domingo, 23 de abril de 2000

Pyguara :quando Deus manda andar

“O Senhor é meu pastor e nada me faltará. Ele me faz repousar em pastos verdejantes e leva-me para junto das águas de descanso... ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque Tu estás comigo: a tua vara e o teu cajado me consolam.” Salmo 23: 1,2,4

Os olhos de Paumari brilhavam como Jaci, cheia na noite. Jarawara o encarava satisfeito de ver que ele gostara do desafio, e saboreava o sorriso empolgado do amigo. Mas de repente uma nuvenzinha cinza nublou aquele sorriso que foi murchando até se transformar em um beicinho.
- Mas mãe de Paumari não vai deixar ele ir!
- Paumari diz que foi pegar mel de jati com Jarawara. Todos os homens da tribo já foram ver os guerreiros brancos... pai de Jarawara contou que eles são alvos como flores de borrasca e alguns tem cabelo de sol! E tem mais... – falava devagar o amigo, degustando a curiosidade e o pasmo de Paumari – pai de Jarawara ganhou um barrete vermelho, uma carapuça de linho que guerreiro branco chefe usava na própria cabeça e um lindo e estranho cocar preto! Jarawara acha que é mágico! Que é presente de Tupã!
- Oh!!!
- E pai de Jarawara deu o cocar de penas vermelha de arara para ele! – falou sorrindo orgulhoso - Se Paumari e Jarawara atravessarem a floresta pelo monte até o rio onde estão os grandes barcos, podem ganhar cocar dos guerreiros também! – dizia enquanto segurava o colar de contas brancas que trazia no pescoço
Paumari voltou a sorrir, agora com mais entusiasmo. Estava muito feliz do amigo tê-lo convidado para tamanha aventura. Confiava que ao lado dele estava seguro porque Jarawara era mais velho, já tinha sido iniciado nos rituais dos homens da tribo, não era mais um curumim, já tinha saído para caçar com o pai, e conhecia os caminhos da floresta portanto já era um Pyguara¹ também. Aceitou imediatamente e se aventurou com amigo, pela primeira vez, através da floresta pelo monte.
Durante o caminho Paumari teve medo, pois nunca tinha andado naquele lugar que parecia ser muito mais assustador do que seu pai falava.... enquanto caminhava em seu passinho apressado, pensava no caa-pora, o espírito mau da floresta... lembrava as histórias das cobras boicininga e sucuri que engolia até um boi! Pensava nas coisas que o pajé contava, em volta da fogueira, sobre o curupira, o Anhagá e o Jurupari, o demônio boca torta! Toda vez que ouvia um barulho estranho tinha vontade de voltar para os braços da mãe, mas sentia a mão de Jarawara, firme, forte e, se acalmando, resolvia seguir. Ele estava seguro ao lado do amigo, que o tempo todo lhe ensinava o que fazer, por onde andar, e lhe mostrava cada detalhe daquela mata tenebrosa... aliás, muito mais detalhes que seus olhinhos medrosos pudessem atentar!
Chegaram num ponto da floresta que havia uma subida bem íngreme, de terra fofa, e Jarawara foi na frente. Paumari ía ficando cada vez mais pra trás... mais pra trás.. e se apoiando nos joelhos, a barriguinha saliente ofegante, parou e fez um beicinho de novo. Começou a chorar, mas Jarawara estava um pouco distante. Chorou mais alto.
- Paumari não consegue subir!! Buá!!!!!!!!
Jarawara olhou com ternura o amigo. Lá de cima gritou:
- É porque você está pisando no lugar errado! Pela areia fofa é mais difícil! Eu vim na frente justamente para você pisar nas minhas pegadas, onde a terra ficou mais firme, e assim vai ser mais fácil subir!! Venha! Mas tenha cuidado quando subir, porque aqui em cima, logo adiante, tem um igarapé onde toda a areia em volta é falsa: engole gente! preste atenção onde eu pisei e pise no mesmo lugar!
O indiozinho Paumari enxugou o olho de onde não tinha saído mais que uma lágrima e fez o que Jarawara dissera... percebeu que estava subindo rápido e isso o deixou muito feliz!! Tão feliz e seguro que esqueceu das advertências sobre o igarapé e....quando percebeu estava com areia pela cintura. Mais um grito desesperado e Jarawara veio lhe tirar dali... dessa vez Paumari ficou mais atento e em pouco tempo eles chegaram no alto do monte.
A visão lá de cima era fantástica... dava para ver a praia, onde muitos índios estavam reunidos em uma grande pocema². Também dava para ver alguns homens brancos vestidos de forma assustadora com objetos inimagináveis nas mãos. Jarawara avistou o pai e pensou aliviado que não teria que voltar sozinho pelo caminho da floresta, pois já estava escurecendo. O sol se punha no horizonte e os indiozinhos, cansados, decidiram esperar pelo pai de Jarawara ali. De repente o cocar dos guerreiros brancos não parecia tão importante diante daquela visão linda da natureza, do seu lar, da sua terra. “E além do mais, pensou Jarawara, a essa altura, com tantos índios lá, já não deve ter nenhum cocar para Paumari e Jarawara”.
Era um dia de Abril do ano de 1500, mas isso não importava nem um pouco a Paumari...muito menos aqueles estranhos guerreiros brancos. Tudo que importava para ele, sentado ali quietinho do lado de Jarawara era a sua descoberta. Descoberta muito maior do que aquela que os guerreiros brancos julgavam ter feito naquele dia. Paumari sentia a felicidade de ter cruzado um caminho desconhecido, cheio de perigos e dificuldades, confiando unicamente no seu pyguara. Levou tombos, estava arranhado, sujo, cansado, mas chegou seguro no alto do monte, agora certo dos segredos da floresta: bastava caminhar nas pegadas do pyguara e segurar-lhe a mão bem firme, não desviando os olhos dele, nem os ouvidos de suas recomendações.
E é por isso que insisto que Paumari descobriu em 1500, algo muito maior que o nosso amigo Cabral. O que Cabral descobriu, já estava descoberto, habitado e inclusive visitado muitas vezes antes. O que Paumari descobriu, a humanindade ainda vive a procurar pelos caminhos mais tortuosos: a maneira de alcançar a felicidade plena e real em Jesus Cristo.
É interessante como a frase do salmo: “O senhor é meu pastor” é proferida, escrita, cantada, e expressa de todas as formas no meio cristão. Todo mundo quer seguir com Deus pelos pastos verdejantes e as águas de descanso. Mas por vezes esquecemos que também há uma vale da sombra da morte a ser atravessado, e aí nem todo mundo confia em simplesmente segurar a mão e seguir os passos do grande Pyguara Jesus Cristo, o Senhor de todos os caminhos, o próprio caminho, verdade e vida. Muitas vezes não temos a segurança infantil de Paumari, para simplesmente nos deixarmos guiar, mesmo com medo, mesmo desconhecendo o terreno e com todos os temores que o mundo nos incutiu na cabeça e no coração. Acho que você sabe que temores são esses, diariamente a gente se depara com um. Medo de dizer sim, medo dizer não, medo de ficar só, medo de ser invadido por alguém, medo de lutar e perder, medo não conseguir, medo de não ser notado, medo de não ser reconhecido, medo de começar, recomeçar ou terminar, medo encarar o novo.. e o velho! Nossa! São tantos medos que alguns tem medo de ter medo! Mas a vida é essa grande floresta (já dizia uma professora minha falando de simbolismos psicológicos) que precisa ser cruzada antes de chegarmos até às aguas de descanso. Você pode parar e jamais chegar em cima do monte, você pode querer determinar seu próprio caminho e não conseguir subir o terreno difícil, você pode querer se achar seguro que já sabe tudo sobre o caminho e acabar com areia até a cintura (no mínimo!).
Ou você pode simplesmente dar a mão a Jesus e fazer grandes e maravilhosas descobertas. E é lá, em cima do monte, descansando ao lado dele, que você vai entender o que tem realmente valor para você e reavaliar a importância do que você queria tanto. O legal de dar a mão a Jesus e seguir confiante, é que no final a gente sempre descobre que o que Ele tem pra gente é bem mais e bem melhor do que a gente queria. E pode ficar aquela sensação estranha de : “puxa, vai ver que tudo que eu estava precisando era mesmo de um bom pôr-do-sol com muita paz.”
Paumari e Jarawara não sabiam que depois da Descoberta dos gaviões brancos³, aquela visão de pôr-do-sol jamais seria a mesma. Talvez eles não tenham vivido o suficiente para levar seus filhos em cima daquele monte... mas espero que sua aventura pueril nos tenha deixado hoje a certeza de que guiados pelas mãos do nosso Pyguara Divino, não temos o que temer em meio a nenhuma selva densa ou vale da sombra da morte.
Uma semana feliz e iluminada!!!

Lux Lunae

¹do idioma tupi, py – caminho e guara – Senhor, era como os indígenas chamavam o guia.
²grande alarido que os índios faziam em ocasiões solenes, como começo de batalhas ou simplesmente de alegria, em festas
³ segundo “profecia” do velho pajé Baitureté, no romance “Iracema” de José de Alencar, o gavião branco destruiria a narceja, ou seja, a raça branca destruiria sua raça.

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