domingo, 22 de setembro de 2002

Dor e prazer

Já ouviu falar da lei de Murphy? É uma lei metafísica que diz: “se alguma coisa pode dar errado, vai dar errado, na pior hora e da pior forma”. Ruim mesmo é que essa lei, comprovadamente, é como a da gravidade: não tem escapatória.

A coisa acontece mais ou menos assim: quando eu era bem pequena, minha mãe disse: “não suba aí que você cai, menina!”. E o que eu fiz? Subi e caí. E a experiência me trouxe dor e prazer. A dor de me machucar, mas o prazer de, em seguida, ver minha mãe correndo até mim, me afagando, cuidando de mim, me dando toda a atenção e carinho que ordinariamente eu não recebia. Então acabei buscando situações em que, com o mínimo de dor, eu pudesse obter o máximo de prazer. Quando eu tinha minhas crises de carência, típicas da síndrome da irmã do meio (a mais velha pode tudo, a mais nova é privilegiada, a do meio, nada), eu aparecia com alguma dor de barriga homérica, uma enxaqueca atormentadora, um machucado no pé que me impingia dores terríveis, uma cólica que me fazia perder os sentidos, ou coisa do gênero: aprendi a dramatizar ao máximo minha dor como meio de ganhar atenção. Mas a glória mesmo, veio aos doze anos, quando eu torci meu pé. Pisei em falso e o pé inchou levemente, praticamente não doeu, mas eu só saí do hospital quando consegui convencer o médico que aquilo era quase uma fratura exposta, e ele (tão bonzinho!) me deu uma linda bota de gesso, enooorme, para eu desfilar minha necessidade de carinho em grande estilo. Isso tudo é completamente doido, mas na época, pelo menos umas três colegas me confessaram que sonhavam em quebrar uma perna pra ter uma bota de gesso também.

Pois bem, eu cresci – um dia isso tem que acontecer – , e fui aprendendo aos poucos, que atenção e carinho são mesmo coisas maravilhosas, mas existem modos mais eficazes de obtê-los que fazendo chantagem emocional. Que a relação dor-e-prazer era desvantajosa, quando eu podia obter somente o prazer sem precisar me machucar. E ao invés de arriscar sentir uma dor para dramatizá-la eu podia simplesmente descartá-la e obter um amor mais sincero e verdadeiro fazendo tão somente o óbvio: valorizando a mim mesma, e amando meu próximo primeiro, incondicionalmente, sem cobranças. Isso causou uma revolução tal em meu modo de agir que eu nem me lembrava mais do meu passado de atriz. Até ontem.

Como sou estagiária não tenho direito a férias no trabalho. Por isso aproveitei as férias na faculdade para trabalhar dobrado alguns dias, e ter direito a folgar pelo menos uma semana e viajar para meu éden particular: a praia de Muriú. Ontem fui lá para ter uma prévia do que seria ficar de quarta a domingo naquele lugar maravilhoso, e eis que me dirigindo para a lagoa de águas mornas e deliciosas, levo uma queda monumental, e a vida me dá novamente o presente com que eu sonhei por anos: nova torção no pé, essa sim verdadeira e insuportavelmente dolorosa. Então me restou dar adeus às férias e, de pé enfaixado (num engessa não, dotô! Por favor!), refletir sobre o episódio e tentar tirar algo de bom dele.

Que eu posso dizer? Torcer o pé dói e isso é ruim mesmo. Agora os valores aparecem em seu devido lugar. O que antes me faria pular de alegria, ops, quer dizer, manquejar de alegria, agora me deixou no mínimo triste. Mas essa confusão entre dor e prazer, essa coisa de ver coisas ruins como meio de obter satisfação é mais comum que se possa imaginar. Chega uma hora que as coisas ruins são tão almejadas que chegam a nem parecer tão ruins assim. Na verdade as coisas ruins parecem ser muito boas, ao ponto de pessoas persegui-las e fazerem disso um modo de vida. Saberem que estão se auto-destruindo e ainda assim, vibrarem com cada mutilação que sofrem. O nosso mundo faz propaganda dessa busca pelo mal, como se fosse algo para pessoas livres e fortes. E é claro, as coisas ruins, embora destruam, dão prazer. Um prazer imediato e superficial, mas bom o bastante para mover toda uma vida. Mesmo tendo-se consciência da auto-imolação, persiste-se nela em busca de algum prazer, não importa a dor que se siga. Mas isso é livre arbítrio: escolher a vida ou escolher uma pequena morte todos os dias.

Agora alguém pode concluir que é mesmo um absurdo como as pessoas “do mundo” permitem-se sacrificar seus corpos e espíritos num estilo de vida epicurista, capaz até de buscar satisfação em coisas ruins. É, eu também não entendo, mas não gostaria de concluir meu pensamento antes de apontar para uma escultura. Uma das esculturas mais instigantes do período barroco: o êxtase de Santa Teresa, de Bernini. Santa Teresa descreveu o momento de sua vida em que um anjo lhe apareceu em sonho e atravessou-a com uma flecha. A santa afirmou que, nesse momento, sentiu um gozo profundo, acompanhado de uma dor tão forte que a fez desmaiar. O escultor Bernini materializou o fato narrado, criando uma obra em que pode-se perceber na face da Santa, uma expressão mista de êxtase e sofrimento.

Também no meio religioso, sempre houve a idéia de que o sacrifício e a dor conduzem ao prazer espiritual. E isso faz com que algumas pessoas vivam uma aparente vida cristã, que na verdade lhes é um peso dificílimo de carregar. Reprimem seus desejos movidos pela obediência às regras e pela necessidade de se flagelarem para se sentirem mais santos. Embora seja comovente ver como tantas pessoas suportam o estilo de vida cristão como verdadeiros mártires modernos, pessoalmente não creio que essa seja a forma mais eficiente de obter o favor divino. A graça de Deus é realmente gratuita, nenhum esforço nosso pode comprá-la. E Ele não se compraz que tentemos “negociar” nossa salvação com atos de sacrifício, porque o único sacrifício válido e capaz de nos libertar da culpa do pecado, foi o sacrifício de Jesus, já realizado há mais de dois mil anos, pelo que já não se faz mais necessário nenhum outro sacrifício humano.

A lógica da salvação não admite a dor como item imprescindível. Não somos salvos por “distribuir todos os nossos bens entre os pobres, e entregar o corpo para ser queimado” (I Cor. 13:3), mas pelo amor ao Salvador. E quando existe amor, não há sacrifício, há renúncia. A diferença é que as renúncias feitas em nome do amor não doem. Não são usadas como meio de negociar atenção, mas oferecidas alegremente como a mais perfumada dádiva. Não cobram algo em troca, simplesmente se dão, e a maior renúncia é oferecida como quem dá um beijo. Se não for assim, mesmo a religião, que a princípio é uma coisa boa, pode se tornar em algo ruim e destruidor, posto que pode se transformar em um conjunto de formas e rituais vazios, e apesar de toda nossa “dedicação”, por nós mesmos só conseguiremos nos perder ainda mais. Se a vida de um crente consiste em apenas cumprir regras para parecer irrepreensível, levar pesados fardos nas costas para parecer bondoso, e de vez em quando fazer sacrifícios para parecer piedoso, bem, ele não conseguirá salvar-se, mas certamente se tornará alguém amargo, frustrado e infeliz.

Há muitos que buscam prazer nos lugares errados, com a ilusão de que o prazer temporário que as coisas daqui oferecem é o que de melhor se abstrai nesta vida. Sua felicidade então depende de estímulos constantes, ininterruptos e novos para perdurar, e, efêmera que é, não resiste ao momento da dor, nem nunca chega a preencher por completo. As coisas ruins, no fim são sempre são ruins, não importa com que boas sensações elas possam nos seduzir. E fora do Espírito Santo, não há discernimento agudo o suficiente para escolher o que é realmente bom. Mas muito mais triste que viver de momentos de prazer seguidos de dores profundas, é viver toda uma vida de sacrifícios dolorosos, tristeza e amargura, mesmo morando numa casa à beira da fonte de todo amor. Em ambos os extremos, de perdidos dentro e fora da igreja, o conceito pequeno de felicidade é lamentável. Há sempre um desperdício da vida em abundância que Jesus veio nos dar. Há sempre uma falta generalizada do conhecimento de Deus. Aquele que vem da vivência tão íntima com as coisas do céu, que flua em alegria, transborde em amor ao próximo e, no momento da dor, perdure em paz. Há nessa vivência o encontro com uma dimensão de felicidade que não cabe dentro dos sentidos humanos: e isso é Graça, meu amigo, porque pelo sacrifício dEle, nós fomos elevados a bem mais que homens. Somos filhos de Deus. (Gálatas 3:26)

Uma semana iluminada e prazerosa,

Luciana

Um comentário:

Luciana Teixeira disse...

Fato curioso: quando hospedei este texto no site do falecido geocities recebia constantes visitas de pervertidos por causa do titulo do texto, e alguns deles me xingavam ao perceber que se tratava de um texto espiritual. Até pensei em mudar o titulo antes de relocar o texto aqui, e fugir da ordinaria associação entre a palavra prazer e o sexo. Mas pensando bem, vou deixar assim mesmo, hehehe.