domingo, 3 de setembro de 2000

Proteção e posse: um dueto

"Porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei; pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome" Salmo 91: 14

A segunda-feira, amanhã, trará rostos mais animados, pessoas mais sorridentes, conversas mais empolgadas... aproxima-se o feriadão!! 7 de Setembro é dia de comemorar, mesmo que não seja necessariamente a “Independência” do Brasil (comemorar-se-ía?). Para os que, como eu, ainda não traçaram planos de fuga para o próximo fim-de-semana prolongado, ou para os que pretendem apenas passar o máximo de tempo fazendo o mínimo possível, sugiro este passatempo:

JOGO DOS CINCO ERROS
O que há de errado nas cinco frases a seguir (excetuando-se alguma provável afronta gramatical)?
1. Senhor, protege-me durante a viagem.
2. Mamãe, proteja-me dos(as) namorados(as) que a senhora acha que me farão sofrer.
3. Meu amado marido, corra aqui!! Veja! Uma barata! Proteja-me!!
4. Minha amada esposa, proteja meu estômago: não use mais este azeite de dendê para cozinhar, tá bom?
5. Luciana, proteja seus livros das traças.

J Se a sua curiosidade não permitir esperar até o fim do feriadão, pode olhar a resposta a seguir.
Todas as frases contém o mesmo erro: são redundantes. O pedido de proteção é totalmente dispensável pois é dirigido a um ser que ama a coisa ou pessoa a ser protegida. Nestes casos, quem pede a proteção, quer mesmo ouvir a (re)afirmação deste amor.
Parece evidente, mas eu só vim reparar na prescindibilidade dessa redundância há algumas semana quando o carro de uma pessoa muito querida veio a sofrer pela segunda vez em pouco mais de um mês, sérias avarias. Um tanto quanto chateada, eu lhe sugeri que fizesse uma oração sempre antes de sair no carro! Ao que a mais que estimada pessoa me respondeu:
- E é Deus acaso um amuleto, como um pé-de-coelho ou uma fitinha de Nosso Senhor do Bomfim? Acaso Ele tem de ser lembrado de me proteger, só é acessível por uma oração ritualística que tem o objetivo de pedir a Ele a proteção que Ele já me dá como Ser que me ama? E se eu estiver pedindo algo que na verdade Ele quer permitir que aconteça por um motivo que só Ele sabe? Por que minha confiança nEle tem de estar condicionada a um ato meu, quando é pelos méritos do amor dEle que sou protegido?
Calei-me meditando nessas palavras e só pude vir a concordar. Entre os seres que se amam não se fala em proteção isolada, pois ela está contida no próprio amor, como consequência deste. Acontece que em nossa mente a proteção está muitíssimo associada à posse, assim, quando pedimos para ser protegidos por alguém que sabemos que nos ama, estamos apenas afirmando de alguma maneira que somos possuídos pelo amor àquela pessoa. Portanto o que realmente diz a oração de alguém que diz: “Senhor, protege-me durante a viagem” é “Senhor, lembra que Teu amor me possui, portanto cuida de mim!”, o que soa até ingênuo pois não precisamos lembrar a Deus disso, só queremos, no fundo, nos sentir mais seguros afirmando o que já sabemos.
Passei a me perguntar se eu não amadureceria muito mais se passasse simplesmente a confiar nEsta proteção divina e parasse de tentar dizer a Ele como deve me proteger. Pois na verdade quando dirijo a Ele um pedido específico sobre proteger-me, estou na verdade falando-Lhe do que EU acho que seja o melhor para mim. Mas a visão de Deus vai muito mais além, e o que eu mais temo que me aconteça, pode ser exatamente o que Ele quer permitir acontecer para que eu chegue mais perto dELe. E como um Pai que deixa o filho correr livre pelo parque, sem no entanto desviar o olhar de cima dele um segundo, Ele nos dá a liberdade de tomar decisões, que podem nos levar a grandes conquistas ou tombos homéricos. Em ambos os casos, Seus braços estarão sempre por perto, seja para partilhar a alegria de uma vitória ou chorar a dor de um fracasso. Como bom Pai e Pastor, Deus está muito mais interessado em nos orientar suficientemente para enfrentarmos as dificuldades, problemas e maldades do mundo e com isso moldarmos nosso caráter à semelhança do dEle, do que nos proteger em uma redoma feita por nossas próprias mãos.
Por fim, há ainda uma consequência bem interessantes do dueto proteção-posse.
Quando na relação com Deus deixou de haver amor, e agora só reina o legalismo, o ser não mais sente necessidade de ser protegido, mas de proteger a Deus. Isso por que se não há amor, nenhum ser se deixa possuir, antes desenvolve um inevitável desejo de poder. A pessoa que deixou de desejar ser possuída pelo amor de Deus, passa mais ou menos inconscientemente, a desejar possuir Deus. E isso ela faz se colocando no lugar de Deus: sentir-se como Deus satisfará seu desejo de poder. O sinal claro de uma pessoa que assumiu essa triste condição é a expressão da posse pela necessidade de “proteger Deus”. Passa a ser um exímio acusador de todos os irmãos que não se portam com a devida reverência, santidade, modéstia cristã, testemunho, mordomia, etc, etc... dá ares de calamidade a quebra de qualquer regra, praxe, detalhe litúrgico que seja, e está sempre a criticar a vida dos “pecadores” que teimam em afrontar a Deus com seus erros incorrigíveis, sem aperceberem-se que Deus não precisa ser protegido! E assim seguem os “protetores de Deus” , juizes poderosos, doutores em como possuir a essência divina da onipotência.
Numa frase, ao menos, eu concordo com Jung: “onde o amor domina não há desejo de poder. Onde o poder domina, falta amor. Um é a sombra do outro.” Que possamos ser dominados pelo amor, que se deixa possuir, que é protegido pela simples certeza de existir, que está seguro pela fé da sua força uma vez sentida. Que o amor impere por sobre o desejo de posse e que possamos confiar cada vez mais na sua força protetora, nos deixarmos levar, guiados pela força de suas muitas águas até a Fonte de todo amor.
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

Um comentário:

Luciana Teixeira disse...

Na época esse texto foi bastante qurstionado, e hoje eu o questiono também. Não vejo mais o pedir como ingenuidadem nas como uma madura expressão de fé.