domingo, 27 de agosto de 2000

Um lugar seguro

“Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra.” Salmos 121: 1, 2

Programa típico de paulista para sábado à noite: shopping. E lá estávamos os três sentados numa praça de alimentação de um shopping onde, surpreendentemente, havia vagas no estacionamento. Ainda que não seja o tipo se lugar onde eu me sinta muito bem, me satisfazia com o fato de ser ao menos um bom lugar para observar o comportamento das pessoas.
Na mesa ao lado um casal tentava manter um garotinho quieto, e ele por sua vez tratava de não deixar a comida quieta, fazendo-a voar alegremente pelos arredores. Mais à frente uma loja de decoração onde eu seria capaz de passar horas a fio, mostrava em sua vitrine um crucifixo de prata confeccionado no estilo art noveau, muito lindo. Do meu lado, meu namorado a quem eu acariciava a mão carinhosamente, na minha frente um de-li-ci-o-so beirute que eu degustava com prazer indescritível. E do outro lado da mesa, estava ele, a quem estimo mais do que o desejo de ser sua cunhada possa convencionar, pois desde algum tempo passei a admirá-lo por um conjunto de qualidades que o faz uma pessoa muito especial. Não sei o que deu neles, mas neste dia os dois estavam particularmente sensíveis, de defesas baixas e bem sentimentais. Eu sorria por dentro admirando o momento histórico e ouvia a conversa atentamente, quando o assunto pendeu para a confiança em Deus. Os olhos dele, do outro lado da mesa, adquiriram então um brilho fascinante, prendendo os meus, e sua expressão ganhou uma solenidade irradiante.
- Vou contar para você uma história que eu gosto de contar para aqueles que são capazes de entender o que é confiança em Deus. – disse ele , começando a narrativa- Eu estava morando no sul da Alemanha, um lugar lindo. Abria minha janela de manhã e via um imenso vale verde, cheio de flores, animais pastando, montanhas grandiosas no horizonte... uma paisagem como aquelas que só se vê em quadro do século passado. Certo dia, eu, que já vinha observando aquela cadeia de montanhas há algum tempo, decidi que iria explorá-las percorrendo as trilhas que levam até o pico da sétima montanha. Preparei-me, peguei o material necessário, fui com o carro até o início da trilha e comecei a aventura.
O garotinho da mesa ao lado acabara de fazer uma batatinha frita aterrissar perto do meu pé, mas eu já não lhe dava atenção; minha mente se direcionava para o que ele acabara de falar. “Previsível”, pensei. Já havia observado várias fotos dele e da sua família escalando rochas, montanhas, desbravando trilhas... enfim, não me tinha passado de largo o seu instinto de águia, que nasceu para as alturas. Seu gosto pela aventura nas montanhas é o mais fiel reflexo de sua personalidade: enfrentar os riscos pela ânsia de chegar, alçar vôos que o elevem para além dos limites ordinários, ampliar a visão de sua capacidade pela conquista de novas paisagens. Dei a última mordida no Beirute, que estranhamente perdeu seu sabor, reparei mais uma vez no crucifixo de prata, acariciei mais intensamente a mão de meu namorado, mas continuava presa aos seus olhos, agora cheios de uma solenidade mais densa.
- Quando eu iniciei o percurso o céu estava de um azul encantador e o sol banhava toda a paisagem em redor. O caminho era difícil, pedregoso, por vezes íngreme, mas eu continuava num ritmo compassado e meu espírito elevava-se também à medida que eu subia. Foi quando, tendo acabado de subir a quinta montanha, olho para trás e vejo uma cena aterradora: nuvens escuras e ameaçadoras formaram-se muito rapidamente enquanto eu escalava, e eu sabia que pela forma com que se punham, muito provavelmente eu enfrentaria uma tempestade. Mas uma tempestade, ali, naquele lugar arriscado e vazio? Parei um instante e orei: “Senhor, houve um servo Teu, o qual também atendia por meu nome, que um dia pediu que a chuva não caísse sobre a terra durante sete anos. Eu não Te peço que o faças nem por sete anos nem mesmo por sete horas, apenas Te peço que me leves para um lugar seguro.” Prossegui a caminhada e subi sem muita apreensão as duas últimas montanhas. Chegando ao cume da imponente sétima montanha, me dirigi até os pés de uma cruz de madeira que estava fincada sobre as rochas. Atrás da cruz, dentro de uma lata e enrolado dentro de um plástico, estava um caderno onde se registra o nome de todos que por ali passam. Escrevi meu nome, devolvi o caderno à lata e o guardei aos pés da cruz. O céu veio abaixo!
Esta sua última frase foi dita com a força de uma lembrança viva e de uma emoção ainda mais viva. Estremeci ligeiramente, e instintivamente olhei pela última vez para o crucifixo de prata na vitrine da loja. Meus olhos prenderam-se total e definitivamente aos dele, onde o brilho dera lugar ao que não consigo descrever com outro termo, senão os olhos de ressaca descritos por Machado de Assis: “com uma força que arrastava para dentro como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca”. Minha mão prendeu-se à mão de meu namorado e eu permaneci segura a ela enquanto ele continuava.
- A chuva e o vento forte que se precipitou sobre a montanha não me permitiu ir muito longe ou escolher cuidadosamente um lugar. Sentei-me numa rocha próxima, ao lado de um pequeno arbusto, abri um guarda-chuva para proteger-me da água gelada e contemplei a fúria daquele espetáculo. Sentado onde estava , contemplava logo por trás do pequeno arbusto, um enorme precipício... a neve costuma abrir fendas na rocha daquelas montanhas, cortando-as de cima a baixo e formando estes precipícios de altura vertiginosa. Mas não era só a altura a que eu me sentia sujeito a cair que me aterrorizava, todos a natureza parecia compelida a me assombrar. O vento era violentamente impelido contra o precipício, fazendo com que a chuva viesse de baixo para cima e arremessasse elementos indistinguíveis sobre mim... do outro lado, eu via as rochas da montanhas rolarem montanha abaixo, soltas pela força da tempestade, e eu aguardava desesperado a hora em que uma delas me jogaria contra o precipício. Meu rosto contorceu-se de revolta e durante meia hora eu levantei minha voz em brado indignado contra Deus: “Eu não te pedi nenhum grande milagre, apenas que me conduzisses para um lugar seguro! Apenas isso! Sei que és capaz de muito mais, mas não atendesses a uma simples oração que seria capaz de salvar-me a vida!!! Esta tempestade não fará diferença depois que passar, mas e a minha vida? Faz ela alguma diferença para Ti? Importa alguma coisa para Ti que eu viva? Onde estás que não me vês, antes me ignoras no momento em que mais preciso de Ti?” E assim continuei, exaltadamente, até que a chuva passou...
Respirei. Minha memória levou-me até o clamor de Davi: "Rejeita o Senhor para sempre? Cessou perpetuamente Sua graça? Esqueceu-se Deus de ser benigno?"(Salmo 77).
Pude ainda sentir a mão de meu namorado roçar levemente sobre a minha antes de desligar-me de todas as sensações e deixar-me absorver pelos olhos dele que agora continuavam a me prender por uma doçura sacra e sublime.
- Foi somente depois da tempestade que pude analisar e perceber melhor a situação em que eu me encontrava. A calma contrastava com a desordem do lugar, em seus sinais de grandiosa turbulência. Constrangido, cheguei a uma conclusão: Deus atendera minha oração, Ele me levara até um lugar seguro. Reparei que a rocha onde eu me assentara era de fato o melhor lugar para abrigar-se ali, pois estava em um ângulo em que de forma alguma seria atingida pelas outras rochas que rolavam do alto da montanha, e o pequeno arbusto que estava ao meu lado era na verdade forte como uma muralha de aço, pois a vegetação daquele lugar desenvolve uma resistência natural ao vento, que os faz extremamente rígidos e inamovíveis. Ainda que eu me atirasse sobre o precipício, aquele arbusto estava de tal modo colocado que eu ficaria seguramente preso a ele. Dirigi nova oração a Deus, pedindo-lhe perdão por minha falta de fé, por minha visão limitada e meu desespero que me impedira de ver Sua providência... mas ainda estava muito emocionado pelo medo. As trilhas poderiam estar muito danificadas e o terrenos estava sujeito a avalanches. Confessei-me fraco e pela primeira vez em minha vida pedi a Ele um sinal de que poderia voltar seguro para casa: “Senhor Misericordioso, eu só descerei a montanha se Tu me deres um sinal e fizeres com que essas nuvens dêem lugar aos raios do sol.” Esperei mais meia hora e vi um raio de sol penetrar os densos cúmulos indo incidir sobre uma montanha ao longe. Insisti: “Senhor, para mim este ainda não é o sinal, me mostra de maneira mais clara que Tu estás comigo!”. No mesmo momento, as nuvens abriram-se em cima de mim e um feixe luminoso do sol atingiu-me diretamente, como se os olhos de Deus enfocassem o meu ser. “Agora sim, Pai, eu irei seguro”.
Neste ponto nossos olhos estavam tão cúmplices que eu senti-me banhar nas lágrimas que começaram a brotar naquele olhar. Emocionei-me especialmente por identificar aquela experiência com a minha própria caminhada cristã. Como é duro, íngreme e pedregoso o caminho que leva até a cruz no alto da montanha! Mas prosseguimos, sem desanimar, confiantes, mesmo que às vezes essa confiança esteja depositada sobre nossos próprios méritos. É porém quando sentimos a glória de termos chegado no cume da montanha, no auge de nossa estabilidade religiosa, quando achamos que não temos nada mais a aprender porque já estamos seguros de que nossa fé está estabelecida, concluída, conquistada (e registrada no livro de membros da Igreja), vem a tempestade... que agonizante é sentir que tudo ao redor desaba e se abala frente a nossa inerte impotência! Que humilhante é reconhecer que ainda há um longo caminho a ser percorrido e nossa fé e segurança não estão protegidas por nossa auto-suficiência! Quão desesperados ficamos ao percebermos que não conseguimos sentir Deus tão perto quanto gostaríamos - e poderíamos ter aprendido a sentir... mas Ele está ali para nos dar a segurança de que precisamos e fazer-se conhecer como Senhor de nossa existência, como Rei Protetor de nosso caminho. Ele está bem perto para provar-nos que Ele não abandona seus filhos, antes lhes está provendo um lugar seguro na tribulação, e a vitória, que é dada ao que deposita a confiança em Suas mãos.
É... meus princípios anti-capitalistas que silenciem, mas foi num shopping que eu ouvi ser proferido, com poder, o testemunho mais forte que já ouvi.
Uma semana Feliz e iluminada!

Lux Lunae

Ps.: experimentei revisar o texto ao mesmo tempo que ouvia ária de baixo “For behold darkness shall cover the earth”, do “Messias” de Haendel, que já estava mesmo na minha cabeça enquanto eu escrevia o final do texto... gente, só posso dizer que foi uma das coisas mais emocionantes que já senti. Vai como sugestão.

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