quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Demas e o amor

Este texto é, na realidade, uma continuação do anterior. Cortei para ficar mais fácil de ler, mas a temática é a mesma.

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Gosto daqueles personagens bíblicos que não costumam aparecer muito em sermões. Aqueles cujos nomes são praticamente o que consta a seu respeito na Bíblia, mas que estão num contexto que tem sempre muito a nos ensinar. Por isso gosto da história de Demas. Em II Timóteo 4:10, Paulo escreveu: "Porque Demas me desamparou, amando o presente século...". Isso torna a história de Demas - antes disso um cooperador de Paulo na evangelização - algo bem próximo da história de muitos cristãos contemporâneos.

É possível que Demas tivesse ouvido a advertência de Paulo: "Não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus." (Romanos 12:2). É possível que tenha lutado contra a sensação de que já não sentia prazer em ir à igreja, em participar dos eventos evangelísticos. Talvez tenha escondido a tristeza e até algumas lágrimas depois de voltar vazio de uma grande reunião cristã de onde todos os outros pareciam sair exultantes. Amar a Deus é uma experiência tão marcante que o deixar de amar a Deus só pode acontecer vagarosamente, por um processo contínuo de afastamento. Ninguém abandona a fé porque, um certo dia, decidiu que não queria mais amar a Deus. Mas porque decidiu isso ao longo de muitos dias, mesmo que não tenha elaborado claramente essa afirmativa, muitas vezes só com gestos sem palavras.
O sociólogo Francesco Alberoni, em seu livro "Enamoramento e Amor", considera a fé uma experiência de "apaixonar-se", mas como "paixão" já adquiriu uma conotação muito sexual e vulgar, utiliza o termo "estado nascente" para descrever a força de um enamoramento que é capaz de levar a vida a um plano superor em intensidade e qualidade, não mais direcionada a si mesmo mas a um Ser que lhe ocupa a alma completamente. "O ente amado se converte naquele que não pode ser senão ele - o absolutamente especial", afirma, "a experiência é de libertação, de plenitude de vida, de felicidade". E é por causa da natureza deste sentimento que ele não pode ser dividido e entra em conflito com outros interesses. Enquanto encarado como um local de refúgio, permancerá sendo "estado nascente". Mas quando quer ser domando, controlado, integrado a interesses divergentes, descartando para isso o que não convém [na fé], o enamoramento se extingue.

Alberoni diz também que para podermos separar-nos saímos à procura de motivos. "No comportamento do outro buscamos tudo aquilo que justifique nosso afastmento: sinais de que ele não nos ama de verdade, de que e não nos ama como o amamos, razões para crermos que não nos possa amar no futuro. O sentido de tudo isso é o medo de nos entregarmos." "E os filhos de Israel disseram-lhes: Quem dera tivéssemos morrido por mão do SENHOR na terra do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne, quando comíamos pão até fartar! Porque nos tendes trazido a este deserto, para matardes de fome a toda esta multidão." (Êxodo 16:3). Quando estamos muito satisfeitos com o nosso mundo não podemos nos enamorar de Deus. Quando amamos a Deus os interesses mesquinhos e egoístas não nos parecem tão importantes. Nem Demas nem nenhum de nós poderia conciliar o amor do dinheiro, do status, do Ter, da aparência, do ventre, com o amor de Deus, para o qual nada disso vale. “Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele” (1 João 2:15).
O amor do mundo exige que nos concentremos em nós mesmos, trabalhemos só por nós mesmos e gastemos a vida sem considerar o que podemos fazer pelo outro. Dá a comodidade de não exigir mudanças, enquanto o amor de Deus nos constrange a isso. Por isso que quem tem o amor do mundo tão pode entregar-se a Deus. Tem com Ele apenas a fantasia da saciedade: obter o máximo possível e depois renunciar para não ceder ao risco exsitencial de se colocar completamente nas mãos do outro. Não pode viver um amor apenas de lembrar como ele foi no passado, nem pode suportar a tensão do enamoramento pois quer sua vitalidade contida e a isso se segue o que Alberoni chama de "petrificação". Mas felizmente cremos ser esse um processo reversível, Deus anseia por isso: "“Darei a eles um coração não dividido e porei um novo espírito dentro deles; retirarei deles o coração de pedra e lhes darei um coração de carne.”. Ez. 11:19.
"Ter novas experiências juntos: essa é a chave do prolongamento do enamoramento ativo. As energias extraordinárias do estado nascente dão, nesse caso, aos dois enamorados uma força muito grande para enfrentarem o desconhecido e o diferente, para superarem juntos as dificuldades. (...) Viagem feita em conjunto, ombro a ombro, depois de duras provas, descoberta e confronto, contínua reinterpreetação do mundo, contínuo reexame do passado histórico. Para alguns pode ser luta, poesia; para outros, simplesmente a capacidade de se maravilharem continuamente consigo mesmos e com o mundo, procurando sem cessar, não o que dá segurança ou o que já é conhecido, mas o que é desafio, beleza, criação. (...) O estado nascente renasce." E a alegria desse amor é tanta que faz a nós, que renunciamos o amor do mundo, amarmos o mundo todo.

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"O enamoramento é o abrir-se a uma existência diferente sem qualquer garantia de que esta se realize. É um canto altíssimo sem a certeza de uma resposta. A grandeza do enamoramento é deseperadamente humana pois oferece momentos de felicidade e eternidade, cria um desejo ardente, mas não pode oferecer certezas. E quando vem a resposta do outro, do amado, aparece como algo imerecido, uma dádiva maravilhosa que nunca se pensaria em ter. Uma dádiva que vem toda do outro, do amado, por escolha sua. Os teólogos criaram uma expressão para indicar essa dádiva: graça." (Alberoni, Enamoramento e Amor, p. 23)

Ora vem, Senhor Jesus.

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