domingo, 6 de agosto de 2000

Dos rótulos

“Senhor, tu me sondas e me conheces.” Salmo 139:1

Dez meses de uma feliz amizade e chegamos à conclusão que o namoro seria uma ótima opção para nos tornar ainda mais felizes. Como estávamos enfrentando uma série de barreiras, esta decisão foi cautelosa e um pouquinho demorada, até estarmos seguros que o alicerce estava bem firme... . Durante este tempo de “preparação do terreno”, por algumas vezes ele me perguntou se tal situação – estar ciente de meus sentimentos e dos dele e não poder expressá-los publicamente – não me incomodava. Eu respondia sempre que o importante eram exatamente os nossos sentimentos, e não o rótulo que nos descreveria frente às pessoas. No dia em que, finalmente, sentimos que havia chegado a hora de assumir o namoro oficialmente, eu demonstrei tamanha alegria, euforia e felicidade que ele me perguntou: “Será mesmo que os rótulos não são importantes?...”. Na hora fiquei tão encabulada que respondi qualquer coisa com ares de desculpa esfarrapada, mas hoje, repensando o episódio, acho que lhe responderia: “rótulos não são ruins, desde que não enganem quanto ao conteúdo!”, e minha felicidade traduzia justamente o saber que no nosso caso, o rótulo ainda era insuficiente para descrever a qualidade do conteúdo, hehehe.
Relembrei este episódio enquanto me dirigia para o primeiro dia no meu primeiro emprego (na verdade, quase isso.. um estágio) aqui em São Paulo. Eu percebi que meu andar estava diferente, mais firme, minha postura mais confiante, olhei-me no espelho e me achei até mais bonita e a explicação para isso era óbvia: agora eu tinha uma função... um rótulo! Passei a meditar na importância que as pessoas dão aos rótulos, como se fossem eles, e não elas próprias, que demonstrassem sua capacidade como seres humanos.
Lembrei de um fato constrangedor acontecido em certa escola sabatina. O professor perguntava à classe, o emprego de cada membro, com o fim de fazer uma analogia entre a diversidade de funções e a diversidade de dons. Certa senhora no entanto, permaneceu calada quando chegou a sua vez, e era visível como estava incomodada, constrangida, perturbada. Depois de alguns instantes, o professor, com muita habilidade e gentileza, descobriu que ela era uma dona-de-casa...o fato de não ter o rótulo de um emprego em meio a uma classe cheia de professores, engenheiros, pastores, contadores, secretários, etc, abateu visivelmente aquela mulher, ainda que várias pessoas lhe dissessem que ser dona-de-casa é uma bonita e importante função. Esse incidente por sua vez, me fez lembrar de outra certa dona-de-casa, a senhora Brown, que ao também ser perguntada sobre o que fazia da vida, respondeu satisfeita: “Exploro o desconhecido”. A diferença marcante entre as duas mulheres está que a última renova sua satisfação, no ato de descobrir novas facetas sobre sua capacidade, está livre para ir além dos limites. A primeira é dependente de uma função para revelar sua capacidade, para sentir que existe, para afirmar-se, enfim, tornou-se escrava dos rótulos pois se apoia neles para mostrar sua personalidade.
Mas afinal, quais as causas e consequências da dependência de funções rotulatórias? Analise comigo a vida de Tribufólio Cunegundes.
Tribufólio era um jovem, cristão novo, adventista convicto, tímido porém muito dado a realização do bem pelos outros. A profissão de Tribufólio... bem, digamos que ele era um olhador de nuvens sem responsabilidade meteorológica. Embora introvertido, ele gostava de lidar pessoalmente com as pessoas, seu problema estava apenas em encarar grandes grupos. Sabia dar estudos bíblicos e conduzir facilmente as pessoas a tomar decisões, pois era um observador detalhista das necessidades de seus estudantes. Também sabia cozinhar e quando ia preparar sua comida sempre fazia algo para oferecer aos vizinhos, que lhe tinham grande estima e respeito. Os que o conheciam o olhavam como um rapaz prestativo, íntegro, sensível às dores alheias, discreto e digno de confiança. Mas Tribufólio não estava satisfeito. Ele no fundo sabia que era inteligente e possuía muitas qualidades, mas ninguém parecia valorizá-lo por isso! Ele se sentia só mais alguém na multidão, sem nada de concreto que pudesse mostrar às pessoas o quanto ele era especial. Começou então por realizar um projeto profissional: se tornar um advogado, para que todos pudessem reconhecer seu valor na ajuda às causas alheias, dos desfavorecidos e necessitados. Fez, ou melhor, sofreu um curso de oratória e passou a dedicar-se a aprender técnicas que o fizessem expressar com eloquência sua idéias. Suando em bagas, pediu ao ancião uma oportunidade para pregar, num culto de quarta-feira de cinzas em que metade da igreja estava num acampamento e a outra metade não era a mais assídua... enquanto isso estagiava num escritório de advocacia para pegar todas as manhas da profissão, e por vezes , decepcionado, constatava que seria um pouco difícil manter seu ideal de justiça e integridade para ajudar as pessoas... Em poucos anos, Tribufólio se tornou o “doutor Cunegundes”, ancião da sua igreja e um advogado especializado em Direito Internacional, trabalhando em uma poderosa empresa do bloco Mercosul, afinal, ajudar as pessoas seria afundar no Direito das massas que em nada compensa. Como ancião cheio de problemas administrativos para resolver, não tinha mais tempo para dar estudos bíblicos, muito embora mantivesse, como alívio de consciência, sua pasta de sermões sempre atualizada. Estava consciente que não pregava tão bem quanto fazia o evangelismo pessoal, mas muitas pessoas o cumprimentavam dizendo que seus sermões era inspirados... o que Tribufólio não atentava é que ele fazia tais sermões exatamente com o intuito de agradar aos ouvidos dos que o cumprimentavam... ele necessitava desses elogios para se sentir valorizado. Triste nominalismo a que se reduziu o antigo cristianismo de Tribufólio... agora ele mantinha em dia o bonito quadro com o número de pessoas batizadas; quadro que ele mesmo escolhera combinando com a decoração da igreja, pessoas que estavam com todas as fichas batismais devidamente organizadas, preenchidas e arquivadas... e que não eram, nem sequer uma, fruto da influência dele. Como bem-sucedido homem de negócios, ele contratou uma cozinheira muito boa, mas não lembrava mais de dividir as delícias culinárias que degustava. Reformou e ampliou a casa e colocou um eficiente sistema de segurança em todos os muros – agora bem mais altos. Certo dia percebeu que esquecera o nome dos vizinhos, mas não se perturbou pois provavelmente não teria mesmo oportunidade para falar-lhes. Os que o conheciam bem agora, eram seus colegas de trabalho, que lhe cumprimentavam por sua competência profissional, sua imparcialidade, sua racionalidade e frieza para lidar com as situações propostas... o “doutor Cunegundes” sorria-lhes satisfeito, mas de vez em quando, sozinho no seu mega-escritório, sentia saudades do que já não era: um homem íntegro, prestativo, sensível e digno de confiança. Agora ele tinha os rótulos que havia sonhado... e uma úlcera no estômago.
O drama de Tribufólio se repete cotidianamente entre nós. Pessoas como ele estão sujeitas a pior condenação a que poderiam se impor: a escravidão do rótulo. Tais indivíduos vestem o rótulo como uma pele de que não podem se livrar, e que necessitam para serem supridos emocionalmente pela valorização alheia, já que não aprenderam a se auto-valorizar ou a discernir os valores mais importantes. Buscarão com ansiedade desproporcional o resultado excelente em tudo que fizerem, dando excessiva importância à situação em que o eu se exibe, afinal, é a valorização alheia que garantirá seu valor como pessoa. Se não conseguem se sobressair, sentem-se inúteis... no caso de Tribufólio, sendo um homem tímido, ele expressa sua depressão com frases de auto-compaixão, lamentos e afastamento da situação. Se fosse um tipo colérico, agrediria a situação, com palavras de orgulho, auto-afirmação, ou descarregando em cima dos outros. Tais pessoas acabarão por tonar-se pouco criativas e adequar-se ao que os outros esperam delas, entregando suas vidas e paz ao julgamento dos outros, como que lhes mendigando estima. Com o tempo, deixarão de explorar suas próprias qualidades, para desenvolver aquelas qualidades mais cotadas, mais evidentes, mais em moda, acabando por renunciar parte de si mesmo, senão a melhor parte...
Acho que não há muito que ser comentado a respeito desse insidioso mal. Felizmente temos um Deus que não mede nosso caráter pela quantidade de resultados concretos que fazemos, que não nos julga pelo consenso social, que nos identifica como almas filhas , e não pela função, profissão, nome, títulos, posições ou qualquer outro rótulo que venhamos a ter. Como muitos discípulos ao longo do tempo, talvez tenhamos até de sacrificar alguns rótulos bem quistos, em prol dos interesses do Reino...
Chegando ao escritório de advocacia, toco a campanhia mas é um som mais forte que ouço ressoar dentro de mim. E ele diz: “rótulos não são ruins desde que não enganem quanto ao conteúdo!”. Pois nada engana Aquele que nos sonda e nos conhece.
Uma semana feliz e iluminada!!

Lux Lunae

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