terça-feira, 7 de setembro de 2004

Pelo mundo

“- Me diga uma coisa. Você vai mesmo salvar a humanidade?
- É curioso como eu penso agora nestas coisas. Antigamente só pensava em mim mesmo. Vivia como cego. Foi Olívia quem me fez enxergar claro. Ela me fez ver que a felicidade não é sucesso, o conforto. Uma simples frase me deixou pensando: `Considerai os lírios do campo. Eles não fiam nem tecem e no entanto nem Salomão em toda a sua glória se cobriu como um deles.´”


O diálogo acima ocorre entre Seixas e Eugênio, dois personagens do livro “Olhai os Lírios do Campo”, de Érico Veríssimo. O primeiro contato que travei com este livro foi quando eu tinha por volta de onze anos, e folheava um livro antigo de Educação, Moral e Cívica, disciplina modorrenta que atormentou alunos da década de setenta e oitenta. O que eu gostava no livro eram uns quadrinhos enfeitados com flores e folhas, onde o autor colocava frases de efeitos, pequenas histórias bonitinhas, fábulas e anedotas de efeito moral. Algo correspondente aos modernos sites de mensagens enlatadas, aquelas cheias de figuras bonitinhas e efeitos audiovisuais que até nos fazem perdoar a mania deles atribuírem textos sofríveis a grandes poetas. Pois bem, eu recortava impiedosamente os quadrinhos enfeitados e colava-os em meu diário, escrevendo textos melancólicos ao seu lado. Por essa época eu achava que para escrever bem se tinha que ser melancólico. Por isso fiquei atônita quando li um quadrinho do citado livro. Ele não trazia nenhuma historinha ou frase, mas uma citação que dizia:

“Estive pensando muito na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É essa a causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época. Eles esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as relações de criatura para criatura.”

E continuava, me prendendo a cada palavra, até terminar com a referência enigmática: Olhai os Lírios do Campo – Érico Veríssimo. O texto me impressionou tanto que não tive coragem de cortá-lo. Intui pela primeira vez que isso seria uma forma de profanação, e sem saber exatamente o que sentia, guardei-o na mente por muito tempo, admirando-o e fugindo dele. Tanto que sempre que tinha oportunidade de ler o livro, adiava, e foi assim até algumas semanas atrás, quando amanheci pensando no Sermão do Monte, exatamente no versículo citado acima que dá nome ao livro. Escrevi a um amigo e não resisti: enviei-lhe o versículo em latim. Depois, escolhendo aleatoriamente algo para ler no fim de semana, tomei o livro sem perceber a associação e levei-o junto com um Fernando Sabino e uma Lygia Fagundes Telles. Li-o por último, em desespero: como pude adiar tanto tempo aquela leitura? O impacto que ele causou em mim foi parecido com o causado por Crime e Castigo, de Dostoiévsky, sendo que o de Veríssimo mostra mais que a transição ocorrida no espírito de um homem perturbado, e percorre também o desenrolar de sua nova vida, com um realismo tocante. Nenhuma promessa, nenhum cenário brusco: apenas uma vida e suas lutas em busca de paz.

Não vou além porque não quero fazer uma sinopse dele, nem ficar divagando ao seu redor, que serei tentada a fazer dezenas de citações, terminando por cansar absolutamente que já teve a paciência de ler esta exaustiva introdução. Não quero cometer o mesmo erro do livro de Educação, Moral e Cívica, e usar uma literatura tal para forjar lições e conselhos. Mas preciso – é-me visceral – dizer que Olhai os Lírios do Campo me pôs a olhar demoradamente o mundo. E amá-lo um pouco mais.

Pois é, amá-lo não obstante o mundo esteja entre os chavões preferidos das religiões cristãs. O mundo é sempre citado como um lugar perverso, cheio de enganos, de maldade, o lugar dominado pelo Príncipe do Mal. Um lugar de onde os cristãos precisam sair e se manter bem longe a fim de alcançarem a salvação. “Você está no mundo, mas não pertence a ele”, nos advertem, e não sei porque só se nos grava a segunda parte da frase.

O que Eugênio e Olívia me fizeram pensar enquanto eu lia “Olhais os Lírios do Campo”, é que deveríamos meditar mais sobre o fato de estarmos no mundo. E que existem muitos outros nessa condição. O mundo é um lugar ruim? É o que nos dizem todos os jornais. Um mundo escuro, cheio de problemas. Mas é neste mundinho ruim que se opera nossas mais preciosas oportunidades de salvação. Salvar o mundo? Não, esse discurso nós já conhecemos bem e creio ser o caminho mais difícil sem que antes se realize o milagre de sermos salvos... pelo mundo. Pode parecer estranho dizer isso, quando se foi tanto educado a começar pelo processo inverso. Mas basta aprofundar a visão do que foi o ministério de Cristo para vermos dissipada qualquer dúvida. O mundo é um dos pregadores mais eloqüentes que pode haver, um dos instrumentos mais eficazes para a salvação em Cristo Jesus.

A igreja não é apenas um lugar onde devemos nos abrigar dos problemas, fugir da escuridão, ficarmos enclausurados pensando “claro que Deus quer seus filhos seguros aqui, perto dEle”. Esse pensamento é agradável porque cômodo. Mas a verdade é que esse Deus, quando se fez Homem, levou tudo aquilo que ele conheceu junto do Pai para o mundo, mesmo em seus lugares mais obscuros, e é justo aí que se opera a salvação: no lugar onde mais se carece dela, onde mais se precisa de demonstrações concretas de amor.

Pode ser que ao me encontrar no meio do mundo, enfrentando-o ao invés de fugir dele, eu descubra que sou eu, muito mais do que o mundo, que necessita de salvação. Foi isso que aconteceu com Eugênio, por exemplo. Só em contato direto com um mundo real, com as pessoas reais desse mundo, seus problemas e necessidades, é que ele pôde alcançar a paz, conhecer Deus e sentir a necessidade de um mundo melhor, superior. No conforto entorpecente dos nossos lares, igrejas e demais instituições, nesse conforto que parece ser mesmo o alvo insano de muitas vidas, os nossos sentidos tendem a se embotar e desligar do Deus verdadeiro, do Deus que nos ensinou que não somos como o mundo, mas podemos amá-lo profundamente, e transforma-lo, e sermos transformados através ele, à medida que nos aproximamos mais do caráter de Jesus.

O mundo é um lugar perigoso apenas para aqueles cristãos incapazes de viver em coerência com aquilo que pregam. Não conheceríamos o poder da luz se não a levássemos à escuridão, não entregaríamos o nosso coração a Deus se não nos deparássemos com corações endurecidos, não teríamos esperança se não percebêssemos a descrença. Cristo ainda passeia por entre a multidão de famintos que segue errante fora das paredes da nossa igreja. E digo-lhes com sinceridade: se Cristo deu sua vida para salvar o mundo, eu quero estar no mundo quando ele voltar. Quero que me encontre fazendo aquilo para o que Ele me chamou: “assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos céus.” (Mateus 5:16). Acho que só vou saber mesmo o que significa a tão sonhada nova Terra, se eu aprender a viver como cristã nesta Terra aqui.

No mundo vamos encontrar muitos erros, e muita gente dizendo que errar é humano, muita gente dizendo muita coisa – como eu. Mas temos a Bíblia, maior fonte de força e inspiração, nos fazendo um convite a sermos semelhante ao Verbo, e agirmos. “Porque”, como dizia Olívia, “só valem as experiências que fazemos com a nossa própria carne. Pode ser que tudo isso seja apenas um grande sonho. Mas sonhar também é humano.”

Uma semana iluminada,

Luciana

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