domingo, 13 de agosto de 2000

O paradoxo do insubstituível

“A alma farta pisa o favo de mel, mas à alma faminta todo amargo é doce” Prov. 27:7

Você pega o ônibus lotado às sete da manhã e alguém resolve pisar no seu pé, bem em cima daquela unha encravada. A dor parece subir pela garganta, passar pelas cordas vocais e querer sair numa explosão verbal nada delicada, mas você trava o impulso e retribui com um sorriso amarelo o “desculpa...” do desastrado. O celular toca e você o atende rapidamente para esquecer da dor que ainda lateja no dedo atingido. Chega ao trabalho e cumprimenta a todos com um sorriso entusiástico, mesmo aqueles a quem você é totalmente indiferente ou outros que você suporta com desprazer. Seu chefe o chama para uma pequena conversa e você sofre cada segundo da presença dele, que descarrega toneladas de cobranças, pressões , prazos, exigências em cima de você, mas seu sorriso está sempre lá, e todos os seus gestos são do mais fiel assentimento. Felizmente o celular toca mais uma vez e você tem um pretexto para encerrar a conversa. Seus colegas o chamam para almoçar num restaurante que acabou de ser inaugurado e você aceita: quase não consegue disfarçar a palidez na hora que vem a conta, mas assina o cheque sorrindo, afinal, a comida valeu a pena e foi bom estar com a turma. Voltando para o trabalho, você é chamado pelo chefe novamente que lhe dá uma advertência por você ter esquecido de apresentar um relatório, ao que você se desfaz em rogos, desculpas, perdões e promessas de que tudo será reparado e esse fato nunca mais acontecerá. Fica muito chateado consigo mesmo, e durante o caminho de volta no ônibus lotado, vai o tempo todo se culpando.
Enfim, chega em casa. Hora de tirar a máscara. Você dirige toda a sua atenção para três vontades: banho, comida, cama. Se é solteiro, procurará fugir das reclamações da mãe, que parece sempre encontrar defeito em tudo que você faz. Fica na defensiva... quando ela puxa conversa, você pensa numa saída; já suportou muito problema por hoje,não está nem um pouco a fim de pensar nas complicações que ela inventa. Então corta a conversa, dizendo bem sério que ela sempre consegue adivinhar o pior momento de lhe falar: ligou uma vez em pleno ônibus lotado, outra vez conseguiu atrapalhar uma importante reunião com o chefe, e agora não percebe o quanto você está cansado e chateado com seus próprios problemas, que não são poucos. Você não tinha intenção de magoá-la, mas acabou fazendo... enquanto ela sai de cara feia, você pensa que depois ela esquece e vai ficar bem... pelo menos você conseguiu um pouco de descanso. Seus irmãos perguntam se você comprou ou pagou algo que estava sob sua responsabilidade... “ih! Esqueci!”. Decide comprar um remédio para memória, mas não perde a chance rebater as reclamações deles e vocês acabam discutindo feio, as acusações e ironias se intensificam e no fim todos estão chateados. Você decide ir dormir, sem se preocupar em como eles estão se sentindo, afinal eles vão estar sempre ali e amanhã parecerá que nada aconteceu. Além disso, você tem coisas mais importantes para lembrar e com que gastar seu dinheiro... se você é casado, a esposa toma o papel da mãe e os filhos ficam no lugar dos irmãos.
É certo que, felizmente, existem pessoas que fazem exceção a esses acontecimentos, mas via de regra nós nos encaixamos neste modo de agir. O que faz nosso comportamento ser de um jeito com as pessoas que não conhecemos e de outro, oposto , com aquelas que estão bem próximas a nós? Por que as que significam mais em nossa vida são normalmente tratadas de forma mais rude, e acabam recebendo toda a descarga de tensão que acumulamos ao engolir os aborrecimentos das pessoas por quem não sentimos nada de especial? O que nos faz sentir tão livres para magoar a quem amamos com frequência, enquanto parecemos amordaçados na hora de reagir à injustiças de quem não nos tem nenhum sentimento profundo? Por que será que a mínima indelicadeza dos familiares, cônjuges, ou amigos com quem temos mais intimidade nos parece motivo para uma catástrofe indizível, enquanto grandes e pequenas ofensas dos indivíduos com quem travamos relação superficial são suportadas com um agonizante sorriso no rosto? A resposta para tudo isso está numa única assertiva: o amor insubstituível nos assegura que ele sempre estará lá.
Intimamente sabemos que as pessoas com quem nos relacionamos há mais tempo, com as quais partilhamos nossa intimidade e verdade estão seguramente “presas” a nós. Não precisamos conquistá-las, não há motivo para preocupação quanto ao mantê-las junto a nós: estas pessoas conhecem o que há de pior em nós e ainda assim nos aceitam plenamente, nos amam verdadeiramente e sempre nos perdoam. Sabemos que se as magoarmos, ferirmos, isso não será suficiente para diminuir o sentimento delas por nós, que excede qualquer entendimento (muito embora pouco nos preocupemos em entender o amor com que somos amados). E o que leva essas pessoas a ter um amor tão incondicional não é nenhuma tendência masoquista: elas estão sempre ao nosso lado porque nós somos INSUBTITUÍVEIS para elas, elas nos perdoam tão facilmente pois a felicidade de nossa presença supera nossa capacidade de fazê-las sofrer, elas passam além de nossos defeitos, não por causa do vínculo familiar ou do vínculo conjugal, mas pelo amor, que é o vínculo da perfeição(Col. 3:14).
Todos os outros relacionamentos são jogos de interesse em que não há segurança, apenas o cumprimento de um dever, seja ele a subordinação, a educação, a praxe. Forçamo-nos para que não apareça nossa face real, mas aquilo que queremos que as pessoas pensem de nós, até que consigamos conquistar nosso objetivo com, ou através daquela pessoa. E é assim que um namorado compreensivo e gentil pode se transformar num marido autoritário e bruto, que uma namorada doce e virtuosa pode se tornar uma esposa insolente, caprichosa e indiferente, ou ainda é assim que se explica como uma mesma pessoa pode parecer ao mundo ter qualidades que somem quando deveriam ser exercitadas justamente com os que lhe têm mais afeto. De outro modo, como se explicaria o fato de que somos capazes de varar madrugadas ouvindo e dando a maior força com os problemas e lamúrias de um amigo com quem não convivemos intimamente, mas nos impacientamos quando os que nos amam partilham sua tristeza conosco e não raro os abandonamos a sua própria capacidade de reagir, como se aquilo não tivesse nada a ver conosco? Ou, questiono-me, nos relacionamentos em que nos sentimos seguros, ostentamos veementemente a bandeira da liberdade de sermos e fazermos o que for de nossa vontade, mas engolimos quietinhos toda cobrança e imposição quando isso se nos apresenta como preço de nossas conquistas? O valor que demostramos pelo superficial por vezes supera o que demonstramos por essas pessoas, a quem só descobrimos a importância exata quando vimos a perdê-las...
Pensemos agora verticalmente. O amor com que Deus nos ama é extremamente pessoal, porque somos para Ele criaturas insubstituíveis. Quem ainda não sentiu Esse amor, regozija ao descobri-lo; quem já o provou sabe a maneira específica com que Ele se manifesta na vida do que crê. Aquele que já desvendou o real caráter do amor de Deus, que já foi perdoado e sentiu o amparo e proteção dEste Deus que, não importa quão sujos e pecadores somos, continua a nos amar fortemente...aquele que tem na sua vida o testemunho destas coisas, sabe em todo o seu ser, a todo tempo, que está seguro nas asas deste amor pelo insubstituível. Mas - infeliz paradoxo – são justamente os que já sentiram este amor, que tendem a não cultivá-lo como ele merece. Ora, sabendo-se que Deus é eterna misericórdia, que é onipresente e nunca falha quando nós falhamos, nos enchemos de uma segurança perigosa que pode nos levar para longe deste amor: o amor de Deus está sempre lá, Ele não vai perder-me de vista , então está tudo bem, não importa o que eu faça ou deixe de fazer. O que não nos apercebemos é que o amor só toca o que está na sua esfera de alcance, e embora ele exista latente no seio de quem ama, o ser amado ausente, distante e que se afasta voluntariamente mais e mais do amor, terá apenas a sua lembrança, mas não mais a sua atuação. E então virá a dor de ficar de fora de algo que parecia tão certo que nem precisava ser buscado.
Valorizemos o amor de quem nos considera insubstituíveis. O mínimo que pode acontecer é nos tornarmos menos egoístas e crescermos mais eficazmente com a experiência de amar. O auge será descobrirmos a felicidade completa, atingida quando decidimos colocar este amor acima do que não vale a pena (e isto inclui nosso eu). O máximo que irá acontecer... bem, nós temos uma eternidade inteira para descobrir...
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

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