sábado, 20 de julho de 2002

Para Mônica

Olá amiga.

Escrevo a você, porque o Direito é essa Ilha da Fantasia, e você sabe. Escrevo-te também porque mesmo não tendo assistindo a defesa da sua tese de mestrado, sei que você se saiu muitíssimo bem. Talvez por isso, sempre que alguém se refere a Direito Penal eu lembro de você. Talvez também por isso eu tenha lembrado de você naquela noite.
Era por volta das vinte e duas horas. Eu e um amigo estávamos no ônibus, osolhos ardendo um pouco de sono, as línguas pesadas impedindo qualquer diálogo. O dia tinha consumido todas as nossas energias, agora queríamos simplesmente chegar em nossas casas. No interior do ônibus, as mesmas caras de sempre: alguns estudantes que acabaram de sair da aula, um casal estranho sentado à nossa frente, conversando sobre a economia no mundo globalizado, um rapaz ao lado, de camisa xadrez. As coisas só ficaram esquisitas quando o ônibus descreveu uma curva para entrar no bairro das Rocas, um dos maispobres da cidade, mas que está no itinerário de quase todos os coletivos daqui.
Uma barreira policial apareceu, e nossos olhos os vasculhavam, querendo saber do que se tratava. A princípio pensei ser só mais uma blitz da polícia rodoviária ou coisa assim. Mas pouco depois do ônibus parar, uma policial militar, muito distinta e educadamente, entrou no ônibus, olhou-nos fixamente por alguns segundos e começou a falar num tom cordial e firme:- Boa noite, senhoras e senhores. Nós estamos realizando um procedimento de rotina para a melhor segurança dos cidadãos.
"Segurança? Campanha educativa a essa hora?", eu pensei. "Rotina? Isso nuncaaconteceu aqui antes!", pensou meu amigo.
- Por isso queremos pedir que as senhoras abram suas bolsas e os senhores ponham-se de pé para uma revista que será feita pelos policiais.
Enquanto falava, vários homens armados entraram no ônibus pela porta de trás e passaram a revistar os cavalheiros que, automática e abobalhadamente, se punham de pé, e a olhar com o máximo de discrição as bolsas escancaradas das damas boquiabertas.
- Obrigada, tenham uma boa noite.
O homem de camisa xadrez demorou um pouco para tornar a sentar. Um coro de estudantes excitados com a novidade respondeu: "Boa noite!", e eufóricos, deram tchauzinhos para os policiais enquanto o ônibus continuava seu caminho.
Meus olhos ainda ardiam de sono, mas minha língua, de repente, começou a tagarelar. Meu amigo fazia força para compreender aqueles termos técnicos de Direito ditos entre o barulho alto do motor do ônibus e das risadinhas dos estudantes espevitados. Eu falava, ao mesmo tempo em que recordava, todas aquelas coisas que nós duas aprendemos nos bancos da faculdade. Você sabe, a tal presunção de inocência. Sei que isso tem uma dezena de desdobramentos, mas eu queria me deter no mais elementar.
Disseram-nos que esse princípio estava garantido pela Constituição Federal, nossa Lei Magna, que governa todas as demais leis no país. Explicaram que se tratava de um direito que todo cidadão tem, o jus libertatis, que apesar do latim, a gente logo desconfiou ser o velho direito à liberdade. Disseram que por esse princípio, ninguém pode ser acusado de crime algum, a não ser por uma sentença definitiva, decorrente de um julgamento justo. Você deve lembrar melhor que eu. Falaram que o Direito existe para dar ao homemgarantias, nesse caso, a garantia de que ele não será privado da sua liberdade nem da sua prerrogativa de bom cidadão, cumpridor de seus deveres, só porque alguém não foi com a cara dele. E a gente saiu da aula acreditando que o Estado jamais ousaria violar a Lei Maior, e nos punir por algo que não fizemos. Que nossa inocência estava garantida, e quem a questionasse teria que provar isso em juízo. Que mesmo que fôssemos acusadas de um crime e as evidências não estivessem ao nosso favor, receberíamos durante o processocriminal, um tratamento digno, tratamento de um cidadão respeitável e honesto. Que se durante esse processo houvesse alguma dúvida, o juiz decidiria em nosso favor: "in dubio pro reo", falou o professor sempre ávido de latim. Arremataram citando a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto de São José da Costa Rica. Enfim, minha amiga, saímos da aula deslumbradas com nosso Estado de Direito, que defende os seus com justiça e equidade.
Mas ao pegarmos o ônibus a fim de irmos para casa, lá estava o adesivo amarelinho dizendo: "Sorria! Você está sendo filmado". E quando quisemos entrar no banco, tivemos que depositar nossas chaves e celulares naquela caixinha de acrílico. Uma ou outra vez esquecemos uma sombrinha dentro da bolsa e passamos por aquele constrangimento de ficarmos presas na porta travada, com todos os olhares em nossa direção insinuando algo que preferimos ignorar. Quando fomos gastar nosso primeiro salário, comprando aquele móvel em prestações, pediram documentos que a gente nem sabia que existia, comprovante de renda e carteirinha de vacinação. Ligaram para nossos amigos para saber se éramos confiáveis, perguntando até se faltávamos às aulas de educação física no colégio. Ouvimos histórias engraçadas de amigos que tiveram as roupas íntimas expostas em alfândegas, e nenhum deles ousou mencionar o Pacto de São José da Costa Rica. No estágio obrigatório do nosso curso, ouvimos histórias bem mais horripilantes de cidadãos, que deveriam estar protegidos pela Lei Magna, mas encontravam-se presos em cadeias públicas e delegacias, sofrendo todo tipo de violência física, mental e moral, apesar de não terem sido ainda condenados, ou de já terem pagado a pena que lhes cabia.
Bem, até aí já desconfiávamos de que alguma coisa estava errada, e talvez não tivessem avisado nada aos nossos professores. Na verdade nos acostumamos a conviver na sociedade sendo tratadas como criminosas, por adesivos amarelinhos, portas de bancos, e o pessoal das alfândegas e financeiras. Dissemos a nós mesmas que era o preço por nossa segurança. Lamentamos a situação dos milhares de presos em situação irregular. Mas minha amiga, precisei passar pela experiência naquela blitz policial, para ter noção de quão utópicas são nossas teorias sobre presunção de inocência, garantias, direitos do cidadão, liberdade e - uma coisa de que não falaram no curso – respeito.
Por mais bela que seja a Constituição, somos considerados todos criminosos até que provemos o contrário. E contra isso, nada pode o nosso Direito, pouco vale a nossa Justiça. Não importa se nos acusam ou não de um delito específico, reina a desconfiança universal de que somos infratores. E se não o somos, temos o potencial de o ser, é o que dizem os desivos nas lojas e provadores: "nossa mercadoria está protegida eletronicamente contra qualquer tentativa de você nos roubar, é você mesmo aí com essa cara de inocente, seufingido. Pensa que eu não sei que você matou aquela aula na terceira série? Pensa que eu não vi você cortando aquele sinal vermelho? E aquela grana que pegou emprestado do teu amigo, seu inadimplente, pensa que eu não sei?". Não adianta muito achar seu crime pequeno: "quem mente, rouba, e quem rouba, mata", diz o ditado popular.
Sabe, amiga Mônica, é por isso que me conforta tanto a Pessoa da Justiça em Jesus Cristo, em detrimento do nosso mesquinho senso de justiça. Somente no sangue de Cordeiro de Deus há a verdadeira presunção de inocência amparando a cada um de nós. Contra o poder redentor desse sangue não subsiste nenhuma acusação. Por mais que, nesse caso, tenhamos verdadeiramente cometido o delito, e o Inimigo aponte com fúria para nossos pecados, Jesus nos concede a graça de alvejarmos nossas vestes em Seu sangue, e assim sermoscompletamente justificados. Porque ele nos amou enquanto ainda éramos culpados. No momento em que aceitamos o sacrifício da cruz e o poder da tumba vazia em nossas vidas, nossos pecados são apagados e somos considerados inocentes perante o Universo. Ele já carregou os sofrimentos e culpas que nos pertenciam. Fomos reconciliados com o Pai, que agora ao olhar para nós, não enxerga mais nossas transgressões, mas vê os traços do SeuFilho Jesus em nossos rostos. "Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu, ou, antes, ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós... Agora, pois, já não há nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus." (Romanos 8: 33, 34, 1)
Quanto ao mais, Cristo já deixou todos os sinais de que estamos seguros em Seu amor, que somos cidadãos do Céu, e a ninguém debaixo deste Céu, foi dada autoridade para acusar os filhos de Deus, desrespeitá-los, nem tratá-los abaixo do padrão principesco com o qual merecem ser tratados. Nem anjos, nem poderes, nem eu mesma ou qualquer outra criatura podem escapar a essa norma que Deus pôs sobre o meu e o teu viver. Quem o fizer prestará contas a Deus, por violar a Lei Magna que nos rege: a Lei do Amor Infinito dEle pelo serhumano.Pelo princípio da presunção da inocência - o verdadeiro - Cristo nos concede o direito à liberdade, e o dever de amar. Livres e felizes, você sabe: exatamente a condição para que fomos criados.

Uma semana iluminada,

Luciana

2 comentários:

Luciana Teixeira disse...

Saudades da Mônica, do GEA, das muitas pessoas (raras) que conheci através do envio desses textos.
O Rubens, por exemplo, conheci quando ele respondeu a essa mensagem com uma música do Renato Russo (Sagrado Coração).

Luciana Teixeira disse...

Acho que a maior saudade é de ter vida intelectual kkkkkkkkkkk