sexta-feira, 6 de março de 2009

Adveniat - Senhor, serei eu?

Seguindo a mesma linha do devocional anterior, este, escrito para o site Adveniat também retomou um escrito antigo (de 2002) sobre uma obra de que gosto muito. Só retoquei o texto para o formato so site, "enxugando-o" Ai, preciso retomar minhas audições sabáticas de música sacra. Este hábito, que aprendi na casa do meu saudoso amigo Elias Tavares, é algo que mantém a atmosfera do meu sábado bem próxima a do Céu.
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Você sabia que nesta semana comemorou-se pela primeira vez no Brasil o Dia Nacional da Música Clássica? Cinco de Março foi o dia escolhido por tratar-se do aniversário do compositor Heitor Villa-Lobos. Como o tema “Música” muito me apraz, eu não poderia deixar de recomendar uma de minhas obras preferidas, embora ela não seja exatamente Clássica no sentido mais estrito do termo. Trata-se, na verdade, de uma música barroca, e certamente uma das mais belas obras de música sacra. Chama-se “A Paixão segundo São Mateus”, de Bach. Mesmo que seu gosto pessoal não o motive a comemorar a mais nova celebração nacional, há algo de espiritual nessa composição que você não pode deixar passar.

O pesquisador Otto Maria Carpeaux classifica A Paixão Segundo São Mateus como “uma obra de tão profunda emoção religiosa a ponto de converter um ateu”. De fato, ela é de uma mensagem tão poderosa que já se deu a Bach o título de “Quinto evangelista”. A pregação não se limita à exposição de um drama distante: o uso genial da forma coral permite que Bach transforme a música em prece íntima, e realize a introspecção da mensagem na congregação.

Um exemplo desse magnífico efeito está na primeira parte da Paixão Segundo São Mateus, que expõe o momento em que Jesus anuncia aos discípulos que será traído. “Um de vós me trairá”, canta a voz do baixo. O narrador diz: “E eles, mutíssimo tristes começam a perguntar...” (Mateus 26:22). Então entra o coro dramático dos apóstolos perguntando “Senhor, serei eu?”, pergunta que é repetida onze vezes, o que nos faz lembrar que Judas calou-se. Nesse momento, todos esperam que se siga a narração conforme está na Bíblia, com Jesus indicando os sinais do traidor. A pergunta “Senhor, serei eu?” ainda está suspensa por um acorde interrogativo. Bach toma um rumo menos óbvio e quando se espera que Jesus diga que Judas é o traidor, entra um novo coro de vozes, que, representando as vozes da congregação, anuncia outro culpado: “Sou eu!”.

De repente, os olhares que se voltavam para Judas, passam a olhar para si mesmos, e cada pessoa presente na igreja passa a se sentir pessoalmente culpada pela morte de Cristo. Ao contrário do que poderia se imaginar, esse coro não tem em nenhuma de suas notas um tom acusador, mas contrito, de um pecador que se reconhece mau. Ninguém pode ouvir esse coro sem sentir em seu coração que, em algum momento, também traiu Jesus, e merecia sofrer as penas do pecado no lugar dEle. “Vossos sofrimentos redimiram minha alma”, termina o coro deixando emocionado e surpreso o ouvinte.

Só depois disso é que o relato prossegue. Judas pergunta: “Senhor, serei eu?” e Jesus termina afirmando: “Tu o disseste”. Pronto, Bach mostrou a Cristo. Não um Cristo que chama nossos nomes para acusar, mas um Cristo que por Seu sacrifício de amor nos constrange a reconhecermos nossas culpas. Um Cristo a quem nós, todos os dias, crucificamos mais uma vez, e traímos tal como Judas quando cedemos ao pecado. Um Cristo que, ainda assim, sofreu para redimir nossas almas. Bach nos faz imaginar que até aquele “Tu o disseste” foi dito com amor e compaixão.

O sangue que flui das mãos onde cravamos, por nossas culpas, dolorosos pregos, é o mesmo sangue que nos limpa e reconcilia com Deus. A culpa do pecado, que é também a culpa que temos pela morte de Cristo, não nos é imputada devido a graça amorável dEle. Que ao começarmos esta semana possamos perguntar: “Senhor, serei eu?” E quando nos vir arrependidos, Jesus chamará o nosso nome, não para nos acusar, mas para nos dizer: “Filho, alegre-se! Perdoados estão os teus pecados” (Mateus 9:2).

Eis, Jesus estende Suas mãos para nos segurar. Vem!
Onde?
Para os braços de Jesus! Procura redenção, procura misericórdia, procura-te!
Onde?
Nos braços de Jesus! Vive, morre, fica aqui, Tu aflito. Fica aqui.
Onde?
Nos braços de Jesus!

Mas isso já é outro coro...


Nota: Paixão é como se chama o relato do sofrimento e crucifixão de Cristo nos quatro dias que antecedem a páscoa. Cantar a Paixão de Cristo era tradição na liturgia da igreja católica desde o século XIII, que mais tarde foi introduzida na liturgia protestante por Martinho Lutero, e alcançou seu clímax em Bach, que a apresentou na forma de oratórios. A Paixão Segundo São Mateus foi apresentada pela primeira vez em 1729, na igreja de São Tomás em Leipzig. Mas depois a Europa quase esqueceu que um dia existira um compositor chamado Bach. Exatamente cem anos depois, sob a regência de Mendelssohn, o impacto que esse oratório causou foi tão grande que fez a obra de Bach ser “ressuscitada”, estudada e reconhecida como um dos cumes da História da Música.

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