domingo, 7 de julho de 2002

A Ressurreição segundo Mahler

Quando a ouvi pela primeira vez, estava em São Paulo, escutando a FM Cultura no banco de trás do carro de um grande amigo meu. Acostumada que era em ouvir apenas obras barrocas e clássicas, curtinhas e sem predomínio de expressões emotivas, não tive estrutura para aguentar o peso daquela música me invadindo. No fim do primeiro movimento eu já estava profundamente emocionada com a sua força. Mais tarde, quando a ouvi por inteiro, minha paixão tornou-se completa. 

Uma das mais belas sinfonias de Gustav Mahler é, sem dúvida, a Segunda, denominada "Ressureição". Mahler, músico dado a composições grandiosas, conseguiu dar a essa sinfonia um tamanho descomunal, tanto em se tratando da mensagem como da execução da música. Para ter noção dessa grandeza, junte aí um conjunto enorme de instrumentos de cordas, com mais 70 instrumentos diversos, alguns deles fora do palco, incluindo dois sinos, e um coro de vozes imenso – a ideia era essa!

Os três primeiros movimentos da Segunda Sinfonia são todos instrumentais, e de acordo com indicação do próprio Mahler, o primeiro deles lança uma pergunta: "Com que finalidade viveu você?", a qual será respondida somente ao fim. A dúvida alterna momentos de uma atmosfera dramática, tensa, com passagens singelas e suaves. Quem já não meditou sobre esse tema alguma vez? 

"Por que amamos se vamos morrer? 
Por que morrer se amamos? 
Por que falta sentido 
No sentido de viver, amar, morrer?" 

 Já perguntava Drummond. 

No penúltimo movimento, aparece uma voz doce, um solo de contralto, cantando a "Luz primordial", onde o tema da dúvida se desenvolve. Mahler deixa entrever um ser humano em conflito, que vem de uma vida de sofrimentos e necessidades, querendo se manter no caminho de Deus, mas sendo constantemente tentado a se desviar dele. Seria tão melhor estar no Céu, ao invés de viver as amarguras da vida terrena... é tão cansativo travar essa luta constante, contra a carne, a injustiça e os anjos maus. Sua convicção, porém, não vacila, e repete contrito: "Eu sou de Deus e para Deus devo retornar.” 

Essa é a primeira faceta de uma ressurreição, que por vezes passa despercebida: a morte do velho homem, e a ressurreição de uma nova criatura em Cristo Jesus . Estar longe do caminho que conduz a Deus, é estar de certo modo, morto, posto que perece qualquer esperança para além desta vida fugaz. Quando nascemos de novo, já não nos conformamos em viver aqui só para comer, beber, apaixonar-se e morrer. É para isso que vivemos nesta terra? Somente lutas e sofrimentos salpicados por pequenos momentos de alegria, apenas ilusões, perdas e pálidas esperanças? Depois de satisfazer esta carne, o que nos resta? 

 Não, descobrimos um sentido maior, mais elevado, para o qual caminhamos, ainda que em luta constante contra nossa natureza, que teima em se apegar às coisas vãs desta vida. A pergunta permanece suspensa: Qual a razão de estarmos aqui? O solo de contralto termina com uma única certeza: Deus iluminará o caminho daqueles que decidirem segui-lO. 

Então começa o último movimento, o mais longo de uma sinfonia até então. Aqui, Mahler explora a força de todos os elementos musicais para expressar as passagens bíblicas que vão da volta de Jesus à ressurreição dos salvos. Quem já leu os últimos capítulos do "Grande Conflito"[1], ou já deu ao menos uma espiada no Apocalipse, pode imaginar o que Mahler conseguiu – e como conseguiu! – traduzir musicalmente. Nenhum filme de Hollywood conseguiria passar uma ideia tão real do juízo final como Mahler o faz através desse movimento. E de sobra, ele coloca aquele coral imenso para nos falar de uma das mais poéticas visões da Ressurreição, através dos versos de Friedich Klopstock

 Os versos são teologicamente perfeitos. A ressurreição dos justos é representada como está em Apocalipse 14:14-16; a ceifa, onde aqueles que morreram justificados em Cristo, ressurgirão, assim como a semente que morre, depois de um curto sono, torna à vida no mesmo lugar em que foi semeada, agora em aparência de glória. 

 E o homem angustiado, chega ao fim de suas dúvidas: “Você não nasceu em vão. Você não viveu e sofreu em vão.” A Ressurreição é a resposta a todos os sofrimentos que foram suportados e vencidos. “Oh, sofrimento todo-poderoso, agora eu escapei de você, Oh, morte sempre vitoriosa, agora você foi vencida!”. 

Aquele que deixou morrer o velho homem e confiou na “Luz primordial”, vencerá o mundo e a própria morte. De repente tudo parece claro, como a própria luz que emana do trono de Deus. Todas as renúncias que foram feitas, todas as dolorosas decisões em favor do bem, todos os pecados a que se resistiu mesmo que atormentassem a carne, toda fidelidade guardada a Deus a despeito de nossa dor, agora parecem tão pouco. O crente repete a si mesmo em júbilo: “Acredite, meu coração, acredite! Você não perdeu nada! Você receberá tudo que amou e desejou”. 

Não é lindo isso? Os que amaram os pecados e desejaram só as coisas deste mundo, terão aqui seus prazeres, e também seu fim. Mas os que passaram suas vidas amando e desejando estar junto de Jesus, receberão no final a recompensa suprema: o próprio Cristo. “Com as asas que eu ganhei, no ardor do amor, eu voarei para a luz que nenhum olho jamais viu.” E, por fim, o próprio Mahler conclui: “A dor que você levou, levará você a Deus.” Amém! Choro todas as vezes que ouço a música dizer isso outra vez.

Que a contemplação de uma Nova Terra, onde “não haverá nem luto, nem pranto, nem dor”, onde “nunca mais haverá qualquer maldição”, onde veremos Jesus face a face (Apocalipse 21: 4, 22: 3, 4), possa nos impressionar uma vez mais no início desta semana. E que a “Luz Primordial” dê força à nossa fé, e sentido a nossa breve existência neste mundo. 

 Uma semana iluminada, 

 Luciana 

  [1] WHITE, Ellen G. O Grande Conflito. São Paulo: CASA Publicadora, 2000. Capítulo “O livramento dos justos” e seguintes.

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