quarta-feira, 22 de setembro de 2004

Doce ignorancia (Ana Karenina)

Tia Maria tem um pequeno sítio que foi cenário de muitas aventuras em minha infância. Lá minha família se juntava de vez em quando, e era aquele mundaréu de tios, tias e primos se espalhando por todos os lados. Quando criança eu achava aquele lugar enorme, cheio de possibilidades e surpresas. Tinha uma mangueira secular repleta de frutas, um fosso com jacaré dentro, tartarugas perto do rio, uma pequena e misteriosa casa abandonada, uma carroça que nos levava pelo pomar e um caminhão que nos botava o maior medo. Mas nada foi mais mágico que encontrar o forno à lenha perto do pomar, com um caldeirão enorme de barro que era onde se fazia doce. O forno ainda estava quente pois minha tia o tinha usado há pouco. A colher de pau gigante nos tentava, e nós, aproveitando que as mães debulhavam feijão verde mais adiante, resolvemos fazer nosso próprio doce. Mas de que? As goiabas já haviam sido colhidas e as outras frutas ficavam longe. Alguém disse: “mamãe não vai gostar de saber que brincamos com fogo”, mas ninguém o ouviu. Sem frutas, resolvemos pegar as folhas da goiaba e colocar no caldeirão, o que rendeu uma calda transparente muito bonita. Alguém conseguiu pegar açúcar na cozinha e em breve tínhamos nosso próprio doce de folha de goiaba em calda. O gosto era o que menos importava frente à proeza, mas nós comemos. O que não conhecíamos na época eram as magníficas propriedades laxativas da folha da goiaba, o que ocasionou um congestionamento memorável nos banheiros da minha tia.

Eu lembrei desse episódio enquanto lia um trecho de Ana Karenine, de Tolstoi, onde o personagem Levine compreende a extensão da fé em Deus ao lembrar de uma cena semelhante, em que crianças brincavam de fazer doce e jogavam comida fora, ficando zangadas ao serem interrompidas por sua mãe, a qual tentava explicar-lhes porque não deviam fazer aquilo. As crianças permaneciam chateadas e céticas porque não entendiam que estavam destruindo a própria subsistência. “Tudo isso é muito bonito e bom, mas o que nos dão é assim tão precioso? É sempre o mesmo, hoje, como ontem, enquanto que é divertido fazer doces à vela e atirar leite na cara; é uma brincadeira nova e de nossa invenção”. E ele conclui:

“Não foi assim que nós fizemos, que eu também por meu turno fiz, querendo penetrar pelo raciocínio os segredos da natureza e da vida humana? Não é o que fazem os filósofos com suas teorias? Que se deixe as crianças procurarem por si próprias o seu sustento, e em lugar de fazerem brincadeiras morreriam de fome... que nos deixem, a nós, entregues às nossas idéias e às nossas paixões, sem o conhecimento do nosso Criador, sem o sentimento do bem e do mal moral!... Que resultados se obterão?Eu, cristão, educado na fé, cumulado de benefícios do cristianismo, vivendo desses benefícios sem ter consciência disso, e, como essas crianças, procurei destruir a essência da minha própria vida... Sim, a razão nada me ensinou; o que eu sei, foi-me dado, revelado...”

Comparo o pensamento de Levine, para quem o ensino da razão só pode levar a deduções lógicas, mas não ao sentido da vida, ao pensamento de muitos cristãos que tentam espremer Deus dentro de uma lógica. Alguns desses desenvolveram teorias que lhes satisfazem o intelecto enquanto os obriga a ignorar um ingrediente vital para o espírito: o conhecimento de Deus (Filipenses 3:8 – 11). Não o conhecimento que se adquire pela mera reflexão lógica, pois que lógica pode haver no amor? Como achar razão em viver para Deus ao invés de viver para a satisfação das próprias necessidades? Que Deus razoável é esse que entrega um Filho para morrer por pecadores que, em seu natural, ocupam-se de destruir aquilo que lhes é dado? E principalmente, que felicidade é essa que se acha em se submeter à Lei dEsse Deus?

Como percebeu o personagem de Tolstoi, a compreensão da fé e da felicidade em Deus não é para quem raciocina em busca de uma resposta, mas é para quem procura a paz. A partir disso, pode-se compreender a necessidade que temos dEsse Deus e de viver o cristianismo tal como Ele requer. Se assim não for, caímos inevitavelmente na tentação de raciocinar Deus com nossa mente finita em busca de uma espécie de glória própria: “mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor...” (Jeremias 9:24). Uma das teorias que resultam desse esforço vão é o antinomismo, que nega a necessidade da Lei de Deus na vida dos cristãos. É uma teoria já antiga, surgida com o gnosticismo na igreja cristã primitiva, e combatida pelos apóstolos, mas que perdura até hoje. prega que a “intenção” de amor basta para salvar o espírito, e que a salvação prescinde regras de conduta. Assumindo outras ramificações, como o dispensacionalismo, negam a necessidade da Lei de Deus.

Mas quanto mais eu ouço teorias de uma liberdade sem a Vontade expressa de Deus, mais eu lembro do meu doce de folhas de goiaba em calda. A Bíblia em diversas passagens nos apresenta a Lei de Deus como reflexo de seu caráter, e demonstração prática da tal “intenção” de amor (Mateus 5:17; Romanos 3:8-10; Romanos 3:31; I Jo 6:9-11; I Jo 1:8; Salmo 119). Mas além do conhecimento intelectual e moral de Deus, é preciso um conhecimento volitivo, que vem somente pela fé em Jesus Cristo. E é conhecendo-o que compreenderemos na totalidade a alegria de obedecer a Lei de Deus. Veremos o modo maravilhoso como a Lei “desmascara a falsidade do amor que não aceita suas responsabilidades para com Deus e o próximo”¹. Nos descobriremos dEle, tal como Ele nos sabe Seus. E só então deixaremos de querer ter razão para querer mais do melhor conhecimento.

Durante esta semana desejo que compreendamos a amplitude da graça, da paz e do bem que há na Lei de Deus e no conhecimento de Cristo Jesus. Não é maravilhoso? O Gnosticismo (do grego, gnosis = conhecimento) pregava um conhecimento reservado a poucos, alcançado somente por senhas místicas, pelo ascetismo, por um caminho de esforço humano. O Cristianismo são prega um conhecimento que nos é dado a todos de Graça, que transforma-nos para a felicidade e para o amor em sua plenitude. Oremos, pois, como Moisés: “Rogo-te para que me faças saber neste momento o Teu caminho, para que eu Te conheça e ache graça aos Teus olhos” (Êxodo 33: 13)
Uma semana iluminada,
Luciana

¹Comentário da Bíblia de Genebra. Ver. Antinomismo. I João 3:7

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