segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Geografia divina

É fato que quem mora nas metrópoles brasileiras vive querendo dar uma escapulida, num feriadão qualquer, para a cidadezinha tranquila mais próxima. Nem precisa ser linda e completamente tranquila: se tiver filas menores nos supermercados, trânsito fluindo e um único bom restaurante já é considerada um pequeno paraíso. Mas é quase impossível a quem realiza uma pequena fuga dessas não ouvir de alguém que mora na cidadezinha ideal: "Nossa, então você é de (...)?? Não sei como você consegue viver lá! Com toda aquela violência, aquele barulho, aquela loucura... eu não aguentaria." A primeira resposta que vem à boca - e que é devidamente vetada por um Superego educadinho - é: "Bem, eu também não sei como consigo, mas não tenho muitas alternativas. Se pudesse estaria morando aqui, mas mesmo aqui ainda precisaria fazer coisas como comer, me vestir e ir ao médico, e para isso precisaria de um emprego razoável - coisa não muito fácil de achar em cidadezinhas perfeitas."

A reposta traz mesmo uma pontinha de despeito. Mas aparentemente justifica (para nós mesmos) nossa falta de qualidade de vida. É bem verdade que nos aborrece o questionamento simplista dos mais afortunados. Certo primo meu que mora no Rio de Janeiro e passava as férias no interior do Rio Grande do Norte, teve que amargar o caminho inteiro de volta da praia o taxista querendo lhe convencer de que o Rio era um lugar perigoso e horrível e impossível de se viver, tentando neutralizar qualquer elogio à Cidade Maravilhosa e declarando sua pena profundíssima por meu primo morar lá. Coisa chata! Mas nossas justificativas também escondem uma verdade que nem sempre vemos claramente: também nos acostumamos à comodidade das grandes metrópoles. Além de empregos melhores temos restaurantes melhores (mesmo que a fila seja um dissabor só), temos melhores médicos, concertos e programações culturais, um comércio onde é fácil encontrar tudo que se quer, serviços e produtos especializados que proporcionam algum conforto para nossa vida atribulada e nos dão a ilusão de que "vivemos bem". Isto é, desenvolvemos bronquite asmática por causa da poluição mas a farmácia vem deixar o melhor remédio no domicílio sem taxas adicionais. E isso nos parece até mais cômodo que ter de andar um quarteirão da cidadezinha ideal para ir até a farmácia uma vez na vida.

Esta comodidade não é privilégio de quem usufrui dos "benefícios" de uma cidade grande. Basta os telejornais começarem a mostrar cenas de gente sofrendo em algum lugar de mundo para ouvirmos discursos - muitas vezes proferidos por nós mesmos - sobre como essa gente aguenta morar lá. Os cubanos? Aquilo é absurdo! Como pode gente esclarecida como os médicos, professores e músicos de lá viverem sob o tormento de uma ditadura que lhes priva desde comida até o acesso à literatura, que lhes proíbe desde a expressão livre da palavra até a divulgação de descobertas científicas que poderiam salvar gente do mundo todo? E os mulçumanos? Aquelas mulheres escravizadas e destinadas ao silêncio desumano, aqueles homens aterrorizados e presos a uma guerra que não acaba nunca? E o que dizer chineses (as olimpíadas inflamaram os dicursos humanitários), dos angolanos, sudaneses? Por que não mudam de lá os sertanejos famintos da caatinga, os catarinenses vulneráveis, os recifenses que todo ano veem casas vizinhas desabarem de cima do morro? Parece que todo mundo, no mundo inteiro, deveria mesmo é se mudar para Natal.

Tirando as determinantes sócio-econômicas que impedem as pessoas de saírem de seus locais de origem por causa simplesmente do dinheiro, há ainda outros vários fatores que mantém essas "incógnitas" geográficas. A religião, por exemplo. Vi uma entrevista com certa mulçumana de mãe brasileira que, mesmo vivendo sob o terror das bombas em Gaza, diz que prefere morrer jovem lá que velhinha no Brasil, pois se morrer lá crê que seu martírio lhe valerá grandes benefícios no mundo após a morte, o que não aconteceria se morresse aqui no Brasil. Embora a idéia pareça absurda a muitos de nós ocidentais faz parte do código moral que ela assimilou como correto através de sua religião, e o que pode ser visto como falta de amor à vida é justamente um profundo apego ao sentido mais amplo dela. A cultura também tem sua parte. Há pessoas que tem um senso de pertença muito forte quanto a terra em que nasceram, e preferem viver lá apesar de todos os problemas, pois sentem que o viver ali faz parte de sua própria identidade, e isso lhes é imprescindível. É o que acontece com alguns índios, por exemplo. Há ainda fatores emocionais e psicológicos: o convívio com a família, a pouca habilidade para lidar com mudanças. E muitos outros aspectos, mas como isto aqui não é uma tese sociológica, quero convidá-lo a pensar num fator especial: o espiritual.

Antes de pensarmos, falarmos e repassarmos e-mails falando sobre o "absurdo" que é para essas pessoas viverem onde estão, pensemos em nossa própria condição como cristãos. O quanto nós já nos acomodamos num mundo que por causa de sua decadência se tornou um lugar árido demais para qualquer filho de Deus viver? Embora a Bíblia nos aponte um mundo bem melhor, é comum a muitos de nós passarmos a vida pedindo a Deus que nos ajude a crescer e prosperar aqui. Pedimos saúde para trabalhar, e trabalho para ganhar dinheiro. Pedimos que nos abra as portas para oportunidades de subirmos na vida - nesta vida - mas quase nunca essa subida inclui algo mais alto que um edifício empresarial.

Não é errado pedir essas coisas, o próprio Cristo nos orientou a pedir o pão de cada dia na oração modelo, mas na mesma oração acrescentou: "Venha a nós o Teu Reino". Acontece que por vezes nos acomodamos ao pão terreno e ambicionamos apenas mais delícias da padaria. "Dá-me o pão, mas aquele pão doce com uma cereja em cima, e também o croissant, o bolo de chocolate e...". Será que, absurdamente, esquecemos de pedir também pelas coisas do Reino (e não falo do queijo)? Será que a idéia de um mundo perfeito foi ofuscada pelo comodismo de desfrutar os prazeres efêmeros e materiais deste mundo? Nas nossas orações o que pedimos tem mais a ver com este mundo ou com o vindouro? “Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma...?” (Mateus 16:26)

Se esquecermos de pedir - e viver - pela vinda do Reino de Deus, logo estaremos amando mais a este mundo que as coisas do Altíssimo. O Céu - falo não só da Nova Terra como da atmosfera celestial que já podemos vivenciar aqui - é para aqueles que o desejam, que o aguardam, que anseiam por ele e que querem levar todas as pessoas (amadas ou não) para lá. E não pelas coisas boas que ganharemos - isso é uma extensão do pensamento mesquinho que nos leva ao apego das coisas terrenas- , mas por causa da Pessoa de Cristo que é toda razão, essência e motivo para querermos esse céu. É por ele que, morar aqui, no Sudão ou em Papua Nova Guiné não faz grande sentido, nem tem tanta importância. É com Ele que queremos morar.

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