domingo, 24 de novembro de 2002

Mefibosete

Ele é um daqueles personagens sem muitas glórias para contar, que ficam escondidos nas histórias bíblicas. A forma mesmo como aparece pela primeira vez é trágica: aos cinco anos, Mefibosete sofre um acidente que lhe deixa deficiente das pernas para o resto da vida. (II Samuel 4: 4). Mas nenhuma história está registrada na Bíblia por acaso, e apesar de obscura , a vida desse homem tem algo a nos contar.

Com a morte de Saul, toda a sua descendência andava temerosa. Embora sabendo que Davi era um homem justo e temente a Deus, não faltavam pessoas – aqueles bajuladores de plantão – dispostos a acabar com a descendência de Saul para mostrar-se do lado do rei, tanto que Isboete, um dos filhos de Saul, foi morto justamente por essa causa (II Samuel 4:8). A sensação para a família de Saul é que muitas cabeças iriam rolar, literalmente...

Mas ao invés de aproveitar a oportunidade para vingar-se da família cujo patriarca passara a vida inteira lutando contra si, Davi permanecia fiel a promessa que fizera a Jônatas, filho de Saul, de que jamais levantaria a mão contra um descendente seu. Por isso, depois de vitorioso, no auge de seu poderio, Davi ainda lembrava-se da aliança que fizera com seu amigo, e certo dia inquietou-se: “Resta ainda, porventura, alguém da casa de Saul, para que eu use de bondade para com ele, por amor de Jônatas?” (II Samuel 9: 1).

Havia. E que era? Mefibosete! O curioso é observar que, originalmente, ele se chamava Meribe Baal (I Crônicas 9: 40), que significa “combatente contra Baal”. Ele nascera para ser um herói corajoso! Mas agora se transformara apenas em Mefibosete, que significa “propagador da vergonha”. A queda de seu avô Saul o arrastou para a miséria, a ponto dele considerar-se a si mesmo com um cão morto (II Samuel 9: 8). Então eu penso em quantos filhos que nosso Deus destinou para a luta, para a batalha pelo bem, para a vitória sobre os males deste mundo. Mas estes filhos acabaram sendo arrastados pela miséria de outros, caindo tanto ao ponto de serem apontados como “propagadores da vergonha”. O apóstolo Paulo adverte: “Aquele que pensa estar em pé, cuide para que não caia” (I Cor. 10: 12). Veremos muitas pessoas caindo ao nosso redor durante a caminhada cristã. Algumas dessas quedas terão tal impacto sobre nós, que, ao olhar ao redor, nosso primeiro impulso será desistir também. Mas o fato de algumas pessoas abandonarem a verdade, não significa que a Verdade desvaneceu, nem temos que cair também, traindo o destino para o qual Deus nos reservou: o de combatentes caminhando para a vitória certa.

E quando alguém cai, onde pode ser encontrado? Certamente não perto da glória. “Onde está?”, Davi perguntou. E seu servo foi achar Mefibosete num lugar chamado Lo-Debar, que significa “sem pastagem”, “que não é nada”, “é sem valor”. “Onde estás?”, perguntou Deus a Adão logo após sua queda. E foi achá-lo escondido e com medo por entre as árvores. “Onde estás?”, pergunta Jesus ainda hoje quando nos afastamos de Seu convívio. E a resposta nunca aponta para um lugar melhor do que aquele onde estávamos junto dEle. Longe da companhia gloriosa de Cristo, podemos até encontrar refúgio, mas não em algo que tenha real valor.

Imagino a cara de Mefibosete quando foi procurado pelos servos de Davi. Ele deve ter ficado mortalmente assustado. O que o Rei poderia querer com ele, descendente de um homem que o combatera a vida inteira? Mas ao encontrar-se com Mefibosete, Davi disse aquilo que Deus sempre diz quando quer ganhar a confiança de um pecador: “Não temas!” (II Samuel 9: 7). Embora naquele momento Mefibosete representasse a própria miséria, Davi usou de bondade e misericórdia para com ele, por que é justamente a fraqueza que atrai a graça. Aquele homem, deficiente, representante da derrota e da estultícia de seu avô Saul, foi recebido com amor, reconduzido a uma vida digna e passou a se alimentar na mesa do Rei. Bem, você pode imaginar que para o padrão da época e mesmo de hoje, Mefibosete não fosse considerado pelas pessoas exatamente um enfeite para mesa real. Mas Davi o amava, porque via nele traços de seu amigo Jônatas.

Qualquer semelhança com a graça de Deus não é mera coincidência. É quando reconhecemos nossa fraqueza e feiúra espiritual, que Deus é atraído para transformar-nos, e “nos faz assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus, para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco...” (Efésios 2: 6 –7). É quando não temos nada para barganhar com ele, quando percebemos que todas as nossas boas obras e lista de regras bem cumpridas não são suficientes para encobrir nossa condição miserável, que podemos entender a Sua maravilhosa graça: não temos nada em nós que nos justifique, mas Ele vê em nosso ser traços de seu filho Jesus Cristo, e pela aliança firmada na cruz, nos ama infinitamente.

A história de Mefibosete poderia ter terminado por aí, mas infelizmente vamos encontrá-lo novamente em II Samuel 16: 1 – 4, em maus lençóis. Ziba, seu servo, além de lhe roubar os alimentos, ainda o acusou de querer tomar o reino de Davi. Este por sua vez, que estava no meio de uma fuga de Absalão, e sem muita condição de averiguar a veracidade da informação, deu a Ziba tudo que pertencia a Mefibosete. Se ele não fosse coxo, poderia ter acompanhado o Rei, e Ziba não teria passado-lhe a perna e roubado todos os seus bens. Nesse ponto eu pensei comigo: “coitado do Mefibosete!”, mas ainda aí há uma lição para aprendermos.

Espiritualmente, não podemos passar a vida inteira na mesma condição com que fomos achados. Deus nos recebe como somos, com todos os nossos defeitos, mas se não formos transformados, se não desenvolvermos nossas próprias pernas para acompanhar o Rei onde quer que Ele vá, chegará um momento em que poderemos perder tudo aquilo que nos foi dado. E nossas deficiências espirituais só são sanadas por meio de uma busca constante pela santificação, ou seja, por pôr em prática em nossas vidas o amor que aprendemos dEle. Há a tentação de se acostumar às mordomias da mesa do Rei, e acomodar-se em usar muletas para se movimentar. A religiosidade ritual pode ser uma muleta. A vida social que a igreja proporciona, as pequenas satisfações de cantar, pregar, evangelizar, tudo isso é uma bênção se não for usado como mera muleta para estar no palácio do Rei. O motivo de estarmos com Ele deve ser primeiramente Ele mesmo. Tudo o mais, ainda que importante, não deve ser o determinante em nossa vida cristã. Chegará o momento em que tudo que fazemos na igreja, todos os nossos pequenos rituais, obras, cargos e títulos não serão o bastante para nos permitir andar junto ao Rei. E é nesse momento que corremos o perigo de perdermos toda a herança que nos foi dada...

Que nesta semana possamos meditar uma vez mais sobre a graça de Deus em nossa vida, e deixar que ela nos transforme, para que possamos ser vigorosos combatentes de Baal, não simplesmente acomodados a vida exterior de convivas do Rei, mas vivendo interior e plenamente a condição de Príncipes do Reino Celestial.

Uma semana iluminada,

Luciana

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