domingo, 30 de abril de 2000

ser amado pelo Ser Amado

“E nós conhecemos e cremos o amor que Deus nos tem...” I Jo 4:16

Responda sinceramente: o que é mais importante para você: buscar o Ser Amado (pessoa) ou buscar o ser amado (sentimento)? Enquanto você pensa, deixe-me contar uma história que me aconteceu há alguns anos trás.
Só há algo pior que um daqueles dias em que tudo dá errado: é um dia que em que tudo está pra dar certo, e dá errado.
Eu vesti a melhor roupa, passei horas me penteando, roí cada milímetro “roível” de unha, e agora estava ali naquela pizzaria enorme ao lado dos meus tios e primos. Eu tinha um carinho especial por esses meus tios, a quem eu tinha como os adultos que eu gostaria de ser, de modo que tinha esperado muito uma chance de sair com eles.
Me encolhi um pouco mais na cadeira enquanto todos olhavam compenetrados para meu primo que falava animadamente. Ele era o centro das atenções, e não poderia deixar de ser diferente; ele era perfeito! Seu rosto era lindo, seu porte chamava atenção entre os de sua idade, sua inteligência o fizera adiantar um ano na escola e ela era carismático, gentil, engraçado e vivaz. Os olhos de meu tio, o pai dele, brilhavam. E os meus, fixos nos lustres do teto, tentavam fazer com que aquela luz me respondesse algumas questões íntimas que me torturavam a alma: “o que o torna tão especial, já que eu posso fazer tudo que ele faz, e até melhor? Será que conseguiriam me ver se eu fizesse essas mesmas coisas bobas? meus tios me teriam metade da atenção e do amor que têm por ele?”
Nessa hora, o garçom se aproximou para fazer os pedidos. Meu primo pediu pizza de alho. “Ora.. pizza de alho.. exibido! Claro que eu posso comer pizza de alho também...eu apenas ainda não experimentei, mas sei que posso”. Com suco de melancia. Bem, aí era mais difícil... “tinha que ser logo a fruta que eu mais detesto?” pensei. Mas é claro que eu podia fazer aquilo. Lembrei de um livro chamado “As frutas na medicina doméstica” que li na casa da minha avó, e lá falava maravilhas sobre a melancia. Na verdade, eu tive certeza que iria adorar o suco de melancia.
- Pra mim também! – falei convicta e num tom de voz suficientemente alto para que todos ouvissem.
A pizza chegou mas ninguém observava que eu e ele estávamos comendo a mesma coisa! Eu já estava mais parecida com ele e meus tios ainda não haviam começado a me amar mais! Pelo contrário, continuavam completamente absortos naquela criaturinha angelical que se divertia colocando o conteúdo daqueles vidrinhos em cima do seu pedaço de pizza. Eu o imitava como uma sombra, e despejava em dobro o que quer que fosse que estivesse nos vidros coloridos que ele pegava. E ainda assim, ninguém sequer reparava em mim! O que estaria errado? Desolada por meu fracasso, cortei um pedaço de pizza e levei à boca. E chorei. As lágrimas vertiam involuntárias e intensas. Mas não meus amigos, não era de frustração ou desamor. Era a simples mistura de pizza de alho com catchup hot e molho de pimenta, em doses cavalares. Aflita, busquei o copo de suco de melancia, que em nada amenizou a situação, antes embrulhou mais meu estômago. Eu não podia decepcionar meus tios ali, portanto, esforçando-me para parecer natural, ainda comi uns quatro pedaços daquela iguaria... como vocês devem imaginar, naquela noite eu não saí dali nem mais nem menos amada por meus queridos tios, mas com uma dor de barriga estonteante, vômitos incontroláveis, a boca e o estômago em condições lamentáveis e uma abominação imensurável à melancia, pimenta e alho.
Por minha ânsia exagerada em querer ser amada, eu acabei deixando de saborear o amor que já existia abundantemente entre mim e meus tios e ainda tive que engolir coisas muito ruins, das quais eu poderia ter me poupado!
Ah, mas como fazemos isso hoje em dia, não? O Ser Amado está ali, e o amor também. Mas você quer mais, quer ser amado da forma que você julga melhor, pelo que você acredita que é certo, impondo parâmetros de intensidade, profundidade, quantidade e qualidade no modo como o Ser Amado te ama. Despeja todo seu egoísmo sobre você mesmo e só se sente satisfeito se este Ser vier a te amar exatamente como você acha que deve ser amado. Só que um belo dia você descobre que não era bem isso que queria.. que falta mais! E ainda que o Ser Amado tenha cedido o suficiente para fazer a tua vontade, a ponto, muitas vezes, de perder a própria identidade por amor a você, de modificar valores para se moldar aos teus padrões, de deixar de ser quem é, para satisfazer aos caprichos da tua vontade... bem, ainda assim, você nunca se sentirá satisfeito, e sempre terá algo para corrigir, para exigir, para cobrar. E isso , tão somente porque sua busca não é pelo Ser Amado, mas pelo ser amado, ou seja, se sentir amado, a qualquer custo, num vício que em nada vai fazer crescer, antes, terá consequências bem desastrosas e diferentes do real objetivo do amor.
A excessiva preocupação em ser amado levará o Ser Amado a dois caminhos: ou deixar de se amar, ou deixar de te amar. E a princípio não é esse o fim do amor. Muito menos é amor a sensação de posse e a necessidade de conquista presente na atitude castradora de padronizar o amor do outro. Por outro lado, nunca se poderá chegar a felicidade entrando pelo caminho que busca a simples sensação de estar sendo amado. Por dois motivos: primeiro que o que você vai receber é apenas uma sensação ilusória que há de lhe satisfazer temporariamente, e não o amor real da outra pessoa, ainda que ela queira muito te dar este amor. Na realidade a pessoa que busca essa sensação não se ama, não se aceita e nem consegue se amar, projetando toda essa necessidade em cima do amor do Ser Amado, ou seja, a pessoa não precisa do amor de alguém, ela precisa de amor próprio, e se busca esse amor de si mesmo no outro, fazendo disso a finalidade da própria vida, acabará por nunca encontrar seu objetivo. Segundo, exatamente pela transitoriedade volátil desta sensação; apraz, mas logo aumenta o vazio. E o círculo vicioso e escravizador, que passa por atos cada vez mais longes do real amor, irá atrair, como um redemoinho, sentimentos ruins, de solidão , frustração, desesperança, e num plano mais avançado, até mesmo ódio e traição.
E como isso se reflete na nossa relação com Deus? Bem, particularmente, sou uma adepta de que Deus é poeta, e como tal, também deve ter lido com melancolia um poema do Drummond de Andrade que diz assim:

“Tão imperfeitas, nossas maneiras de amar.
Quando alcançaremos o limite, o ápice de perfeição, que é nunca mais morrer,
Nunca mais viver duas vidas em uma,
E só amor governe todo além, todo fora de nós mesmos?”


Por Deus ser perfeito, Ele sabe o que é amar assim, e não pode nos amar de forma diferente. Ele simplesmente nos ama e sabe que esse amor é capaz de suprir nossas necessidades mais profundas... coisa que nem sempre nós compreendemos. E como às vezes nos acostumamos a fazer com os nossos semelhantes, buscamos o amor de Deus querendo moldá-lo ao que, dentro de nossa visão, seja a maneira certa de um deus amar. Isso pode ser feito quando não aceitamos uma situação e o culpamos por isso, quando cobramos dEle uma reposta imediata sem ver as consequências que isso poderia ter, quando pensamos ou dizemos que ele esqueceu de nós e seu aparente silêncio e apatia não condiz com um Deus que é amor. Enfim, quando nos foge a sensação de “ser amado” e nosso amor é tão débil que não aceita a imensidão do sentimento verdadeiro do Ser Amado.
O amor supremo está bem ali, todo ao nosso alcance. Mas quanto mais nos preocuparmos em tê-lo, menos nos sentiremos amados. A solução é passar da busca de ser amado, para a busca pelo Ser Amado, que só pode se dar quando aprendemos a amar da forma mais adulta e desinteressada possível. Quando o dar amor conseguir suprimir a necessidade de se sentir amado, descobriremos, enfim, a liberdade, a paz e a satisfação que vem de uma relação saudável entre seres que se amam (seja ao nível humano ou divino). Ao concentrar a preocupação em amar o Ser Amado, deixando de ansiar por afeição, atenção e compreensão, descobriemos na nossa vida sinais de tudo isso, que estava ali, presente o tempo todo, mas que nossos olhos não tinham aprendido a apreciar. E agora, livres, podemos com serenidade sentir a alegria de receber o verdadeiro amor do Ser Amado, aceitando todo o seu sentimento na íntegra, puro e verdadeiro.
Deus nos ama tanto que nos fez capazes de amar como Ele. E Seu amor não serve somente para satisfazer as nossa necessidade deste sentimento, mas para que possamos ir ao mundo e amar nossos irmãos da forma como Ele nos amou - primeiro. Nosso Deus nos criou seres que antes de serem amáveis, são amantes, e que se realizam plena e completamente quando no ato de dar afeição muito mais que satisfazendo a sede de obtê-la. Amando nosso próximo, sentimo-nos amados pelo Pai, pois “quando alguém ama, aí Deus está”. E é deixando de pensar em nós mesmos que ganharemos capacidade de apreciar todo o sabor do amor do outro, e com isso, estabelecer uma relação de crescimento onde, cresce o amor próprio, cresce o amor ao outro, e cresce o amor do outro, todos crescendo em direção a Deus, a fonte do amor. É tendo coragem de perder que chegaremos ao fim da busca, encontrando o amor do Ser Amado.

Uma semana feliz e iluminada!!

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