segunda-feira, 29 de novembro de 2004

Novembro

Não consigo pensar em novembro sem sentir calor. Aliás, neste exato momento o calor de novembro me impede de sequer pensar com eficácia. E eu não gosto muito do nosso afamado calor tropical, nem do famigerado verão nordestino. Ele me deixa mole, doentia e perturbada. De tal forma que me leva até a geladeira e me deixa alguns minutos diante de sua porta aberta até que eu descubra que não fui fazer nada ali além de sentir um pouquinho de frio. Banho não resolve porque a água do chuveiro também está quente. E agora? Enquanto muitos buscam seu lugar ao sol, eu fujo dele. Piscina? Tenho alergia a cloro. Praia? Muitos problemas. Em Boa Viagem corro o risco de ser atacada por tubarões ou micoses ferozes. Debaixo do guarda-sol tenho que interromper de três em três minutos uma possível leitura por causa de um ambulante. E não dá pra ficar torrando e suando ao sol como a multidão. Solução seria seguir trezentos quilômetros ao norte para encontrar um lugar mais adequado, mas até lá eu cozinharia. Ou seja, o calor me deixa chata mesmo.

O jeito é apelar para o ventilador, um suco de acerola geladinho, e com melhor humor pensar em Deus. A Bíblia me faz refletir: o que faria um homem realmente sábio num dia quente de novembro recifense? E este pensamento me leva ao livro de Eclesiastes, cuja autoria, atribuída a Salomão, é referência em se tratando de sabedoria. Segundo uma superficial pesquisa que fiz, o Pregador, como se intitula o autor do livro, era um homem experimentado em verões. Ele usa trinta vezes a expressão “debaixo do sol”, o que leva a crer que isto era algo bem conhecido em suas sábias andanças. Mas apesar de Salomão não ter estado em Boa Viagem, é de admirar que ele por vezes parecesse tão mau-humorado. Pessimista talvez fosse a melhor palavra. O fato é que não era só o calor que incomodava Salomão debaixo do sol. No livro de Eclesiastes ele cita várias motivos de desânimo, fatos tristes e características ruins do povo e da vida em si (1:14, 2:17,3:16, 4:1, 4:3, 5:13, 9:3).

Eu imagino o sábio sentado, olhando desolado o horizonte, coçando a barba sem vontade, olhando a poeira quente parada diante de si. Tudo que vê o desanima ainda mais: “Pelo que aborreci a vida, porque a obra que se faz debaixo do sol me era penosa; sim, tudo é vaidade e desejo vão.” (2:17). Ele insiste na volatilidade, na impermanência. Mas por um momento seu olhos brilham, um leve sorriso se esboça em sua face e ele consegue divisar, em meio a todo esse quadro de pessimismo e cansaço, algo bom e belo: “gozar cada um do bem de seu trabalho, com que se afadigou debaixo do sol, durante os poucos dias da vida que Deus lhe deu” (5:18). E mais tarde ele volta a insistir que a alegria de desfrutar o resultado de tudo em que nos empenhamos aqui é graça de Deus (8:15). “Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida fugaz, os quais Deus te deu debaixo do Sol” (9:9), ele enfatiza. E me faz pensar que focalizar e valorizar nossos objetivos, as pessoas que nos motivam, e a fé de que Deus tem tudo isso em Suas mãos, nada mais é que aquela tal felicidade. Fazendo isso nada mais nos perturbará debaixo do sol – ainda que seja o sol de novembro.

Pode parecer filosófico demais para um domingo à noite, mas seria bom que nos perguntássemos qual a razão de vivermos aqui, assim, da forma como vivemos. E achada a razão, seria interessante centrar-se nela para que tudo o mais continue a fazer sentido. Falo de viver mais para substantivos que para verbos. Temos vivido um tempo em que fazer, fazer e fazer ocupa toda a nossa existência, muitas vezes sem um porquê definido. É possível que Deus consiga driblar a nossa ânsia verbal só para nos conceder alguns momentos de contemplação que nos parecerão assustadores: o que fazer quando só estamos nós e a vida, bem substantiva? Nós, que somos ensinados a ocupar total e produtivamente o nosso tempo, nem sempre sabemos lidar com algum tempo livre inconveniente que venha a se chocar contra nós e exigir outra forma de pensamento que não a automatizada e bem traçada, segundo planos que nunca foram realmente nossos. Para quê tudo isso que nos cerca? O trabalho, o conhecimento, o relacionamento, a religião? Para quem? Deus espera na resposta. Há quem prefira dopar bem todos os sentidos com medo de arriscar responder. Há quem já esteja cansado demais e prefira simplesmente dormir. Há quem espere a resposta em outra vida, ignorando que a Graça nos alcança aqui. Mas há também quem reconheça a alegria de ter bons motivos – ainda que poucos – para celebrar, motivos que inspiram fidelidade, bondade, justiça, que elevam para as coisas que estão acima do sol. Há quem pare só para festejar esses motivos e abraça-los fortemente junto a um peito sem medo, sem vaidade, sem vão.

Um semana iluminada,

Luciana Teixeira

Nenhum comentário: