sábado, 20 de novembro de 2004

Ruminando

Se fizermos uma breve pesquisa perguntando às pessoas que animal elas gostariam de ser, vão aparecer muitas águias, leões, tigres, gaivotas, cães e peixes até. Mas não aparecerão muitos quadrúpedes. No máximo um cavalo, que denota força bruta e liberdade, mas ninguém que queira evidenciar sua inteligência o escolherá. Temos uma idéia má dos quadrúpedes, que normalmente aparecem em xingamentos e ironias. E embora eles sejam os únicos animais que aparecem na Lei de Deus (Êxodo 20:17), no nascimento de Jesus (Lucas 2:7), e sejam constantemente citados na Bíblia como sinônimo de fartura e status (Provérbios 14:4), os cristãos também não gostamos de nos parecer com eles. Por quê? Por que são burros? O burro virou sinônimo de falta de inteligência, mas que tipo de teste de QI fizeram com ele para saber disso? Acredito que ele ficou assim caracterizado porque é um animal domesticável, pacífico e submisso, como a maioria dos quadrúpedes que conhecemos. Eles são animais mansos, que se deixam conduzir. E aí está seu problema: um animal esperto – como nós – não se deixaria conduzir, mas escolheria o caminho que julgasse melhor.

Rubem Alves, em uma de suas boas crônicas¹, confessa que também não era muito afeito a vacas. Mas de repente percebeu que elas, com sua lentidão irritante teimando em existir neste século de velocidade e urgência, têm uma espécie de sabedoria que as permitiu sobreviver através dos milênios, coisa que animais mais ágeis e belos não conseguiram.

Repare em Jesus quando estava para ser aclamado como Rei por seus discípulos ao entrar em Jerusalém (Lucas 19: 28-40). Um rei conquistador teria feito sua entrada triunfal montado num cavalo, ele porém escolheu o mais manso dos quadrúpedes, um jumentinho, para dar a entender que seu reino era de paz. E quando uma multidão de gente injustiçada, cansada, magoada e ansiosa o ouvia, ele disse: “...aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mateus 11:29). Cristo poderia ter pedido que eles aprendessem a ser espertos, corajosos, fortes, poderia ter querido ensinar suas mais admiráveis habilidades, mas pôs em evidência a mansidão. Mansos? Já ouvimos por aí que quem é manso acaba por ser montado por alguém. “Não seja burro”, é a ordem do dia, “Reaja!”, “Dê o troco!”, “Não engula desaforo”, “Procure levar a melhor”.

Recentemente participei de um curso, e uma das atividades era simular uma negociação para aplicar os princípios que havíamos aprendido. E o colega que negociou comigo utilizou de todas as táticas – lícitas e ilícitas – para conseguir o máximo de vantagem possível. De fato, de todos os grupos, eu fui a que conseguiu o pior resultado. Embora eu não esperasse algo diferente disso por causa da minha extrema imperícia para assuntos comerciais, fiquei chateada ao descobrir como eu tinha sido manipulada de forma desleal (essas coisas que descobrimos todos os dias). E acabei por comentar com a esposa do meu colega que ele havia sido um espertalhão, passou por cima de todos os princípios éticos que aprendemos só pra obter vantagem, foi astuto, enganador e dissimulado. Então recebi uma resposta mais surpreendente que o comportamento do meu colega. Sua esposa disse: “Pois é, ele aprendeu comigo!”. Ela considerou minha perplexidade um elogio.

Estamos num mundo em que o que interessa é o melhor resultado, mas a Bíblia diz que “se alguém quiser demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa” (Mateus 5:40). Estamos num mundo em que manso e pacífico são adjetivos dados a ruminantes, mas a Bíblia diz que “os mansos herdarão a Terra” (Mateus 5:5) e “terão descanso para a alma” (Mateus 11:29). Estamos num mundo em que a justiça é manipulada para servir aos mais fortes, e honestidade não é mais uma arma para ser um homem bem-sucedido e respeitado, mas a Bíblia diz “calçai os vossos pés com o evangelho da paz” (Efésios 6:15). Estamos num mundo mau, que se preocupa com o imediato, mas a Bíblia nos dá a perspectiva de um mundo melhor e nos apresenta o panorama de uma eternidade. E quem deseja viver esse mundo que a Bíblia prega, quase nunca vai ser considerado muito esperto. “Como está escrito: por amor de ti somos entregues à morte o dia todo; fomos considerados como ovelhas para o matadouro”. Mais uma vez quadrúpedes? Sim, ovelhas. E se não formos ovelhas, jamais sentiremos o carinho confortável dos braços do Bom Pastor. Mansos, que se deixam conduzir por um ideal mais alto de Justiça. Humilhados, injustiçados, perseguidos, ridicularizados, por vezes, “mas em todas estas coisas somos mais do que vencedores, por Aquele que nos amou.” (Romanos 8: 36,37)

Uma semana iluminada,

Luciana Teixeira

¹Alves, Rubem. Concerto para Corpo e Alma. 10 ed. São Paulo: Papirus, 2003. “Sabedoria Bovina”, p. 149-153.

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