domingo, 5 de agosto de 2001

Teopoesia - Como águias

"...Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
(...) Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada."

Reinvenção - Cecília Meireles

Nada mais espantava seus olhos. Eles já haviam visto muito, conhecido além da sua vontade, e agora lhe pesava sobre as pálpebras a sabedoria do bem e do mal. Até achava que não lhe caía bem a postura de "ancião de dias", mas não podia deixar de se sentir assim. Muitos lhe tinham respeito, alguns, estima. Para todos os efeitos ele era apenas uma águia velha.

Leonardo sacudiu as penas com alguma dificuldade e tentou se firmar melhor na pedra onde pousara. Diante de si via os vales que percorrera, e tudo que vivera até aquela momento, o cenho franzido com a ansiedade solene que antecede grandes decisões.

Ele precisava de discernimento e força. Nasceu águia, e como tal, destinado para as alturas. Nunca se conformou com a mediocridade, perseguiu seus objetivos com segurança, determinação e coragem. Não obstante, aprendeu muito cedo que tudo o que viesse a ter, seria dado pelas mãos de Deus. Lutava, deixando que esta vontade imperasse. E obteve muitas vitórias.

Enquanto jovem, conheceu o verdadeiro amor em sua plenitude, por isso era fácil sonhar e acreditar. Tinha fé na verdade e a defendia sinceramente. Assim disposto, deu os melhores anos e talentos de sua vida pelas causas que acreditava, realizou grandes conquistas pessoais, que ao mesmo tempo ajudaram a construir muitos outros que vieram após ele e seguiam-lhe o exemplo. Até queria sentir uma pontinha de orgulho por certas glórias que sua fé persistente lhe proporcionara, mas novamente lembrava que fora Deus quem lhe dera tudo, e simplesmente sorria satisfeito.

Mas vieram também as decepções. Foi traído, atacado injustamente, enganado, ludibriado por semelhantes seus, que muitas vezes professaram compartilhar os mesmos ideais. O perdão passou a ser muito mais uma forma de suportá-los. Enfrentou também tempestades e toda sorte de mal tempo: conseguiu vencê-los, é verdade, mas machucou-se bastante, e a cada nova luta, perdia um pouco mais do seu vigor. Com o tempo percebeu que estava mais sozinho, seus velhos e leais companheiros iam escasseando. Nunca tivera medo de parecer incômodo para defender os princípios em que cria, mas quando jovem isso era encarado como intrepidez, agora, como rabugice...

O cansaço falava tão alto, que ele sentiu ser hora de decidir. Deixar-se morrer, abandonando-se numa derrota plácida? Ceder ao peso dos anos, mágoas, solidão, da sua plumagem obsoleta? Deixar-se conduzir pela mão do tempo, agora seu algoz, e acomodar-se vendo tudo pelo que lutou sendo gradativamente destruído, seus sonhos enterrados, seus ideais pisados, objetivos esquecidos, e as crenças, a verdade que defendera e ajudara a construir, esmagadas aos pés daqueles que, sorrindo-lhe num aceno irônico, decretavam o seu passamento?

Leonardo arremeteu o bico contra a rocha. Sentiu uma dor profunda. Bateu de novo, uma vez mais, e o sangue espirrou. Seguiram-se outras violentas pancadas contra a rocha até que seu bico gasto estivesse completamente estilhaçado. Semanas se passaram e agora um novo bico nascera-lhe. Foi a vez então de arrancar, uma a uma, as suas garras velhas, as quais já estava inutilizadas por não terem corte nem tamanho apropriado. A dor era quase insuportável, mas Leonardo pensava que outras águias já haviam passado pelo mesmo processo de renovação, e assim venceram a morte, vivendo mais vários anos. Ele não queria morrer. Não queria aposentar seus ideais - era uma águia! Nascera para as alturas! E nem tempo, nem decepções, nem qualquer oposição lhe tirariam a ânsia de voar! Enquanto houvesse esperança de viver e lutar, não desistiria.

Para continuar, Leonardo precisou se livrar da parte que havia envelhecido nele. Que estavam gastas e apenas lhe faziam sentir-se incapaz de continuar. Foi difícil e doloroso arrancar de sua própria carne aquela aparência de velhice. Mas valeria a pena. Poderia ser que alguns anos a mais de vida não lhe permitissem ver seus ideais triunfarem, mas ele não se entregaria tão facilmente. Se acomodar era fazer parte do erro que sempre combatera, morrer agora, quando tinha chance de continuar, era envergonhar as crenças que defendera.

E eu confesso-lhe que quero aprender a amar como Leonardo. O que mais explicaria a coragem de renovar-se? Se muitos o traíram, ele jamais traiu seus ideais. Se outros tinham medo, ele continuou a sonhar. Ousou ser ele mesmo, ainda sendo o único a fazê-lo. Nenhum ser sob o céu o viu cair dele, nem abandonar a montanha. Eu, e você também, temos bons motivos para desejar amar assim. Temos um Deus que "faz forte o cansado e multiplica as forças de quem não tem nenhum vigor. Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços caem de exaustos, mas os que esperam no Senhor..."¹

Uma semana iluminada!

Luna

¹ Isaías 40: 29-31

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