domingo, 22 de julho de 2001

Teopoesia - Alberto

"...E o que ele, o coração, aspira, almeja
É o sonho que de lágrimas delira.
É sempre sonho e também é piedade,
Doçura, compaixão e suavidade
E graça e bem, misericórdia pura".

(Cruz e Souza – O coração)

Eu olhei uma vez mais e pisquei meus olhos com força, tornando a encará-los. Eram tão puros aqueles rios, que a água parecia feita de luz e cristal. Ao longe, eu ouvia o grasnar de pássaros, e ao meu redor tudo era verde, de uma paz quase tangível. Mas algo me disse que aquilo não poderia ser verdade, que era um sonho, e a consciência me tomou pela mão levando-me para longe, em direção aos sons estridentes dos pássaros, que ficavam cada vez mais fortes, e pareciam querer pronunciar algumas palavras:

- Tem alguém em casa?!! Abra, abra, por favor!!

Abri os olhos e não deixei de lamentar profundamente a ausência do cenário que contemplava no sonho, enquanto olhava meu quarto pedindo uma faxina. Cocei a cabeça tentando voltar em definitivo à realidade, e reconheci que os sons dos pássaros agora tomavam a forma de vozes agudas e afetadas vindas do portão. Levantei-me, vesti algo às pressas e quando cheguei lá fora, minha mãe já conversava com um
deles: Alberto.

Eu parei na porta, um pouco distante, e ouvi ele falando para minha mãe que meu primo foi encontrado por eles num matagal, violentamente espancado, com vários ferimentos graves na cabeça, inclusive uma fratura craniana, causados por armas típicas de lutadores de artes marciais, enfim, tentativa de homicídio. Alberto e seu amigo, que conheciam bem a vítima, o levaram a casa da avó materna, com quem meu
primo vive, mas a senhora teve um grande choque emocional e nada pôde fazer. Chamaram então a polícia, que o levou até o hospital público estadual, e procuraram minha mãe, que sabiam ser o familiar mais próximo.

De longe o desespero de Alberto parecia esdrúxulo. Suas lágrimas desfiguravam ainda mais o rosto maquiado grotescamente, e deslizando por um vinco junto ao nariz, vinham a cair nos lábios besuntados de batom vermelho. As mãos de Alberto se contorciam pregadas uma a outra enquanto ele falava, se abandonando apenas quando a mão direita saía ao encontro da sua mini-blusa branca, manchada de sangue, onde uma
fina alça insistia em cair-lhe dos ombros magros. Seus joelhos emanavam um ligeiro tremor que se propagava até sua saia vermelha e curta. Olhando assim, de longe, não era difícil de reparar que a história de Alberto era muito parecida à do meu primo, pois ambos viviam num mesmo submundo. Viviam? Pessoas como Alberto não vivem, atuam. Não têm outra alternativa diante da maldade que exala dos mais baixos níveis humanos, único lugar onde eles acham abrigo todas as noites. Maquiam o rosto e o espírito; quando podem, com drogas, quando não, com a ilusão de que são livres e alegres.

O choque da notícia não me fez recuar, antes me atraiu para ainda mais perto de Alberto, sem que ele reparasse em mim. Agora seu desespero parecia mais humano, pois pude observar outros vincos no seu rosto, algumas marcas no seu corpo, expressões . Em cada um desses sinais estava escrito um pecado, marcados ali com fogo e dor. Cada um reclamava para si e para aquele mundo miserável, a alma de Alberto, que já devia crer, como meu primo, que aquele era seu lugar, a prisão que lhe cabia como prêmio por ter buscado uma tal "liberdade". Involuntariamente passei as mãos pelo rosto, certificando-me das minhas próprias marcas. Há pessoas que optam por escondê-las mais a fundo, onde olhos humanos não possam chegar. Alberto as trazia estampadas...por quê? Talvez fosse sua maneira de pedir socorro. Ele vivia sorrindo e contrariando valores, mas era apenas alguém ousando pedindo socorro. Saberá ele disso?

Aquelas mãos nervosas haviam há pouco prestado socorro a um membro de minha família, que agora agonizava. Aquela mancha de sangue na blusa de Alberto, me fazia interrogar por uma humanidade inteira que agoniza, sangrando junto com o Filho de Deus. Jesus Cristo sente a dor, e espera – até quando? – o momento de estancar com Suas próprias mãos, essa ferida aberta que se tornou nossas vidas aqui, neste mundinho. Ele sabe o valor que tem sangue derramado.

Enquanto eu pensava nisso, cheguei tão perto de Alberto que os olhos dele vieram com força em minha direção. Agora, tão próximo dele, seu desespero era também o meu e de todos que simplesmente não agüentam mais. Naqueles olhos eu vi refletido o desejo comum a todo ser humano: "doçura, compaixão e suavidade, e graça, e bem, misericórdia
pura", o anseio universal pela felicidade completa. Me dei conta que esses olhos são a parte do ser humano onde estão fixos o olhos de Jesus, e Ele está assim, perto o suficiente para ver além de nosso invólucro deficiente de humanidade.

Nos olhos de Alberto que eu vi a maior de todas as nossas Esperanças...saberá ele disso? Voltando a sonhar, olhei uma vez mais e pisquei meus olhos com força, tornando a encará-los. Eram tão puros aqueles rios que a água parecia feita de luz e cristal.

Uma semana iluminada,

Luna

Um comentário:

Luciana Teixeira disse...

Não entendia que as pessoas me retornassem textos como esse dizendo "Que lindo, Luciana!". Às vezes o que nos toca é a Verdade e não a Beleza, mas nem sempre sabemos distinguir aquela sensação no peito.