segunda-feira, 25 de outubro de 2004

Uma conversa sobre árvores

Antes de falecer, minha sogra plantou um pé de jambo no jardim. E desde que compreendi que iria morar na casa que foi dela, o pé de jambo me pareceu uma das suas melhores idéias. Depois que ela se foi cobriram tudo de cimento, as plantinhas que ela tanto amava foram desaparecendo aos poucos. Mas o pé de jambo, por causa da copa frondosa que refresca a casa, foi poupado da praticidade urbana, que põe tijolo, lajota, telha e alvenaria em cada centímetro de espaço habitável (?). Plantei umas flores bem simples embaixo do pé de jambo, só para colorir mais aquele cinza todo, e me resignei esperando o momento de poder aumentar o jardim. Enquanto isso, eu e meu marido deitamos e ficamos olhando pela janela do quarto para a copa da grande árvore tendo o céu como pano de fundo azul, procurando ninhos nos galhos, vendo vôos de passarinhos e imaginando vôos da gente, fingindo estar deitados num gramado a perder de vista, sentindo a mesma brisa que balança suas folhas embalar-nos também.

Acontece que há algumas semanas as folhas do pé de jambo começaram a cair de uma forma anormal. Tomei um susto ao perceber que elas todas estavam amarelando e ao menor toque do vento vinham ao chão aos montes. Quando eu terminava de varrer, já haviam centenas caídas novamente. Os galhos entristecidos não me deixaram dúvidas: “o pé de jambo está morrendo!”. Fiquei atônita, e regava, adubava sem obter resultado. As folhas formavam um tapete denso a despeito de todos os meus esforços. Só meu marido parecia alheio, guardando um conhecimento que o fazia sorrir superior. “Mas está morrendo!!”, eu insistia. Para ao final descobrir que o pé de jambo estava apenas passando por sua “desfolhagem” anual, uma época em que todas as folhas caem para dar lugar a novas e mais verdes folhas, a suculentos e estonteantes frutos. Não, o pé de jambo não morria, ao contrário, ele estava pronto para anunciar com mais força a vida!

As árvores costumam dar esse tipo de lição em quem não as conhece bem. Quem passa uma vez pela caatinga nordestina em época de seca nem pode imaginar a paisagem verde-vivificante que brota do nada na primeira chuvinha. Olhando a grama seca de Brasília, nenhum passante pode prever que ela renascerá à volta da umidade. Até minha mãe, mais acostumada aos segredos do verde, levou lições de um pé de graviola que cresceu em seu quintal. Todos os anos uma praga de besouros cobria os galhos do pé de graviola de larvas brancas e pegajosas, que não faziam mal nenhum além de enfeiarem a planta, mas minha mãe, com medo que elas contaminassem as outras fruteiras, podava a árvore infectada até deixar-lhe o tronco nu. A gente olhava com pena, lamentando a morte do pé de graviola... mas dentro em pouco aparecia uma folhinha, e mais outra, e ele renascia vigoroso, insistente e com um risinho farfalhante.

Nem todo mundo entende a sabedoria da vida que há nas árvores. E há quem as ache até incômodas, podam, cortam, eliminam, cobrem tudo com concreto e dizem que é melhor assim. Mas as árvores resistem, desafiam à poda, renascem, renovam-se; vivem ainda. Por isso Aquele que mais entende de vida deixou para nós algo da sabedoria das árvores. O evangelho de Lucas 13: 6 – 9 registra a seguinte parábola: “Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha; e indo procurar fruto nela, e não o achou. Disse então ao viticultor: Eis que há três anos venho procurar fruto nesta figueira, e não o acho; corta-a; para que ocupa ela ainda a terra inutilmente? Respondeu-lhe ele: Senhor, deixa-a este ano ainda, até que eu cave em derredor, e lhe deite estrume; e se no futuro der fruto, bem; mas, se não, cortá-la-ás.”

E aí vemos explícita a primeira e afável verdade: Cristo nunca desiste de nós. Nós sim, estamos acostumados a cortar de pronto tudo que já não nos seja estritamente conveniente. Fazemos isso com árvores, com roupas, com papéis, com lembranças, com sentimentos, com amigos, até mesmo com irmãos, até com nosso bom Pai celestial. Tudo é descartável. O amor humano parece seguir a mesma seletividade da memória, que só guarda aquilo que lhe aprouve julgar útil e imediato. Felizmente Deus não é assim, e mesmo quando todos ao redor desistem de nós, mesmo quando nós mesmos achamos já não haver uma réstia de sentido para continuar, para acreditar nEle, Ele continua acreditando em nós. Foi assim desde os primórdios, é assim até hoje. Um ser humano em que não se vêem frutos aparentes, aquele que não pode em dado momento servir aos que lhe rodeiam com o que querem dele, logo faz nascer a sentença: “por que ocupa a terra inutilmente? Vamos corta-lo, tira-lo de nosso convívio, afasta-lo de nossa visão. Já nos ocupamos tanto tempo dele sem que conseguíssemos usufruir algo! Em breve morrerá mesmo. As pragas hão de cair sobre ele e se não o cortarmos há de contaminar outros...”. O paladar não lembra mais o gosto doce dos frutos colhidos na figueira há alguns verões atrás. Então poda! Corta! Destrói! Elimina! Não serve mais!

Deus se aproxima com o cuidado de quem entende todos os potenciais de vida. Chega com o cuidado necessário: “Deixe que eu limpe, alimente, fortifique, deixe que eu trabalhe nessa vida para que ela volte a produzir os frutos do Espírito”. Não se trata apenas de dar mais uma chance, é se achegar decidido a amar, sem espaços para hipocrisia ou ganas de superioridade. Deus nos respeita ainda que estejamos todos tão longe de dar-Lhe o que pede de nós: “o coração” (Provérbios 23:26). Onde o mundo inteiro vê inúteis galhos secos, desfolhados, cobertos de praga, Ele vê a possibilidade pulsante de vida em abundância. Aposta nisso. E para tanto pode esperar um ou quantos anos for preciso, sempre cuidando, sempre dando o mais desinteressado amor. “Porque há esperança para a árvore, que, se for cortada, ainda torne a brotar, e que não cessem os seus renovos. Ainda que envelheça a sua raiz na terra, e morra o seu tronco no pó,
contudo ao cheiro das águas brotará, e lançará ramos como uma planta nova.” Jô 7: 7 –9.

Nesse ponto meu peito pesa tanto que preciso confessar-lhes algo: que hoje escrevo para não chorar. Este breve momento de parar para pensar no amor de Deus me conforta, faz minha revolta amenizar. Então escrevo e ouço Dvorák (Sinfonia do Novo Mundo) para não chorar ante a velha mas sempre surpreendente maldade humana, de paixões que exigem sangue e sacrifício, heróis de plástico para sustentar o medo, essas paixões humanas que a tudo dispensam com facilidade desde que continuem embriagando com a lascívia do poder. Para tanto sempre haverá um bode expiatório e um bode “exultório”, diria Millôr. E Brecht completaria: “Que tempos são estes, em que uma conversa sobre árvores é quase um crime, porque inclui um silêncio sobre tanta maldade"? Quem sou eu, tão má e pecadora, para me espantar com a injustiça e falar de sabedoria? Quem sou eu, no meio de tantos que gritam pelo Deus de Justiça, que lhes fale do Deus de amor, que passou por cima do nosso conceito paupérrimo de justiça para nos tornar justos? Quem sou eu para dizer que o Deus da Justiça já nos teria cortado a todos da face da Terra?

Sei apenas que sou filha de um Deus em que vale a pena confiar. E todo aquele que dEle se achegar jamais será lançado fora (João 6:37) (Romanos 8:33-39). “Pois será como a árvore plantada junto às correntes de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, e cuja folha não cai; e tudo quanto fizer prosperará.” (Salmo 1:3)

Uma semana iluminada,

Luciana

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