sexta-feira, 12 de outubro de 2001

Igreja do diabo x igreja do pobre-diabo

A melhor parte do domingo para mim, é quando minha mãe chega com o "jornalzinho" da missa. Sou leitora assídua dos textos que encerram esse periódico, tanto que suas reflexões inteligentes sempre me roubavam um terço da missa quando eu era católica.

O desta semana teve o título curioso de "A igreja do pobre diabo", e embora eu não tenha apreciado algumas colocações "quevedianas" do autor, ele me deixou refletindo numa perspectiva mais ampla de Romanos 7:9, onde o apóstolo Paulo expõe o velho dilema, que está para nós cristãos, como o ser-ou-não-ser para Hamlet: "Não faço o bem que quero, e sim o mal que não quero", eis a questão.

O texto começa falando de uma igreja que talvez meu amiguinho Paterson, lá de Manaus, deva conhecer. Trata-se da Capela do Pobre Diabo, construída em 1897, pela esposa de um comerciante, após a morte dele. Esse comerciante possuía um pequeno estabelecimento comercial com artigos a preços populares, onde chamava atenção uma tabuleta, escrita à mão, que dizia: "Ao Pobre Diabo" (modo comum de chamar os mendigos e pobres necessitados, antigamente). A expressão foi uma propaganda tão eficaz, que acabou por batizar o local sagrado, e hoje o governo do Amazonas declarou-o patrimônio histórico, aberto uma vez por ano à visitação, no dia de Santo Antônio (que originalmente era o homenageado, mas terminou à sombra do pobre diabo).

Antes que eu prosseguisse a leitura, me veio à mente a mesmíssima associação que o autor (Aldo Colombo) fez mais à frente: um conto de Machado de Assis chamado "A Igreja do Diabo", onde o mestre do Realismo disseca uma vez mais o ser humano e suas contradições. Neste conto, ele fala de uma suposta tentativa do Diabo de abrir sua própria Igreja, cansado de ser apenas oposição, figurinha de esquerda, eterno presidente de partido. Então o Tinhoso organizou culto e normas de comportamento, mandamentos exatamente opostos ao Decálogo, e inverteu todos os valores dos seus adeptos. Mas o que aconteceu? O Diabo acabou fechando o templo, porque descobriu que alguns dos seus mais fiéis seguidores, sorrateiramente, à noite, praticavam o bem. Uma virtudezinha acariciada, uma caridade por debaixo do pano...o Diabo acaba por desistir de lidar com a incoerência humana.

E aí está a verdade sobre o que queremos fazer: o bem. O apóstolo Paulo, que gasta vinte versículos do capítulo sete no livro de Romanos expondo o dilema entre o querer e o realizar, esparge luz nos trinta e nove versículos do capítulo oito, no mesmo livro, para nos dar a certeza de que nenhuma condenação há para aqueles que estão em Cristo Jesus. Ele enfatiza ainda, que somos filhos e herdeiros de Deus, feitos para a vida, redimidos por Seu amor. Quando falhamos Ele não nos castiga, mas concede Seu Espírito, pois fomos chamados para a glorificação (verso 30). Em seguida, Paulo, meu personagem bíblico favorito, conclui com um texto que também faz o livro de Romanos ser o meu favorito. Leia uma vez mais os versos 31 a 39 do capítulo oito. A mais bela afirmação bíblica da certeza do amor de Deus. Parafraseando-o: Que diremos, depois destas coisas? Somos bons. Nascemos com a semente da bondade em nosso coração, temos a vocação do bem, a predestinação da vitória, a nacionalidade celeste.

Mas e aquele detalhe do "fazer o mal que não quero", onde fica? Afinal, não é ilusório e até mesmo pretensioso achar-se bom, e no momento seguinte trair-se com um pensamento mau ou um gesto profano? De fato! Sem que queiramos, às vezes somos capazes de atos tão repugnantes, pecados repetidamente malignos, o que nos resta? Ah, amigo meu, tome esta verdade como quem recebe um beijo a testa: nos resta a Igreja do pobre diabo!

O pobre diabo é aquele que se reconhece assim, um coitado, miserável dentro da sua humanidade, mas um filho de Deus elevado à glória magnífica quando em Jesus Cristo. Há quem viva procurando a Igreja de Deus aqui na Terra, e entra nos maiores templos, nas choupanas úmidas, nas igrejas de bancos macios e corações ásperos, nos recintos onde mãos ásperas se estendem oferecendo calor suave... mas não encontram a tal Igreja. Há quem passe a vida inteira procurando em muitas igrejas, há quem busque por anos em uma só, uns morrem perscrutando doutrinas, uns até se cansam pelo caminho, mas há quem, por fim, reconheça que a Igreja de Deus é a Igreja de pobres diabos, que entre o querer e o realizar plantaram a Videira Verdadeira, de cujos frutos se alimentam, em cuja sombra descansam tranquilos, aguardando o Agricultor que os levará a conhecer uma certa árvore da vida. (João 15:1-8; Apocalipse 22:2)

Embora o pecado ainda nos atormente, nós somos do Bem. A luta é dura, como duro é carregar o fardo da imperfeição. Por vezes isso pode fazer com que a Igreja de Deus pareça quase uma utopia. Mas basta olharmos para nós mesmos, e para tantos outros que como nós estão buscando chegar lá, para reconhecermos um povo sendo conduzido na direção certa, e cujo olhar se distingue por ter paz.

Ainda não é aqui que a Igreja de Deus reunirá o que há de melhor. A começar por mim, ela é formada de pobres diabos necessitados da graça de Deus. Mas a cruz de Cristo não foi deixada para fulgurar no templo dos que julgam ter alcançado glória e justiça aqui: para mim a cruz é como aquela tabuleta do comerciante, infundindo nos que se reconhecem necessitados, a esperança de conseguir um pouco mais. E quer saber? Me anima saber que esta Igreja do pobre diabo, unida, tem poder para vencer o Diabo, e tudo que dele vier – as portas do inferno não prevalecerão contra ela! (Mateus 16:18)

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