domingo, 10 de novembro de 2002

Então tá

(O diálogo a seguir não é ficção. Aconteceu sexta-feira, por volta das dezesseis horas tendo por cenário um ônibus lotado. Por partir de crenças muito pessoais a respeito do conceito de Deus, não o recomendo para quem ora apenas de joelhos e só se dirige a Ele na segunda pessoa do singular.)

- Então tá, é o seguinte: eu preciso cuidar da minha vida.

- Tá.

- Tá? Assim, você não vai me contestar?

- O que eu posso dizer? Se você decidiu assim, eu só posso aceitar e continuar do teu lado. Não acho que qualquer coisa que eu fale agora vá fazer você mudar de idéia.

- Talvez! Por isso vim aqui falar com você.

- Quando você me chamou achei que tinha algo a me dizer, apenas. Não consegui perceber uma intenção de diálogo.

- É, é verdade, mas eu deixo você falar. O que me dá raiva é que no fim você sempre tem razão.

- ...

- E sempre faz minhas razões parecerem tão ridiculamente pequenas, que eu acabo voltando atrás e fazendo a sua vontade.

- E isso é ruim?

- Não, não é que seja ruim, mas no final de tudo fica parecendo que eu sou a única pessoa do mundo que ainda se importa com isso. Entende? Me sinto anacrônica, deslocada, um ET que nunca vai aprender a viver aqui.

- Você pode tentar aprender a viver aqui, na verdade eu até espero que você consiga. Mas meus planos pra você vão além disso. E se você quiser ir além deste mundo, não vai conseguir se adaptar aqui mesmo.

- Tá vendo? Então eu vou passar o resto da minha vida me colocando em segundo plano? Eu ainda vivo aqui, tenho que pensar no que está acontecendo agora, ao meu redor. Foi isso que eu vim te dizer, acho que você cuida bem de mim, mas eu também preciso fazer isso de vez em quando. Acho que eu posso me virar sozinha às vezes. Não acho que se eu deixar de fazer certas ações, isso vai alterar a ordem das coisas, no final tudo vai ficar bem. Sabe, acho que não sou insubstituível. Por que eu tenho que fazer certas coisas? Você não pode colocar alguém pra fazê-las em meu lugar?

- Posso.

- E então, tou liberada?

- Do quê?

- Ora, de fazer as coisas tão certinhas! De ser tão boazinha e levar sempre a pior!

- Mas você faz assim porque quer! Porque você é assim. Porque quer fazer o que eu quero pra você, você mesma decidiu isso, não foi? Como você pode se liberar de você mesma?

- Ai, ai, lá vem você dando um nó na minha cabeça de novo. Ta vendo, é impossível ter um diálogo com você...

- ...Sem que você consiga driblar o que você de fato é. Mas é um fato, você não pode correr tão rápido que consiga escapar de você. Pode fingir não me ouvir, pode arquitetar suas desculpas (e você é boa nisso!), mas quando tiver certeza que está "livre" para fazer tudo o que quer, me responda, será que você estará finalmente feliz? Você acha mesmo que o que você não encontrou aqui dentro, poderia encontrar lá fora? Acha que construindo um mundo só seu, você se sentirá segura enfim? Bem, você sempre esteve "liberada" para fazer o que quiser. Eu vou continuar te amando e esperando. E aposto três estrelas como minha fidelidade dura mais que sua satisfação lá fora. Hmm... diga apenas, para onde você iria?

- Ah, não sei, o mundo é tão grande... que dá até medo. E se eu deixar de amar você? Você sabe, a gente pode cortar a convivência, então com o tempo eu vou deixando de te amar.

- Pode ser, com certeza. Mas mesmo sem me amar, você ainda vai se lembrar que os melhores momentos de sua vida foram passados do meu lado. E eu vou continuar te amando, já disse, e esperando você voltar pra gente conseguir viver uma vida toda de felicidade juntos e não só alguns momentos.

- Olha, bonita sua conversa, mas na prática a gente sabe que não é assim. Não dá pra ser feliz com tanta gente fazendo as coisas erradas, que ainda dizem estar do teu lado. Não dá pra ter uma vida inteira de felicidade tendo tanta gente ao redor destruindo o que você lutou pra erguer, arrancando o que você plantou, semeando mentira onde você se esforçou pra fazer brotar a verdade. Ninguém pode ser feliz tão plenamente, vendo pessoas sendo enganadas, maltratadas, negligenciadas física, social, emocional e espiritualmente, por outras pessoas que só se importam em manter uma fachada de "bom cristão". Como conciliar felicidade e hipocrisia?

- Eu falei de felicidade, não de perfeição. A perfeição não é pra agora, menina impaciente...

- Num me xinga não!

- Não estou xingando. Nem mentindo, certo?

- Só porque você me conhece não precisa ir apontando os defeitos, ora...

- Falei de felicidade, porque me referia a estarmos juntos. A maioria do tempo as coisas não vão mesmo estar bem. Alguns dos seus planos vão dar errado, outros vão ser destruídos a despeito de todo o seu esforço pra fazer o que é certo. Eu gostaria muito que não fosse assim, mas só posso agir quando chegar o tempo certo, e até lá preciso de sua confiança. Nós podemos ter uma vida inteira de felicidade, sim! Todos os momentos felizes que tivemos juntos não foram por causa da alegria contida neles. Fomos felizes mesmo em alguns dos seus momentos mais difíceis, só porque estávamos juntos. E quando te prometo uma felicidade perene, não estou falando que tudo vai ser sempre flores, mas que podemos estar sempre juntos sempre, ininterruptamente.

- Mas tem tanta coisa errada...

- Bem-vinda ao planeta Terra! Não adianta fingir que não é com você. Tem um monte de pessoas olhando pra você e esperando o que você vai fazer.

- Isso é assustador... Quer dizer, sou tão... tão...nada!

- Eis o ponto de tensão: o que você é, e o que você pode ser. Como as coisas estão e como elas poderiam ser.

- E se eu não conseguir? Se eu cair fora ou simplesmente cair derrotada no chão?

- Bem-vinda à resistência. Eu posso te garantir paz enquanto você lutar.

- Que paradoxo!

- De fato, mas é assim. Não posso te dar muitas respostas agora, porque você não está preparada pra entendê-las. Também não posso prometer que você vai sempre ganhar e ver as coisas dando certo. Mas posso prometer - e já prometi - paz. A minha graça te basta.

- Ô frase difícil e engolir! Pode ser que não baste, já parou pra pensar nisso?

- Ah, já sim. Mas eu não afirmaria com tanta certeza se não soubesse: minha graça te basta.

- Ta. Então digamos que eu te confesse que certas verdades que eu vivia e pregava com tanto fervor há uns anos atrás, já não têm a mesma força sobre mim. E aí?

- E aí que essas verdades não deixarão de ser verdades só porque você não as vive mais. E nem tente fazer sua versão para elas, porque você sabe que essas verdades são absolutas. As únicas coisas absolutas no universo. Embora haja tanta gente empenhada em negar isso para tentar se autojustificar. Você quer ser mais uma?

- Eu não. Mas a gente cansa, sabe? Não, por favor não me fale de exemplos bíblicos, de personagens bravos e fortes que não são eu. Não me cite os velhos versículos como aquele "mas os que esperam no Senhor renovarão as suas forças..."

- Tu o disseste! Eles são velhos mas ainda são pra você...

- E se eu cansar de ver que ninguém mesmo liga pra certos valores?

- Eles continuarão sendo os valores certos. E você saberá disso enquanto viver.

- E quanto tudo parecer irreal? Quando minhas crenças parecerem, aos olhos de todo mundo, algo sem nexo? Vou ter que passar o resto da vida estudando teologia, apologia, argumentação, e me matando com as refutações da alta crítica?

- Se você acreditar, já será real. E todos verão isso.

- Voltamos à fé...

- É... a fé, que você ainda tem aí dentro, e por menor que possa parecer, é sempre suficiente para criar raízes e dar frutos. O grão de mostarda, lembra? Eu acredito na qualidade da sua fé. Se ela não fosse das boas, você não estaria falando comigo no meio desse ônibus lotado.

- Tem razão, desculpa de tê-lo feito vir aqui, é que era urgente...

- Tudo bem, estou mais confortável que você.

- Então tá, é o seguinte, acho que você ganhou outra vez.

- É? Então exijo um pôr-do-sol ao seu lado.

- Mas não saia de perto de mim nunquinha, tá certo?

- Nem você, combinado?

- Combinado, prepare aí seu melhor pôr-do-sol e vamos ver se depois de milênios você ainda não enferrujou.

Uma semana iluminada,

Luciana

Um comentário:

Luciana Teixeira disse...

Gostei muito de partilhar esta experiênia, mas anos depois quando li parte di livro (não consegui ler todo) "Uma amizade com Deus", de Neale Donald, me senti muito desconfortável. O cara criou um Deus (tosco, não bíblico e não-teológico)a parte, com fins comerciais, utilizando a mesma técnica que eu usei aqui. Só que com um resultado mais infeliz (bem, pra todos os efeitos foi ele que virou best seller e não meu texto kkkkkkkkk)