domingo, 7 de maio de 2000

Êxodo: conversão mental

"Então, naquela mesma noite, [o Faraó] chamou a Moisés e a Arão e lhes disse: Levantai-vos, saí do meio do meu povo, assim vós como os filhos de Israel; ide, servi ao Senhor, como tendes dito." Êxodo 12:31

Merari acordou ouvindo aquela doce voz familiar:
-Merari! Acorde... você tem que partir agora...
De um salto ele se ergueu da cama e olhou para o rosto de Nefert onde escorriam algumas lágrimas num semblante cheio de dor. Ela pegou as mãos do garoto e, tentando controlar o pranto, lhe explicou o que ocorrera enquanto ele dormia. Todo o Egito estava assustado e pasmo, o próprio Faraó, conhecido por sua dureza e inflexibilidade, estava angustiado a tal ponto que cedera aos apelos de Moisés. Agora todos os primogênitos egípcios estavam mortos, e o povo se apressava em expulsar os hebreus dali, pois já não suportavam mais tantas pragas divinas subsequentes. Todos estavam com medo e aflitos, ansiosos por ver aquele povo que trouxera tanta maldição aos egípcios, longe o quanto antes. E terminou seu relato com a voz mais doce, dizendo:
- Vá meu menino... você e seu povo estão livres!
Merari estava atônito com tantas coisas ao mesmo tempo. Ele sabia que Moisés estava tentando convencer o Faraó a libertar o povo hebreu, e todos tinham esperança que Javé conseguisse vencer o Faraó, mas ele não estava preparado para acontecimentos tão rápidos assim. Merari nascera no Egito e sua mãe, uma hebréia consumida pelas adversidades daqueles dias de opressão, morrera de parto, deixando o menino órfão e o pai sem ter como cuidar dele. Foi quando apareceu Nefert, uma viúva egípcia sem filhos que convenceu ao pai a comprar o menino como servo mas tratar-lhe dignamente. E assim o fez. Durante todo o tempo que esteve na casa de Nefert, Merari cumpria suas obrigações de servo mas era tratado com carinho por ela, que lhe dava condições de vida muito superiores a da maioria dos meninos hebreus. Ele fez algumas amizades com meninos egípcios e Nefert tinha planos de que ele aprendesse a escrita egípcia. Mas apesar de todos os privilégios, o sangue de Merari era de um hebreu... e ele nunca se sentira completamente a vontade no meio dos egípcios, que não compreendiam suas crenças, seu Deus, suas metas. Nefert o respeitava nesse sentido, nunca tentou impôr sua religião ao menino, mas também não se permitia crer na religião monoteísta professada pelo povo dele. A muito custo ele conseguiu convencê-la a colocar o sangue do cordeiro na porta da casa dela no dia anterior, como Moisés ordenara. Merari sentia falta de conviver com seu povo, de vê-lo livre e ser livre para servirem ao Deus em que criam. Sentia falta da compreensão, da partilha, de unidade e integração que preenchessem sua vida espiritual. Queria poder ser livre para realizar seus sonhos como um hebreu, sem sentir que estava sendo desagradável ou incompreendido por sua senhora amiga Nefert e pelos egípcios que conviviam com ele. Orara muito a Deus pedindo uma oportunidade para isso, e quando soube que Moisés viera ao Egito com a missão de libertar o povo hebreu, não conseguia mais controlar a ansiedade por ir com ele e começar uma nova vida, sentindo a presença real de Deus e vivendo pelos cuidados e providência de Javé.
E agora Merari olhava Nefert com carinho ali, sentindo que ela estava sofrendo em ficar sozinha. Que ela não poderia ir com ele, mesmo que ele insistisse muito para que ela o acompanhasse... apesar dela ter um amor maternal pelo garoto, jamais conseguira entender e aceitar o sonho dele. O jovem hebreu se levantou ainda atordoado, e com a ajuda dela começou a pegar as suas coisas para a partida. Enquanto ía, rapidamente arrumando o que podia, olhava os objetos da casa com nostalgia: a mesa onde tantas vezes, depois de um longo dia trabalhando, Nefert havia lhe feito sentar para saborear as comidas que ela preparara com ternura, alguns brinquedos que ganhara dela ainda em sua infância e que conservava guardados carinhosamente, o jarro com flores que ainda ontem ele colhera para ela, em cada coisa havia uma lembrança de anos partilhados. Mas o tempo urgia e lá fora já se ouvia uma confusão de vozes humanas e barulho de animais em marcha. Não, ele não imaginara que seria assim tão rápido, que Deus agiria de forma tão maravilhosamente breve, e que não daria tempo nem de se despedir de todos os seus amigos egípcios e de enxugar as lágrimas de Nefert.
Merari se deu conta do que estava deixando para trás.. de todo o conforto, amizade, carinho, possibilidades que haviam para ele ali no Egito. Se deu conta que estava indo para o deserto sob a orientação de um homem que ele não conhecia, numa situação completamente imprevisível! O deserto não era apenas um lugar inóspito, mas com perigos imprevisíveis à espreita, ameaçando os viajantes inexperientes como ele, atraiçoando até
mesmo os que julgavam conhecê-lo mais. Além disso, os hebreus eram seu povo, mas Nefert era a sua família... e o Egito foi onde ele cresceu. Mesmo sabendo que , como hebreu, ele não poderia ser muita coisa ali, sua vida não era ruim, ele tinha tudo que precisava. Se ao menos Deus lhe tivesse dado mais tempo para se acomodar àquela situação, para assimilar tudo que estava acontecendo, as consequências que aquilo traria para a sua vida! No entanto, tempo era o que ele menos tinha... e agora era hora de deixar tudo para trás, tudo que construíra, que sonhara para realizar no Egito, os laços emocionais que o prendiam ali, e seguir confiando tão somente na promessa da liberdade e prosperidade que Deus prometera ao seu povo caso este confiasse nEle e fizesse a Sua vontade. "Que seja feita a vontade de Deus e não a minha!" foi o que pensou enquanto abraçava Nefert sem saber se algum dia tornaria a vê-la ou quanto tempo isso demoraria. Sem saber mais nada, a não ser que estava sendo guiado pela misericórdia divina.
Sabe amigos, eu sei exatamente como Merari se sentiu quando virou-se de costas para o lar onde cresceu e foi embora. Claro que ele tinha seu próprio contexto subjetivo, mas há sentimentos que os seres humanos sempre sentem num dado momento na vida. Há sempre uma hora em que precisamos recomeçar, mudar radicalmente, voltar à estaca zero. Isso no nosso lado afetivo, profissional , material ou espiritual, ou tudo ao mesmo tempo como foi o caso do nosso amigo hebreu. Perder a estabilidade, seja por um recomeço, mudança ou perda, é sempre uma experiência que envolve insegurança, receios e dúvidas, mesmo considerando a capacidade de cada um, individualmente, para lidar com isso.
No caso de nosso amiguinho aqui, tínhamos um jovem de fé e temente a Deus, que vivenciou a atuação deste Deus através do vários sinais dos quais Moisés foi canal naqueles dias. Seria o que hoje chamaríamos de um cristão convicto e verdadeiro, zeloso e fiel. Mas foi somente na experiência do Êxodo que Merari sentiu a totalidade da sua conversão, vindo a conhecer a conversão mental. O tipo de conversão a que Jesus se referia ao dizer: "Amarás o Senhor teu Deus... de todo o teu entendimento" Mateus 22:37.
Uma mente convertida é aquela que reconhece a necessidade de Deus acima do próprio Eu, e da fé acima da autosuficiência. Sabe, antes de qualquer coisa, raciocinar segundo uma confiança que provém da certeza que Deus está a controlar, e a partir disso permite que sua vida seja estruturada nos moldes divinos e não sob as próprias perspectivas. Isso influenciará de forma decisiva a maneira de encarar a vida e a si mesmo, de uma forma macro, micro ou laptop hehehe. Um cristão que passa pela conversão mental tem uma visão diferenciada do seu papel e do papel de Deus, consegue ver a atuação divina e descansar nessa visão, mesmo que ela seja a de uma pessoa querida chorando, da porta do seu lar ficando cada vez mais distante, do seu filho entrando numa sala de cirurgia, ou não saindo com vida dela, de uma marcha do deserto do desconhecido, de uma campo de batalha desolado onde você vê em tudo sinais de derrota, de um exército inimigo vindo em sua direção enquanto você canta, ou até mesmo dos soldados do seu exército abandonando o campo de batalha.
Merari, naquele dia, libertou-se não apenas da escravidão egípcia, mas de uma escravidão ainda mais algoz: a escravidão de si mesmo e de todas as coisas que o prendiam à impossibilidade de se entregar completamente a Deus. Livrou-se da tensão, ocupação e preocupação de depender de si mesmo, do desgaste enorme de força emocional e mental que vem da necessidade de achar garantias para si mesmo em coisas e pessoas, o tempo todo, para poder se sentir seguro (enquanto se julga estar sendo independente). Percebeu a liberdade no fato de não ter que se sentir "útil" e "importante", um "cara legal" em que Deus poderia confiar, pois o amor a Deus se perfaz justamente na capacidade de reconhecer as incapacidades, e permanecer tranquilo e sereno , coberto por Suas penas, seguro sob Suas asas, escudado por Sua Verdade (Salmo 91: 4).
Livre como na música da Sandy Patty: "You set me free, to fly, to soar to places I've not been before.. the boundaries of humanity cannot contain what You set free!"¹. Sentir a hora de estar sob as asas do Pai e a hora em que as próprias penas já cresceram, que o sangue de águia pulsa forte pedindo para alçar as alturas, cada músculo expressa a ânsia de quem nasceu para voar, e num frêmito se lança em vôo, enfrentando o risco das alturas, mas indo além das montanhas guiado pelo vôo do seu Pai.
Pode parecer poético, mas nem tente fazer com que a conversão mental seja racional... a entrega e o relacionamento com Deus a partir desta experiência assume um nível bem superior de racionalidade: a racionalidade divina, aquela, que a nossa visão não alcança e quando vislumbra, parece ver uma grande loucura ( I cor. 1:18, 2:14). Amar ao Senhor de toda a mente: buscá-lo através da doação de si mesmo, não se conformar com a mediocridade e a incompletude; ir além, até onde ele te fez capaz de ir, sentindo que você é um Filho de Deus em toda a sua totalidade.
Lançar fora a pretensão de querer saber tudo e o medo de não entender nada. Não se conformar com o que Deus fez por nós, mas fazer disso um motivo a mais para anelar absolutamente tudo que Ele ainda quer fazer. E a partir disso, experimentar, lembrar, compreender, fazer hipóteses e discernir como homem espiritual... "e a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus." Filipenses 4:7
E sabem? Apesar deste frio na barriga, eu quero alçar vôo...literalmente!;-)
Uma semana feliz e iluminada!!!

Lux Lunae

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