sábado, 2 de outubro de 2004

Setembro

“Feliz o que venha a conhecer o que estou sentindo. É algo simplesmente maravilhoso em toda a amplitude da palavra.”

Frase que eu tirei do meu diário do ano de 1994, mais precisamente do dia 24 de setembro. E o que era esse deslumbramento que eu sentia? Embora as palavras lembrassem os arroubos típicos das adolescentes de 14 anos, não se tratava de uma paixonite. Era o sentimento mais profundo e nobre que eu experimentara até então. Que eu já experimentei até hoje. No entanto um sentimento sutil, de quem descobriu uma beleza escondida no já visto dez mil vezes antes. Sabe a beleza que nos passa rotineiramente despercebida e de repente desponta fulgurante, pululante bem na frente dos nossos olhos até pouco incrédulos? Esse tipo de beleza que é fácil apreender ao crepúsculo.

Pois foi assim. Como descreve Cecília Meireles em uma de suas crônicas¹: “Tudo palpita ao redor de nós, e é como um dever de amor aplicarmos o ouvido, a vista, o coração a essa infinidade de formas naturais e artificiais que encerram seu segredo, suas memórias, suas silenciosas experiências. A rosa que se despede de si mesma (...), tudo é um mundo que não se impõe com violência: que aceita a nossa frivolidade ou o nosso respeito; que espera que o descubramos, sem se anunciar nem pretender prevalecer; que pode ficar para sempre ignorado, sem que por isso deixe de existir; que não faz da sua presença um anúncio exigente. Mas, concentrado em sua essência, só se revela quando os nossos sentidos estão aptos para o descobrirem”.

E o que tem a ver a frase de um diário adolescente com a constatação de Cecília? Elas têm em comum Setembro. Cujo ápice, anunciado em todos os jornais e floriculturas, é a chegada da Primavera. Um nordestino não pode entender bem a primavera em sua terra, posto que conhece de clima só chuva, sol e um ventinho gostoso. E assim eu fiquei, platônica, anos a fio, vendo a primavera nas figuras de lugares distantes e na salada de frutas (!) que serviam todo ano na escola pra comemorar a estação incógnita. Flores? Só as roseiras da minha mãe, e elas botavam o ano inteiro. Mais tarde entrevi quase um perfume nas descrições de escritores, pintores e poetas. Mas foi só naquele setembro de 1994 que descobri a primavera aplicando meus sentidos às rosas.

Elas estavam postas ao lado de samambaias, simples e carinhosamente arranjadas de modo a aludir à estação das flores. De fundo uma paisagem pintada e um tanque cheio de água onde um homem de preto me sorria ternamente. Ao entrar naquela água gelada, observando as flores ao meu redor, eu compus a minha primavera, aquela cuja impressão jamais saiu do meu peito. Um quadro de Beleza e Vida que supera qualquer descrição. A minha primavera chegou plena quando conheci Jesus. E ficou cá dentro indelével e permanente, a Rosa de Sarom com perfume de eternidade.

Ao longo destes meus dez anos de fé cristã adventista ainda tenho encontrado irmãos que não viram a minha paisagem primaveril. Que não compreendem – eu os entendo, há mais para aceitar que para compreender! – o motivo que me fez desabrochar para a vida espiritual com a Pessoa de Cristo. Lembro bem de um sábado, nosso grupo debatendo o dom gratuito de Deus, que é a salvação, e um jovem adventista “de berço” levantou a voz com ira em nosso meio: “É impossível! O cristão tem que ser irrepreensível, tem que fazer o que é certo, não pode errar, e é isso que o habilita para ser aceito por Deus.” Mas se o Evangelho dissesse mesmo isso, quais seriam as boas-novas? O que me teria feito vestir aquela bata branca tão desajeitada para professar publicamente que eu amava a Cristo mais que tudo nessa vida? Naquela data eu já conhecia alguns invernos de solidão, medo, culpa, desejo desesperado de ser aceita e incapacidade comprovada de fazer o bem que queria. Minhas esperanças caíam uma a uma como folhas de outono (daqueles americanos, é verdade). Eu sabia que as coisas só funcionavam se déssemos algo em troca, muitas vezes algo que nunca mais poderíamos recuperar. Já entendia a maldade e egoísmo inerentes à frágil condição humana, a perspectiva do pó que acenava num imenso vazio interior. E o que seria para mim Cristo, se não a negação de todos esses sentimentos, ou antes, a afirmação de uma realidade infinitamente mais bela, mais alta, mais nobre e perfeita? O que me surpreenderia nessa beleza senão o único dever de aplicar a ela todos os meus sentidos e a minha vontade de conhece-la, como diria Cecília? Como Seu amor me atrairia, se não pela certeza que era amor dado de graça, “semeado no vento”, amor que não precisa de trocas, que não tem falhas e oscilações como o amor humano. O que eu achei na Pessoa de Cristo que não seja a mais perfeita forma de amar uma pessoa imperfeita?

Num dos livros que li em 1994 e que mais me tocaram na minha experiência cristã, o “95 teses de justificação pela f锲, o primeiro capítulo resume algum dos credos que sempre me aparecem primaveris quando o tempo quer fazer-se nublado. Dizem elas:
1 - O cristão faz o que é certo por ser cristão, nunca a fim de sê-lo.
2 - Justiça = Jesus. Não temos justiça à parte dEle.
3 - A única maneira de buscar justificação, é procurar a Jesus.
4 – Cristianismo e salvação não se baseiam no que você faz, mas em quem você conhece.
5 - Fazer o certo por não praticar o errado não é agir certo. Ser bom por não ser mau não é ser bom.
6 - A justificação tornará você moral, mas moralidade não tornará você justo.
7 - Nossas boas obras não causam nossa salvação. Nossas más obras não causam nossa perdição.

Relacionamento de fé, é a essa a primavera que tenho levado comigo por muitos setembros. Uma primavera de flor que não murcha, de fonte que não seca, de mão que não se aparta, de luz que enche tudo a despeito do tão pouco que sou.

Feliz Sábado!

Luciana


¹Escolha o seu sonho. 1 ed. Rio de Janeiro: Record, 1964. p. 30-32

² VENDEN, Morris L. 95 Teses de Justificação pela Fé. 2 ed. CASA Publicadora: São Paulo, 1990. Tradução do querido professor Azenilto.

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