segunda-feira, 16 de julho de 2001

Teopoesia - O amor inocente

Chegaram as esperadas férias de julho, e com elas uma promessa: este mês só vou ler poesias e escutar Chopin. Resolvi dar uma pausa com o Direito e outros assuntos mais graves, porque minha alma está sedenta de brandura. Como em uns versos que escrevi há
muito tempo (e nem tive o pudor de revisar):

"Não há mínima pressa em meu viver;
Quero senti-lo até meu passamento.
Vou amar sem cautela e não entristecer,
Por ter a certeza de alçar o momento.

E não me importam sombra ou amargura,
Que venham ter comigo em meu pesar.
Hei de provar do mel toda doçura,
Todas canções, amando, irei cantar.

Lenta, tempestuarei em mares de ternura,
Junto à sandice irei bailar no vento,
Na minha vida acentuar a brandura,

Pois mesmo sendo prazer e tormento,
Que junto à vida, dores transfigura,
O amor encobre todo sofrimento."

Eu ainda cria em pequenas verdades, que eram tolas, mas eram só minhas. Perde-se muito nas buscas fora de si mesmo. Agora quero tudo que houver de doce e terno. Reaprender rimas pobres para combinar "pesar" com "cantar". Dar asas ao pensamento como quem plana na brisa e, como no tempo em que escrevi este sofrível soneto, não me preocupar com nada além da minha felicidade e a de tudo mais que estiver num raio de duas vezes o diâmetro da Terra. As quatro meditações que seguirão este mês, frutos do ócio criativo, terão como tempero uma cheiro de poesia, que é a minha própria essência. São histórias reais, nem mais nem menos que a luta de pessoas que descrevem a palavra humanidade. Dou-me a liberdade de "tempestuar" em mares de ternura com a mesma energia pueril de outrora, mas agora com versos que conhecem além: o poder que o Amor – o Verdadeiro Amor – tem para encobrir todo sofrimento. Deixem-me ousar falar de Deus assim..

Luna


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O amor inocente

"Última flor do Lácio, inculta e bela,
És a um tempo, esplendor e sepultura..."


Flor era inculta e bela. Não nascera no Lácio, mas sem o saber, era lasciva. Naquele momento ela se achava a última, a pior de todas as mulheres. Tinha consciência do esplendor de sua beleza, mas se sentia sepultura: "um sepulcro caiado" diria a mãe. A mãe é quem tinha razão.

Puxou a saia um pouco mais para baixo e releu os primeiros versos daquele poema, tentando se concentrar, mas não conseguia deixar de pensar no olhos do professor de literatura percorrendo-a despudoradamente. "Droga de saia de lycra que não se ajeita!". Ela sabia que não precisava fazer a prova. Como em todos os bimestres anteriores, bastaria assinar seu nome, entregar o exame em branco e esperar o professor em frente ao carro dele. Lembrou dos olhos monstruosos daquele homem vindo em sua direção, o sorriso malicioso com um fio de saliva se destacando enquanto dizia: "boa menina...você vai tirar dez, meu amor". O estômago da garota se contraiu. "Meu amor?"

Inclinou-se um pouco mais sobre a carteira, segurando firme o lápis. Haveria de entender os próximos versos.

"... Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio da ventura e o amor sem brilho!"¹


Flor percorreu as questões que se seguiam com olhos cada vez mais desesperados, intimamente revoltada. Ela sabia que era inteligente, tinha valor. A mãe sempre lhe dissera isso: "nunca deixe que duvidem dos seus valores", mas ela não sabe em que momento ao certo deixou de acreditar em si mesma. Talvez quando percebeu que ser dotada de beleza poderia lhe trazer muitas vantagens. Ganhar cada vez mais através do seu corpo tornou-se um desafio e logo ela se acostumou com isso, todos faziam – essa parecia a lei. Foi desacreditando na beleza que havia dentro dela, em sua capacidade de amar, em sua inteligência; esses era lugares onde ninguém nunca demorava um olhar. Foi começando a duvidar de Deus e Sua justiça, porque seu mundo foi sendo invadido por maldade, interesse e corrupção. Já não conseguia se libertar de seus vícios, nem dizer não aos seus erros, e o tempo, cínico, foi fazendo ser cada vez mais fácil deixar de pensar nas coisas certas. Agora não queria mais pensar nelas. Tudo que tinha de fazer era conseguir mais prazer e diversão, enquanto a beleza ainda fosse sua aliada.

Mas agora ela se sentia estranhamente envergonhada. Lembrou dos olhares odiosos que as garotas da escola lhe lançavam, e das expressões maldosas que os meninos lhe dirigiam. Sempre conviveu com aquilo como se merecesse, como se tivesse nascido para o opróbrio – essa também parecia a lei. E sua saia parecia cada vez mais curta.

"...em que Camões chorou, no exílio amargo..."

A garota fechou os olhos tentando lembrar do significado da palavra exílio. Nada lhe vinha à mente, e as palavras se misturavam confusas: amargo, rude, doloroso – isso ela conhecia bem... "amor, a voz materna..." lembrou dos versículos que a mãe obrigava-a a memorizar quando estudavam a Bíblia juntas. Fazia muito tempo, mas as palavras ainda ecoavam em seu coração. Havia também as histórias que as professoras contavam na classe de estudos bíblicos da igreja, e houve até uma vez em que ela ganhara um prêmio, uma Bíblia azul, porque conseguira decorar um capítulo inteiro do livro de provérbios... um dos versículos dizia: "O que faz com que os retos se desviem para um mau caminho, ele mesmo cairá na cova que abriu; mas os inocentes herdarão o bem". (Provérbios 28:10). Onde estaria agora a Bíblia azul?

Mas ela tinha que lembrar o significado da palavra exílio e apertou mais os olhos; amargo, rude, doloroso, amor, a voz materna... amor... inocentes... amor sem brilho... amor sem inocência. Onde estaria agora a inocência?Haveria alguém tão inocente a ponto de amar? Tudo que ela conhecera sobre o amor foi sem brilho, vazio, egoísta e doloroso. "Olá Camões, eu também conheço o amor sem brilho". Flor não sabia quem era Camões, mas como ele, também chorou, de olhos menos apertados que seu coração. Queria ser capaz de amar de novo, com a mesma entrega inocente e completa de que foi capaz algum dia, mas como fazer isso sem se machucar? Valeria a pena, afinal? Aqui, todos só haviam procurado-a para satisfazer seus próprios interesses, para usá-la e abandoná-la quando fosse conveniente, e sempre que acreditou ter encontrado sinceridade, veio a decepção logo em seguida. Com o tempo ela aprendera também a usar as pessoas e amar coisas: era mais seguro assim... o que fazer para voltar a crer? Se a mãe estivesse ali ela lhe diria; a mãe sempre tinha razão. Mesmo quando se vestia tão mal com aquelas saias de "crente"; saias de lycra não se ajeitam.

Agora Flor estaria completamente só... não fosse a força da voz materna, vindo clara e segura em sua lembrança: "...Pois que com amor eterno te amei"... Jeremias 31:3 Flor abriu os olhos e sorriu. Sim, havia Alguém que ainda era capaz de amar, de derramar Seu sangue inocente por isso. Haveria de existir na cruz de Cristo, uma gota de sangue que lhe pertencia, lhe dando direito a uma vida melhor, a um amor como sempre quis ter junto de si. Havia Jesus, sempre tão rejeitado do seu coração rebelde, mas agora aparecendo como o único ser capaz de amar e se entregar de forma completa e inocente, como ela e ninguém mais seria capaz de fazer. Havia Deus acreditando até o último instante na beleza e importância da sua alma por inteira.

Pela primeira vez, Flor se sentiu acolhida, num mundo que só se importava em colher. E decidiu também amar e se entregar Àquele que estava esperando ansioso para transformá-la. O único interesse daquele Amor era salvá-la, e não dava mais para adiar o momento de ser feliz de verdade.

Andando em passos firmes, Flor enxugou as lágrimas e dirigiu-se até o professor. Ele tinha uma grande interrogação nos olhos e esperava dos lábios trêmulos da garota, uma palavra que demorou, demorou e não veio. Flor rasgou a prova num silêncio que dizia ao professor: "vou recomeçar". Deu as costas àquilo tudo, e seu sorriso tornou-se mais amplo. Como acontece a quem descobre que um Amor Inocente lhe salvou.


¹Língua Portuguesa, poesia de Olavo Bilac.

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