanás, toda a família humana se teria unido em oposição a Deus.
É a graça que Cristo implanta na alma, que cria no homem a inimizade contra Satanás. Sem esta graça que converte, e este poder renovador, o homem continuaria cativo de Satanás, como servo sempre pronto a executar-lhe as ordens. Mas o novo princípio na alma cria o conflito onde até então houvera paz. O poder que Cristo comunica, habilita o homem a resistir ao tirano e usurpador. Quem quer que se ache a aborrecer o pecado em lugar de o amar, que resista a essas paixões que têm dominado interiormente e as vença, evidencia a operação de um princípio inteiramente de cima.
No coração não regenerado há amor ao pecado e disposição para acariciá-lo e desculpá-lo. No coração renovado há ódio e decidida resistência ao pecado.[1]
Portanto, é para isso que existe o ódio: para investir contra o pecado e não contra os homens pecadores. Deveríamos lembrar disso todas as vezes que nos sentíssemos tentados a odiar alguém. O pecado certamente levaria o homem a uma tendência para o mal, mas esse sentimento específico, que faz aborrecer com ardor, com uma intensidade enorme e uma repulsa insuportável, foi criado por Deus para, quando em comunhão com Ele, detestarmos o pecado. Satanás se aproveita desse sentimento e segue “semeando ódios, rivalidade, contenda, sedição, assassínio”, nos dando motivos para odiarmos uns aos outros, dirigirmos a força do ódio aos pecadores, que são seres falhos, mas acima de tudo são filhos de Deus e merecem ser amados como Cristo os amou.
Enquanto perdemos tanto tempo, espiritualidade e mucosa estomacal alimentando mágoas odiosas contra nossos inimigos e aqueles que nos ofenderam, Satanás regozija, feliz por desvirtuar o plano de Deus para nós e para o sentimento de ódio. Quando desaprendemos a perdoar, fechamos as portas ao Espírito Santo e deixamos de ser canais de salvação pelo amor de Deus, para sermos instrumentos do Maligno para a perdição de almas – inclusive a nossa própria, visto que tal mácula não poderá manchar o caráter do ser que pretende entrar no Céu.
Atualmente, há pouca inimizade contra Satanás e suas obras e muita inimizade entre aqueles que um dia se propuseram a ser imitadores de Cristo. Que no decorrer desta semana tornemos por hábito lembrar que nossos alvos devem se elevar até a altura do caráter de Jesus e coloquemos em prática as palavras de Victor Hugo: “Eu jamais me rebaixarei fazendo com que os homens me façam odiá-los”.
Uma semana feliz e iluminada!!

Lux Lunae

[1] WHITE, Ellen G. O Grande Conflito. Cap. 30 - O Pior Inimigo do Homem ,e Como Vencê-lo. São Paulo: CASA Publicadora. p. 505 – 510.
Você pode fazer o download desse livro, inteiramente grátis no endereço www.advir.com/sermões, no link Livros de EGW.

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