sábado, 11 de setembro de 2004

Por outros olhos

Depois de mais de seis meses consegui colocar meu computador para funcionar, e passei algum tempo remexendo velhos arquivos para ter certeza que ainda estava tudo lá. Foi divertido me deparar com minha mania de querer registrar tudo, como se a vida tivesse que ficar escrita sob pena de não ter, de fato, existido. Encontrei, com delícia, vários escritos antigos, contos, cartas, poesias, coisas boas, emocionantes ou muito ruins, que me fizeram chorar de comoção ou riso. Considero meus textos como filhos (e há alguns que só saem a fórceps). Mas foram uns os olhos que os viram nascer, hoje são outros os mesmos olhos que os lêem.

As lembranças vieram em turbilhão: alguns destes textos nunca saíram do meu computador. Muitos ficaram incompletos, suspensos numa intenção que provavelmente eu nunca vou conseguir resgatar. Outros, mais ousados, freqüentaram concursos literários, e uns pouquinhos me deram a felicidade de ganhar dois livros de presente (eram os prêmios dos concursos), e um belo “certificado de honra ao mérito por conseguir a classificação entre os sessenta finalistas”. Nada que me mova a criar um novo movimento literário, mas o suficiente para eu mostrar aos meus netos enternecidos, que Deus há de querer bem generosos, a fim de se importarem com isso.

Todo esse reencontro comigo mesma me fez pensar que já tive muitos olhos, os quais tomei emprestado de muita gente especial que passou por meu caminho. Antes de todos, a minha mãe, que guardava com carinho os livros que eu escrevia e ilustrava lá pelos nove, dez anos. Mas os olhos dela eram ternos demais e se comoviam mesmo diante de títulos como “Flipinho, o peixinho”. Dada a benesse materna, eu me animei a começar a fazer poesias e mostrar para minhas professoras. Elas pareciam gostar também! Então lá pela quarta série eu me arrisquei a fazer algumas redações de cunho político-social que deixou em polvorosa a pacata Escola Vovó Libânia, e tia Roseane correu para mostra-las às outras tias, inclusive tia Graça, que colocou uma observação bem bonita e elogiosa no meu caderno. Um elogio de tia Graça, para mim, era toda a glória que qualquer escritor jamais poderia sonhar. E eu tomei os olhos de tia Graça para criar.

Um dia conheci Machado de Assis e tive meu encontro definitivo com a literatura. Mas que olhos assustadores! E à medida que eu procurava por mais autores, mais olhos assustadores me cercavam, todos muito grandes para caber em minhas órbitas oculares... por isso pedi emprestados olhos de amigos mais letrados, professores, até mesmo namorados, para quem dirigi boa parte de minha “produção”. Prestava bastante atenção na mágica que havia nos textos dos mestres, o que exatamente eles colocavam ali que me manipulava tão bem. Estudava embevecida causa e efeito, letra e sensação, tentava aplicar aquilo ao meu modo, e colhia o singelo resultado no semblante e na opinião de gente que, como eu, também gostava de ler ou escrever.

Ao longo do tempo essas pessoas foram mudando, e eu mesma mudei, me permitindo deixar-me um olho para analisar minhas crias, e tomar outro emprestado para garantir que não seria complacente demais comigo. Assim, por outros olhos, eu já tornei meus textos mais objetivos, mais impessoais, mais sentimentais, mais espirituais, mais humanos, mais sociais, dependendo sempre do olhar que eu escolhia como meu parâmetro. E não dava o texto por terminado enquanto não imaginasse como determinada pessoa (eu mesma, às vezes, por que não?) reagiria aqui e ali, e cortava, e emendava, e acrescentava, e o mais importante é que escrever continuou sendo um momento feliz.

Curioso, não? Mas algumas das coisas que mais gosto – música, escrita, pintura – aprendi por outros olhos. Maquiavel, certa vez, sentenciou: “O homem prudente deve seguir sempre as vias traçadas pelas grandes personagens e imitar aqueles que forem muito excelentes, para que, se o seu talento não lhe permitir igualá-los, consiga ao menos alguma semelhança”. E olhar por outros olhos nada mais é que se colocar no lugar de alguém e imitá-lo naquilo que você acha que ele tem de melhor.

Acredito que nossa amizade com Cristo exige muito dessa “técnica”, por assim dizer. Não se trata de anularmos nossa personalidade idealizando um ser abstrato, mas aprimorar nosso caráter segundo o que consideramos mais perfeito no exemplo concreto que está registrado em Sua Palavra e na memória do nosso relacionamento com Ele. Os meus olhos não conhecem de todo a bondade, a misericórdia, a paz, a sinceridade, o amor. Mas sei que pelos olhos de Cristo eu tenho o melhor parâmetro para trabalhar todos os meus atos, palavras e pensamentos, de modo a refletir “tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor...” (Filipenses 4:8)

Perguntar-se “O que Jesus faria em meu lugar”, não é uma frase aplicável só às crianças da escola bíblica na igreja. Antes, ter a preocupação em olhar pelos olhos de Cristo serve “para que não mais sejamos meninos, inconstantes, levados ao redor por todo vento de doutrina, pela fraudulência dos homens, pela astúcia tendente à maquinação do erro, antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo” (Efésios 4:14 e 15). Se há algo que aprendi olhando o desenrolar da minha mania de escrever, é que somos felizes fazendo aquilo para o que nos sentimos particularmente chamados, dando nisso nosso melhor, e nos descobrindo únicos e especiais pelos olhos de quem sabe o que é especial. Desejo que todos os dias, encontremos a felicidade de andarmos na nossa soberana vocação, “não segundo as nossas obras, mas segundo o Seu próprio propósito e a graça que nos foi dada em Cristo Jesus...” (II Timóteo 1:9)

Bom sábado!

Luciana

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