domingo, 9 de abril de 2000

Perdão e Vida (para quem gosta de vida)

“Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” Romanos 7:24

Semana passada, como resposta a uma súplica muito íntima, senti Deus me falando enquanto eu escrevia o texto da meditação (Deus e amor x solidão e medo). Alguns amigos dividiram comigo suas impressões diante desse tema comum à nossa sociedade hodierna, mas uma em especial me chamou atenção.
Conheço esta amiga há vários anos, e ela tem um convívio quase diário comigo. Sempre a admirei por seu equilíbrio emocional e comportamento maduro e racional. Na segunda-feira dei o texto a ela, que me agradeceu sempre sorridente. Mas na terça-feira, ao reencontrá-la, ela tinha o semblante mudado, triste e até mesmo agressivo. Percebi a mudança, mas sem querer ser indiscreta, puxei conversa normalmente sobre assuntos cotidianos. Ela porém cortou bruscamente a conversa, com palavras que me deixavam cada vez mais absorta à medida em que iam sendo proferidas.
- Então você acha que sabe o que é amor e solidão? Acha que do alto dos seus vinte anos, já tem experiência suficiente para falar de medo, relacionamento, perdão? Que tem o direito de dizer que as pessoas precisam ser amadas, não importa o quanto elas estejam feridas, magoadas e decepcionadas?
Eu permanecia sem reação, enquanto observava os olhos dela se enchendo de lágrimas. Sabia que ela havia terminado um relacionamento há pouco tempo, mas ela não aparentava que isso mexesse ainda tão forte com o coração dela. Eu não movia um músculo, enquanto ela apontava para mim e falava, olhando em meus olhos com uma tristeza amarga.
- Eu também acredito em Deus. Mas não acredito que Deus tenha feito pessoas com coração e nervos de aço para simplesmente perdoar e esquecer. Eu não vou permitir que ninguém me machuque de novo, eu tenho que ter minhas defesas. E para isso, não posso esquecer tudo o que me fizeram, tirando apenas uma lição de moral como numa fábula infantil. Só EU sei o tamanho de minha ferida, só EU sei o quanto ainda dói, só EU sei os sonhos e o amor que perdi, fui EU quem conviveu com aquele monstro que não tem o direito de ser perdoado. Ele não merece isso, e não é meu objetivo ser igual a Deus e jogar todos os erros dele no fundo do mar.
Quando parei para pensar sobre toda aquela tempestade de palavras, a primeira coisa que me veio à mente foi:
“ – Voltamos ao enigma do cachorro do velhinho.”
Explico.
Quando criança, eu costumava ir sempre para a casa de um primo meu. E na rua dele havia uma casa pequena, simples e de fachada pouco atraente em que morava um senhor já bem idoso e um cachorrinho. Eu e meu primo costumávamos passar lá e sempre parávamos para brincar com o bichinho. Era um animal dócil, de olhos carentes e pêlo vermelho, seria até bonito se não fosse tão maltratado. Às vezes encontrávamos ele com feridas, mancando, sujo. E sempre estava faminto. Não raro levávamos comida para ele, que devorava tudo e nos agradecia com lambidas satisfeitas nas mãozinhas por trás da grade. Depois se deitava quietinho, indiferente aos nosso apelos e ao desejo de levá-lo conosco. Por vezes presenciamos o senhor, dono dele, maltratando-o com chutes e gritos quando ele se aproximava, fiel. Mas ele parecia estar conformado a sua situação, sua vida de cão, literalmente.
Um dia aquele senhor faleceu. Como sempre ocorria quando morria alguém num bairro de periferia, toda a rua se reuniu na casa do falecido para o velório – que não deixava de ser um evento social bastante concorrido, tão poucas opções de lazer aquela gente sofrida tinha. Eram vestidos, perfumes, sapatos, desligava-se a televisão...era uma festa.
Eu e meu primo recebemos a notícia com olhinhos brilhantes. Agora, finalmente, o cachorrinho viria conosco! Entramos sorrateiramente na casa, com a cara mais fingida de tristeza que uma criança possa fazer e procuramos o caõzinho. Ele estava em um canto da sala, logo atrás do caixão. Nós passamos por entre aquela confusão de flores, velas e tecidos pretos, meu primo tomou-o nos braços e saímos ainda mais sorrateiramente dali, antes que alguém nos visse e tentasse nos deter.
Levamos ele para a casa do meu primo, demos comida, banho com um sabonete bem cheiroso que a minha tia guardava para perfumar gaveta de roupas dela, penteamos o pêlo com a escova de cabelos do meu tio e preparamos uma casinha bem confortável para ele numa caixa de madeira, no quarto do meu primo.
Quando voltamos do enterro, ele não estava mais lá. Tinha fugido. Quando voltei a casa de meu primo, ele me disse que alguém encontrara o cãozinho morto, dentro do quarto do dono. Apenas deitou e esperou pelos chutes e gritos do seu dono, como sempre fazia, até morrer.
Nunca entendi porque aquele cãozinho jamais aceitou mudar de vida. Por que sempre recebia os nossos carinhos como esmolas, mas nunca se dispôs a vir conosco, e quando teve a chance de ser feliz, fugiu dela. Ele não tinha atenção e cuidado do dono, que lhe tratava com desprezo e maldade até, mas era fiel à sua condição de posse sofredora. E prendeu-se conformada e voluntariamente a sua dor até definhar ao lado da causa do seu sofrimento, quando poderia simplesmente ter optado por ter tudo o que um cão precisaria para ser feliz.
Do alto dos meus vinte anos, eu talvez não tenha mais que histórias de infância e cães para contar. Mas o que mais me surpreende é ver como elas se aplicam a seres humanos bem mais inteligentes que um cão e bem mais vividos que eu...
Uma vez ouvi um sermão em que o pregador dizia que o “corpo de morte” a que Paulo se refere no versículo mencionado consistia numa penalidade romana a condenados por assassinato. O corpo da vítima era preso às costas do condenado de modo que este não pudesse se livrar daquele. Em seguida, o assassino era solto no meio do deserto, onde andava errante até morrer... mas até que lhe sobreviesse a morte, o corpo, geralmente, entrava em decomposição, e por estar preso ao seu próprio corpo, a podridão da putrefação passava a este também, e lhe corroía as carnes, decompondo-as ainda em vida.
E embora haja outro contexto para aplicar esse versículo, eu comparo a incapacidade de perdoar com este “corpo de morte”. É surpreendentemente triste perceber que há pessoas que se prendem voluntariamente ao passado, num sofrimento fiel a cada dor vivida, e remoem, e revivem a cada instante a tristeza, a decepção, a mágoa... enquanto o rancor vai, como carne podre, corroendo seu próprio espírito.
Que eu poderia dizer para a minha amiga que considerava tão absurdo, simplesmente perdoar e recomeçar uma nova vida crendo no amor? “Ok, vá em frente, viva com intensidade sua autopiedade. Fale a todos que encontrar sobre suas mágoas, revivendo-as em detalhes, e expressando-as por completo em sua voz, em sua face, em suas atitudes. Chore muito e não admita que alegria nenhuma a faça esquecer o quão triste é sua condição e seu passado. Deixe que todos saibam que você quer ficar sozinho, e alugue uns filmes bem deprê para passar o fim-de-semana assistindo, ou então compre um CDs de bolero daqueles bem chorões, para ouvir quando pensar nele. Você com certeza conseguirá ficar sozinha, protegida de novas experiências, sem perigo de ter alegria, amor, carinho, essas coisas que te fazem lembrar a falsidade daquele “monstro”, e ainda ganhará de brinde uma gastrite, uma velhice precoce ou mesmo (num lance apoteótico), um câncer, para acelerar o fim de sua triste existência”.
Não sei que espécie de amigo daria um conselho desses... a única coisa que sei é que há , nesse momento, vida lá fora! Você não pode tê-la enquanto preso a um corpo em putrefação. E há também um Amigo maravilhoso disposto a nos dar bem mais que eu e meu primo daríamos àquele cãozinho. Basta que você deixe de ser fiel à fonte de sua dor, ao seu passado que só tem para te oferecer o definhar cruel dos covardes (num ser fiel até a morte), para ser fiel, simplesmente a Ele (num ser fiel até a vida)...
Jesus pode nos livrar do corpo de morte do nosso passado, e nos restaurar, nos dando uma nova vida, com novas, surpreendentes e excitantes perspectivas. Pode nos mostrar um caminho que em muito supera a visão anuviada pelo sofrimento, do que seja felicidade. O primeiro passo é seu: perdoe. Perdoe a seu semelhante, a si mesmo, e aceite o perdão divino. Encarando o perdão por estes três ângulos, você experimentará uma nova vida e uma paz incrível. Deixe que o amor de Deus lhe invada, e não faça restrições nem imponha limites para a ação desse amor; o amor de Deus é invasor sim, pois só um amor que invade os recônditos do ser, é capaz de TRANSFORMAR.
E isso quem diz não sou eu, mas um ser com anos-luz de experiência em amor, perdão, e relacionamento... exatamente Ele! Ele, que “nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do Seu amor.” Col. 1:13.
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

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