domingo, 7 de outubro de 2001

Só um cheirinho

Bleka chegou aqui toda orelhas e barriga. Eu não resisti aquela bolinha disforme miando desesperadamente atrás de mim, a pata manca, súplices olhos azuis. Como eu nunca fui chegada a gatos, tratei de avisar – para alívio de minha mãe – que ela ficaria em nossa casa só enquanto suas feridas saravam. Fizemos uma tala na pata, demos remédio para livrar aquela barriga enorme dos vermes, cuidamos das feridas que sobressaiam entre o pêlo ralo. Ela foi ficando saudável, foi ficando forte, foi ficando... ficando... e está conosco até hoje. Como é pretinha (aportuguesamos e afeminamos o Black) e sua feiúra não inspirou nenhum nome mais mimoso, ela ficou sendo Bleka, quase uma interjeição de horror, heheheheh

Minha irmã mais velha é quem cuida dela, pois eu ainda não consegui gostar de gatos. A nobre amiga Viviam há de discordar veementemente, mas eu acho esses bichos esnobes, interesseiros, frios, e a minha em particular é muito arredia. Minha irmã a defende como se isso fosse mera cisma minha. Mas a gata é feia e esquisita sim. Acredite, eu até gosto dela. Mas não dá para achar normal uma gata que gosta de comer mamão, fica admirando quase hipnotizada minhas árias de ópera (prefere as sopranos), tem fascinação por sacos plásticos, dentro dos quais é capaz de ficar horas, e sente um prazer mórbido em cravar as unhas nas minhas meias-calças novinhas. Como se não bastasse, Bleka tem uma curiosa mania, de ficar roçando em nossas pernas, miando e olhando esfomeada para nossa comida, mas quando nos rendemos e entregamos um pedacinho da comida, ela simplesmente cheira, cheira, cheira... e vai embora! Não dá uma mordidinha sequer. Pode ser um bife ou um peixe suculento, ela cheira e sai satisfeita. Lembrei disso agora, que ela me fez dar um precioso pedaço do meu chocolate, e ele jaz no chão, intacto, após algumas cheiradas esnobes.

Eu não consigo compreender como Bleka é capaz de se satisfazer apenas cheirando os alimentos. Mas isso me fez pensar em como nós a imitamos, quando o assunto é alimentar-se do Pão da Vida.

É comum ouvirmos orações pedindo "mais fé", como a de Eliseu: "Peço-te que haja sobre mim porção dobrada de teu Espírito" (II Reis 2:9), e nós mesmos as fazemos, pois não há nada mais precioso para um cristão hodierno, que fé para enfrentar este mundo louco. Jesus sabe tanto da fome espiritual do homem, que fez a si mesmo alimento, perpetuando sua entrega sacrificial no pão e no vinho, a fim de que nosso ser O celebre como o Pão que desceu dos céus para saciar-nos. E diariamente, Deus se faz alimento através de pessoas, situações, oportunidades, que nos são dadas como meio de nutrir nosso espírito e aumentar nossa fé. Mas será que sabemos discerní-lO?

Muitas vezes, este alimento passa ignorado: não estamos sensíveis para reconhecê-lo nas pessoas, paisagens e acontecimentos ao nosso redor. Outras vezes, simplesmente o recusamos porque seu aroma nos parece acre, e não nos agrada alimentar nosso espírito fazendo-o passar por provações e algum sofrimento; preferimos ver amargura onde Deus colocou alimento. Mas o mais triste é quando Deus prepara-nos um banquete e nós nos abstemos dele porque já nos satisfizemos com outros "lanchinhos" no caminho. Os cultos, os louvores, a própria
Bíblia já não são degustados com prazer. Mas o laodiceano segue, ostentando o ventre proeminente, o qual por não se alimentar da Vida, se torna morada de vermes.

Pior que a fome descrita pelo profeta Oséias (4:6), de quem "perece por falta de conhecimento", é a sensação enganosa de saciedade que nos impede de provarmos o verdadeiro sabor da nossa religião. É sobreviver sentido um cheirinho de Deus, que com o tempo vai deixando de excitar nossas papilas gustativas, ou seja, já não sentimos "água na boca" pelas coisas espirituais. E quando se troca uma experiência profunda com Deus, para resumí-lo a uma sensação olfativa, o cristianismo não sobrevive e o espírito adoece – isso diante de uma mesa farta.

Espero que nesta semana estejamos dispostos a reconhecer em cada detalhe de nossas vidas, a presença do nosso Deus pronto a alimentar nossa fé. E ao nos aproximarmos do alimento que Ele nos prepara, não nos acheguemos com cheirinhos descomprometidos, mas com apetite prazeroso. Honremos o Deus "que dá alimento a toda a carne, porque a sua benignidade dura para sempre" (Salmo 136: 25). Alimentados pelas coisas celestes, nenhum mal nos tentará o paladar.

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