domingo, 6 de outubro de 2002

Na escuridão do meio-dia

“Eclipse total! Não há sol, não há lua!
Tudo é escuridão em pleno fulgor do meio-dia!”

("Samson Agonistes" - John Milton, 1671)

São com esses versos de Milton, que Georg Friedrich Handel começa uma das árias mais sentidas que ele já compôs. Ela faz parte do oratório “Sansão”, e a música é o lamento do herói bíblico, quando tem seus olhos vazados pelos inimigos e é jogado na prisão. Como sempre, Haendel consegue explorar esse momento com uma sentimentalidade comovedora através de sua música. E ela se torna ainda mais significativa quando descobrimos que alguns anos depois, Haendel iria morrer tão cego quanto o personagem do oratório, após uma desastrosa intervenção cirúrgica feita por certo charlatão especialista em matar gênios: anos antes fizera o mesmo com Bach. Hoje a ária soa, portanto, como o canto de agonia do próprio compositor.

O que mais me chama atenção nessa música é Sansão contrastar a escuridão de sua cegueira com a vasta luminosidade do meio-dia. A intensidade da luz, parece agravar nele a tristeza por não poder ver. Pois mesmo sentindo o fulgor dos raios do sol em sua pele, seus olhos estão mergulhados na mais negra visão do nada. Ele suporta a torturante angústia de ter sido homem escolhido para guiar todo um povo, e então, não poder guiar nem a si mesmo durante o dia. Chora o desespero de ter nascido para ser homem de valores elevados, olhado por todos para ser apontado como exemplo, mas acabar como aqueles que “de dia encontram as trevas, e ao meio-dia andam às apalpadelas, como de noite.” (Jó 5:14)

Ser cego ao meio-dia só é mais triste quando nos permitimos fazer uma analogia espiritual. Durante muito tempo, homens deram suas vidas para que hoje pudéssemos ter luz. Esses homens viveram num tempo em que a Bíblia era lida às escondidas, e eles não tinham liberdade para pregar a verdade tal qual Deus a estabelecera. Conheciam o Cristo vivo, fonte de toda Luz, mas tiveram, por amor a Ele, que enfrentar terríveis trevas. E não tiveram medo.

“Consola-te”, exclamou Latimer a seu companheiro de martírio, quando as chamas estavam a ponto de fazer silenciar-lhes a voz; “acenderemos neste dia na Inglaterra uma luz que, pela graça de Deus, espero, jamais se apagará.” (Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 247)

Nesse tempo, os homens tinham pouca luz doutrinária e teológica, mas eram luz, sua fé ardia e inflamava. Brilhavam tanto a ponto de flamejarem como tochas vivas se preciso fosse. E por causa da fé e testemunho desses homens, que hoje nós temos tanta luz ao nosso alcance. A Bíblia e o conselho de muitos homens e mulheres de Deus, estão à nossa disposição, como raios luminosos, e a Igreja vive, nesse sentido, em pleno fulgor do meio-dia. No entanto, está essa luz incidindo sobre nossas vidas? Temos deixando Deus nos abrir os olhos para vê-la, ou continuamos presos a nossa mesquinhez e pobreza de espírito? Temos nos apossado dessa luz, ou andado como cegos, às apalpadelas, em pleno meio-dia?

Lembro uma pergunta de outro mártir, Tyndale, que apesar de ter sido usada em contexto diferente, pode ser bem empregada nesse sentido: “Deve a igreja ter menos luz ao meio-dia do que à aurora?”. Homens de fé deram a vida por valores que hoje estão se apagando gradativamente. Eles lutaram para nos dar uma Bíblia que já não lemos tanto, e menos ainda causa efeito sobre nossas vidas, embora sua luz continue mais e mais forte. Eles desafiaram sistemas seculares, para que hoje tantos não saibam dar a razão da sua fé, e pior, sequer vivam aquilo em que professam crer.

Desejo sinceramente que no início desta semana, não nos descubramos cegos em pleno fulgor do meio-dia. Que possamos nos propor novamente a sermos luz. Não como velas, que apagam ao soprar qualquer brisa. Mas como fogueiras, que quanto mais atacadas pelo vento, mas a sua chama se atiça. “Aqui está a perseverança dos santos...” (Apoc. 14:12)

Uma semana realmente iluminada!

Luciana

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